O Globo
‘É um princípio inflexível do Poder
Judiciário, pouco importa quais são ou quais serão os inimigos da democracia,
os inimigos do Estado de Direito, sejam inimigos nacionais, sejam inimigos
internacionais. O país soberano como o Brasil sempre saberá defender sua
democracia.’ A declaração (pouco) cifrada de Alexandre de Moraes é sua resposta
à ameaça de sanções contra ele mesmo erguida pelo governo dos Estados Unidos.
Ela conecta explicitamente democracia, Estado de Direito e soberania nacional —
e, implicitamente, vincula os três princípios a sua própria pessoa.
O secretário de Estado Marco Rubio anunciou: estrangeiros que tentam censurar a palavra emitida nos Estados Unidos poderão sofrer restrições de vistos de entrada. Tudo indica que Moraes está entre os alvos. Mais: rumores persistentes sugerem que as sanções avançariam além do visto, por caminhos previstos na Lei Global Magnitsky.
Sergei Magnitsky, advogado opositor russo,
morreu numa prisão em 2009. A lei americana original, de 2012, circunscrita
à Rússia,
ganhou aplicação universal em 2016. Sua hipotética utilização contra Moraes
abriria um precedente: pela primeira vez, sanções dos Estados Unidos atingiriam
um juiz de Corte Suprema de um país democrático que mantém Judiciário
independente.
Mas a abrangência internacional das ordens de
Moraes oferece à Casa Branca um álibi eficiente. Rubio:
— É inaceitável que autoridades estrangeiras
emitam ou ameacem com mandados de prisão cidadãos americanos ou residentes
americanos por postagens em plataformas americanas em redes sociais enquanto
estiverem fisicamente presentes em solo americano.
Ele se refere às ordens para derrubada de
perfis de agitadores autoexilados nos Estados Unidos. Nesse passo, presta favor
a Bolsonaro, atendendo à solicitação de seu filhote deputado que opera na
Flórida.
Trump é o outro nome de hipocrisia. Seu
governo viola sistematicamente a liberdade de expressão consagrada pela
Primeira Emenda. Rubio aprisiona e deporta estrangeiros com vistos válidos (e
até direito de residência) que, sob a proteção da Primeira Emenda, criticam
Israel e a política externa americana. Os Estados Unidos perderam o lastro
moral do discurso sobre a liberdade de palavra.
Nos regimes de força, a invocação da
soberania nacional é uma perversão destinada a proteger as violações de
direitos humanos cometidas por autocratas que não representam a vontade
popular. Nas democracias, o cenário é diferente: a soberania nacional exprime a
soberania popular e coagula-se em instituições reguladas pelo Estado de
Direito. Por isso, a reação de Moraes assenta-se em solo firme. Sob essa ótica,
a única correção de rumo necessária seria a circunscrição das proibições de
perfis ao ecossistema nacional de redes sociais.
A denúncia da duplicidade da Casa Branca
ilumina o contexto político da ameaça a Moraes. O problema de fundo, porém, não
são os Estados Unidos, mas o atropelo das leis brasileiras pelo próprio STF.
A derrubada de perfis configura censura prévia. Os juízes supremos têm o
direito de vetar postagens criminosas que circulam no Brasil e de punir
legalmente seus autores, mas ignoram a Constituição quando embarcam na
interdição do discurso futuro.
As ordens judiciais de censura prévia
apoiaram-se no argumento da emergência nacional provocada pelo governo
Bolsonaro, que se empenhava na articulação de um golpe de Estado. Hoje, aquele
argumento transformou-se em mero pretexto. Bolsonaro e seus asseclas ocupam os
bancos dos réus.
Persistindo na estrada da excepcionalidade, o
STF erra duas vezes. Juridicamente, estabelece exceções à norma constitucional
que exclui a possibilidade de censura prévia — viola o Estado de Direito.
Politicamente, converte delinquentes menores em mártires de uma causa — oferece
um cilindro de oxigênio às correntes extremistas derrotadas pela democracia.
Moraes é um homem de sorte. Os comunicados
ameaçadores de Rubio desviam nosso debate público para o tema da soberania
nacional, propiciando-lhe a oportunidade de acusar seus críticos de
cumplicidade com o governo Trump. É um ardil velho e velhaco — mas costuma
funcionar.
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