O Globo
Pela primeira vez, os aliados tradicionais de
Israel ensaiam uma ruptura histórica
Na quarta-feira, Benjamin
Netanyahu condicionou o encerramento da guerra em Gaza à implementação
do plano de Trump de remoção da população palestina do território. No dia
seguinte, Gideon Saar, seu ministro do Exterior, atribuiu o assassinato de dois
jovens funcionários da embaixada israelense em Washington à “tóxica incitação
antissemita” difundida também pelos líderes europeus que pressionam por um
cessar-fogo. O governo de Israel faz do
antissemitismo álibi para a limpeza étnica.
Bezalel Smotrich, principal arauto do supremacismo no governo Netanyahu, descreveu o objetivo da nova ofensiva em Gaza: “Destruir o que resta da Faixa simplesmente, porque tudo ali é uma grande cidade do terror”. A sentença cumpre a função criminosa de identificar ao Hamas o conjunto da população palestina.
Não se faz limpeza étnica apenas com mísseis,
artilharia e blindados. A operação exige um conceito político, uma narrativa
ideológica: a noção de que cada palestino seria um potencial terrorista. Anos
atrás, Smotrich elaborou um projeto de lei destinado a “restaurar o sistema
judicial da Torá”, transformar Israel em teocracia judaica. Netanyahu
patrocinou seu percurso das margens da política israelense até o núcleo do
poder. Trump adotou, como política dos Estados Unidos, sua meta extrema, a
limpeza étnica.
Os objetivos da guerra sofreram metamorfose
radical. A libertação dos reféns, explicou Netanyahu, tornou-se algo
secundário. A eliminação do Hamas transformou-se em degrau intermediário.
Smotrich explicitou que, depois da relocação dos palestinos para o sul de Gaza,
eles serão transferidos ao exterior, “como parte do plano do presidente Trump”.
Israel só pode conduzir a limpeza étnica com o amparo dos Estados Unidos.
Segundo Trump, Gaza tornou-se “inabitável”.
“Nada resta a ser salvo” no território. A ofensiva militar em curso destina-se
a confirmar o diagnóstico emanado da Casa Branca. Sua finalidade é completar a
destruição das infraestruturas civis e aterrorizar a população, criando as
condições para a remoção. Na síntese apropriada dos palestinos, seria uma
“segunda Nakba”, uma catástrofe tão devastadora quanto o êxodo provocado pela
derrota na guerra de 1948. Desta vez, porém, a Nakba fulminaria definitivamente
o projeto da paz na Terra Santa pela convivência de dois Estados.
União Europeia, França e Reino Unido —
finalmente, talvez tarde demais — reagem ao terror de Estado israelense,
exigindo o fim da ofensiva. Pairam no ar as hipóteses de sanções e do
reconhecimento diplomático da Palestina como Estado independente. Seriam gestos
drásticos, ainda que largamente simbólicos. Contudo, pela primeira vez, os
aliados tradicionais de Israel ensaiam uma ruptura histórica.
Não é pouco. Israel nasceu como resposta ao
Holocausto, à supressão quase completa da vida judaica na Europa. O maior crime
do século XX esculpiu um tabu político e diplomático: a solidariedade
incondicional europeia ao Estado judeu, que se manifestou ao longo de todas as
guerras travadas por Israel. Hoje, Netanyahu e seu cortejo de extremistas
colocam em risco a excepcionalidade israelense.
O antissemitismo contemporâneo oculta-se
atrás do véu do antissionismo. Sua face desnuda-se, porém, quando a palavra
“judeu” surge como sinônimo de “israelense”. Por meio da acrobacia semântica, o
“judeu” torna-se responsável pelas ações de Israel e até pelos crimes de guerra
cometidos pelo governo israelense. A conflação dos dois termos eclodiu em
incontáveis protestos contra a guerra em Gaza e, especialmente, nas
hostilidades dirigidas a estudantes judeus em universidades dos Estados Unidos.
O assassino do casal de funcionários da embaixada em Washington gritou o lema
“Palestina livre” no momento em que foi preso.
À sombra de Trump, o governo de Israel
empenha-se num perverso exercício de imitação. Apropriando-se da lógica dos
antissemitas, Gideon Saar ergue a acusação de antissemitismo contra os líderes
europeus que recusam o papel de cúmplices num crime contra a humanidade. No fim
das contas, ele está dizendo que Auschwitz justifica a limpeza étnica.
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