domingo, 18 de maio de 2025

Um homem – Dorrit Harazim

O Globo

Seus valores eram universais, e sua moral danada de límpida

Sendo a vida um rio que precisa ser atravessado, cabe-nos construir uma ponte capaz de nos sustentar do primeiro engatinhar ao último arrastar de perna. Não é tarefa pouca. Tanto assim que boa parte dos bípedes acaba desperdiçando fortunas ou aflições erigindo passarelas impermanentes, ocas, que desabam ao primeiro infortúnio e acabam varridas da História. José “Pepe” Mujica, que completaria 90 anos nesta terça-feira, nunca confundiu o ser com o ter. Atravessou o tumultuoso rio de sua vida sem precisar escorar-se em vanglórias nem vitimizações. Sua ponte a tudo resistiu. Fora construída de material nobre e raro: a simples decência humana.

A julgar pelos registros nas mídias, elogiosos segundo a régua convencional de atributos, havia morrido um “símbolo da esquerda”, um “ícone da esquerda” ou, no máximo, um “herói da esquerda da América Latina”. Assim fazendo, apequenaram o morto. Isso porque Mujica foi, antes de tudo, um homem inteiro. Seus valores eram universais, e sua moral danada de límpida. “Dediquei a vida a mudar o mundo e não mudei nada, mas não importa — dei sentido à minha vida sonhando, lutando, pelejando. Parto daqui feliz”, explicou ao jornal El País no ano passado, já bastante doente.

A trajetória política do uruguaio José Alberto Mujica Cordano é conhecida: nascido em ambiente rural nos arredores de Montevidéu, aderiu cedo ao movimento guerrilheiro Tupamaro, foi preso quatro vezes, conseguiu fugir duas — uma das quais com lances cinematográficos —, mas acabou recapturado em 1972 para mofar ou enlouquecer no cárcere. O filme “Uma noite de 12 anos”, de 2018, dirigido por Álvaro Brechner, retrata bem o que foram seus 12 anos de cativeiro na ditadura militar uruguaia. Sete deles foram passados em solitária, numa cela-buraco de pouco mais de 1 metro quadrado, privado de leitura ou raio de sol. Espancado e torturado, chegou a comer sabão e alucinar.

Quando finalmente libertado, estava com 50 anos de idade. Não perdera a razão, nem a humanidade. Nem a companheira de militância Lucía Topolansky, com quem se casaria em 2005 e que o acompanhou até o final. Estava pronto para retomar a política redemocratizada e recebeu dos patrícios votos e aprovação — primeiro como membro do Congresso, depois como presidente da República. Ao contrário do que ocorreu na Argentina e no Chile pós-ditadura, decidiu não processar os militares responsáveis pela tortura, mortes e desaparecimentos ocorridos nos porões uruguaios. Tampouco se arrependeu das várias ações de guerrilha urbana de que participou. “Na vida há feridas que não têm cura, é preciso aprender a continuar a viver”, dizia. Assim fez.

Poucas horas depois do anúncio de sua morte, um vídeo caseiro de menos de três minutos mostrava uma bailarina anônima numa viela deserta de Montevidéu. É noite. À frente de um muro descascado com os dizeres “GRACIAS PEPE POR TANTA POESIA” e de uma dezena de velas acesas no chão, a bailarina dança um dos solos mais belos do “Lago dos cisnes”, de Tchaikovsky. Difícil imaginar outro líder mundial que gere manifestação de pesar tão significante. Vez por outra, poesia, política e humanidade conseguem conviver e frutificar. São raras essas vezes — somente quando o ser humano foi maior que sua obra estritamente política. Assim foi com o sul-africano Nelson Mandela, assim foi com o argentino Papa Francisco e assim foi com o americano Jimmy Carter.

No seminal livro de Primo Levi “É isto um homem?”, o sobrevivente de Auschwitz nos intima a refletir sobre os abismos e cumes do que é ser humano. Talvez lhe fizesse bem saber que, para Mujica, o significado da vida pode ser encontrado no que nos diferencia das demais espécies — graças a nosso desenvolvimento intelectual, e se exercitarmos nossa consciência, podemos dar à vida algum sentido, escolher uma causa, vivê-la. Mujica diz ter conseguido ser livre por ter escapado da lei da necessidade. Levi não teve essa oportunidade. Coube-lhe a missão desumana de narrar o que não suportamos ver. Ainda assim, também ele inicia seu livro máximo com um poema: “Se questo è un uomo”.

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