segunda-feira, 26 de maio de 2025

Terror de Estado em Gaza - Demétrio Magnoli

O Globo

Pela primeira vez, os aliados tradicionais de Israel ensaiam uma ruptura histórica

Na quarta-feira, Benjamin Netanyahu condicionou o encerramento da guerra em Gaza à implementação do plano de Trump de remoção da população palestina do território. No dia seguinte, Gideon Saar, seu ministro do Exterior, atribuiu o assassinato de dois jovens funcionários da embaixada israelense em Washington à “tóxica incitação antissemita” difundida também pelos líderes europeus que pressionam por um cessar-fogo. O governo de Israel faz do antissemitismo álibi para a limpeza étnica.

Bezalel Smotrich, principal arauto do supremacismo no governo Netanyahu, descreveu o objetivo da nova ofensiva em Gaza: “Destruir o que resta da Faixa simplesmente, porque tudo ali é uma grande cidade do terror”. A sentença cumpre a função criminosa de identificar ao Hamas o conjunto da população palestina.

Não se faz limpeza étnica apenas com mísseis, artilharia e blindados. A operação exige um conceito político, uma narrativa ideológica: a noção de que cada palestino seria um potencial terrorista. Anos atrás, Smotrich elaborou um projeto de lei destinado a “restaurar o sistema judicial da Torá”, transformar Israel em teocracia judaica. Netanyahu patrocinou seu percurso das margens da política israelense até o núcleo do poder. Trump adotou, como política dos Estados Unidos, sua meta extrema, a limpeza étnica.

Os objetivos da guerra sofreram metamorfose radical. A libertação dos reféns, explicou Netanyahu, tornou-se algo secundário. A eliminação do Hamas transformou-se em degrau intermediário. Smotrich explicitou que, depois da relocação dos palestinos para o sul de Gaza, eles serão transferidos ao exterior, “como parte do plano do presidente Trump”. Israel só pode conduzir a limpeza étnica com o amparo dos Estados Unidos.

Segundo Trump, Gaza tornou-se “inabitável”. “Nada resta a ser salvo” no território. A ofensiva militar em curso destina-se a confirmar o diagnóstico emanado da Casa Branca. Sua finalidade é completar a destruição das infraestruturas civis e aterrorizar a população, criando as condições para a remoção. Na síntese apropriada dos palestinos, seria uma “segunda Nakba”, uma catástrofe tão devastadora quanto o êxodo provocado pela derrota na guerra de 1948. Desta vez, porém, a Nakba fulminaria definitivamente o projeto da paz na Terra Santa pela convivência de dois Estados.

União Europeia, França e Reino Unido — finalmente, talvez tarde demais — reagem ao terror de Estado israelense, exigindo o fim da ofensiva. Pairam no ar as hipóteses de sanções e do reconhecimento diplomático da Palestina como Estado independente. Seriam gestos drásticos, ainda que largamente simbólicos. Contudo, pela primeira vez, os aliados tradicionais de Israel ensaiam uma ruptura histórica.

Não é pouco. Israel nasceu como resposta ao Holocausto, à supressão quase completa da vida judaica na Europa. O maior crime do século XX esculpiu um tabu político e diplomático: a solidariedade incondicional europeia ao Estado judeu, que se manifestou ao longo de todas as guerras travadas por Israel. Hoje, Netanyahu e seu cortejo de extremistas colocam em risco a excepcionalidade israelense.

O antissemitismo contemporâneo oculta-se atrás do véu do antissionismo. Sua face desnuda-se, porém, quando a palavra “judeu” surge como sinônimo de “israelense”. Por meio da acrobacia semântica, o “judeu” torna-se responsável pelas ações de Israel e até pelos crimes de guerra cometidos pelo governo israelense. A conflação dos dois termos eclodiu em incontáveis protestos contra a guerra em Gaza e, especialmente, nas hostilidades dirigidas a estudantes judeus em universidades dos Estados Unidos. O assassino do casal de funcionários da embaixada em Washington gritou o lema “Palestina livre” no momento em que foi preso.

À sombra de Trump, o governo de Israel empenha-se num perverso exercício de imitação. Apropriando-se da lógica dos antissemitas, Gideon Saar ergue a acusação de antissemitismo contra os líderes europeus que recusam o papel de cúmplices num crime contra a humanidade. No fim das contas, ele está dizendo que Auschwitz justifica a limpeza étnica.

 

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