Correio Braziliense
As verdades são tantas que é impossível saber
qual delas realmente é a verdade. A soma de informações que nos chegam é tão
grande que não podemos estabelecer uma escala de valores para absorvê-las
Estamos vivendo coisas com que nunca
sonhamos. Uma delas, a pós-verdade, que colocou a mentira no lugar da verdade,
que deixou de ser o que é para tornar-se o que as emoções da rede social
definiram como verdade. O fato foi substituído pela narrativa.
As descobertas científicas colocaram em nossas mãos milagres. Podemos, numa tela vazia em nossa frente, por artes de Deus ou do diabo, ver o que se passa em todos os lugares do mundo no instante mesmo em que estão acontecendo. Com uma pequena caixinha que cabe na palma de minha mão, posso localizar qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo e falar com ela, através dela me comunicar, saber e transmitir notícias, prever o tempo, fazer cálculos matemáticos e recuperar mensagens que me mandaram de outra máquina fabulosa — sua excelência, o computador —, que com um teclado que também me conecta com todo o mundo no mesmo instante em que me fornece todas as informações que desejo, milhões e milhões de dados sobre tudo, a cada segundo, sem um centro organizador e produtor, que vão se multiplicando quando alguém mais se junta a esse processo, que não tem limites e atinge o infinito, que é o conceito de rede.
O que acontece com nossa cabeça, que foi da
cultura oral, fez uma pausa no livro e, de repente, caiu na era da cultura
visual? Que mudanças aconteceram em nossa maneira de pensar, nos costumes e nos
sentimentos que durante milênios criaram a criatura humana que a História
formou até agora? Nós nos acostumamos a conviver com a alegria, com a tristeza,
com o amor em todos os seus níveis, com a noção de trabalho, com os valores da
família, os sentimentos de ódio, da cólera, da violência, tudo isso de maneira
artesanal, criando outro mundo, outra sociedade para a qual não estávamos
preparados, diferente, com coisas que não podemos dominar, outro mundo a que
buscamos nos adaptar, e não ele a nós.
Tudo mudou. Vivemos nossas circunstâncias, em
que são as da realidade. Porém nossa realidade não é realmente a realidade.
Nossos sentimentos e nossas reações estão sendo reciclados e já não são o que
nos faziam acreditar. "O que em mim sente está pensando", dizia o
verso de Fernando Pessoa. Só que hoje, sentir e pensar não são mais faculdades
do ser individual e, sim, do ser coletivo que somos.
O amor deixou de ser o amor como o
concebíamos no passado. O mesmo acontece com a amizade, com a noção de
convivência, com o ódio e a cólera. Estamos perdendo até a indignação, todos
submetidos ao uso de uma droga tecnológica. As próprias drogas fazem parte
desse contexto. A diferença é que estas são substâncias químicas para a
sublimação dos prazeres. A droga da modernidade, com a parafernália de
comunicação, nos impõe uma situação mais perigosa que a de não ter a liberdade
de ingeri-la, porém, a obrigação de consumi-la.
O culto da velocidade. Não temos mais a
liberdade de andar. As distâncias, o estilo de vida que foi criado nos fez
dependentes da velocidade, do patinete, da bicicleta, da moto, do carro, do
ônibus, do trem, do avião. Já não tem sentido escrever cartas. A civilização é
oral, é o telefone. Escrever passou a ser algo atrasado. Escreve-se para
confirmar o que se falou. Fala-se por telefone, por fax, pelo computador, pelo
cinema, pela televisão, pelas redes sociais na internet.
Vemos perplexos que somos um grande
laboratório e que estamos nos transformando com todas as mudanças que acontecem
no mundo. É como se estivéssemos chegando ao desaparecimento da espécie de
homem que foi o homem e que fez a História que chegou aos nossos dias.
Estamos em meio a essas perplexidades que são
mais de segurança que de dúvidas. Nossas reações são condicionadas pelas
inseguranças que nos rodeiam. Já não sabemos o que é bom e o que é mau. Nossos
códigos de ética e comportamento individual, aquelas leis que cada um de nós
processa dentro de si ao longo da vida, de um momento para outro estão
questionados pela realidade virtual. São os meios de comunicação que nos
condicionam, e de tantas informações que nos chegam já não podemos distinguir o
que é verdade e o que é mentira… As verdades são tantas, que é impossível saber
qual delas realmente é a verdade. Abrimos os jornais, vemos televisão,
navegamos na internet, e a soma de informações que nos chegam é tão grande, que
não podemos estabelecer uma escala de valores para absorvê-las.
Estamos dentro da bolha da rede social na
internet, da qual é impossível fugir. A tarefa de sair tornou-se
inexpugnável. São tantas as versões que existem sobre uma verdade, que é
difícil descobrir onde está escondida a verdadeira mentira.
*Ex-presidente da República, escritor e
imortal da Academia Brasileira de Letras
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