terça-feira, 10 de junho de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Cadê as ‘medidas estruturantes’ para resolver crise fiscal?

O Globo

Executivo e Legislativo perdem outra oportunidade de apresentar propostas capazes de controlar dívida pública

É frustrante o pacote de medidas fiscais engendrado pela parceria entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, os presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), para contornar a crise desencadeada pelo aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Em entrevista ao GLOBO, Motta havia prometido se empenhar por “medidas estruturantes”, capazes de reverter a trajetória de descontrole da dívida pública. Pelo que veio à tona até agora — o anúncio oficial só deverá ser feito depois da chancela do presidente Luiz Inácio Lula da Silva —, nada parecido foi feito. O pacote se destaca mais pelo que deixou de fora do que pelo que traz. Mais uma vez, Executivo e Legislativo perderam uma oportunidade.

O aumento do IOF sofreu uma saraivada de críticas, o Congresso ameaçou derrubá-lo, depois entrou em negociações para buscar alternativas. Pelo acordo, o governo voltará atrás na alta do IOF em determinadas operações e mudará regras ou alíquotas noutras. A proposta prevê compensar a perda de arrecadação aumentando a taxação sobre as bets — gerando insegurança jurídica, pois a regulamentação acaba de ser aprovada —, unificando a alíquota de Imposto de Renda (IR) sobre aplicações financeiras, acabando com a isenção de IR sobre títulos como LCI e LCA e reduzindo benefícios tributários não protegidos pela Constituição. A decisão final sobre escopo e detalhes do pacote será feita ao longo da semana.

Embora a revisão de benefícios tributários seja meritória, o conjunto de medidas apenas reforça a estratégia do governo de equilibrar as contas arrecadando mais — e é claramente insuficiente. Se o objetivo era pavimentar um cenário sustentável para a dívida pública, a prioridade deveria ser desvincular o salário mínimo dos reajustes das aposentadorias e de todos os benefícios previdenciários. Ao restaurar a política de aumento do mínimo além da inflação, o PT fez explodir a conta da Previdência e da assistência social. Atualmente, a Previdência consome R$ 42,6 de cada R$ 100 gastos pelo governo federal. Sem a desvinculação, esse buraco só crescerá. Cada real de aumento no salário mínimo acarreta gastos extras de R$ 400 milhões ao ano.

Outra decisão estrutural ignorada pelo pacote é a necessidade de acabar com a vinculação das despesas com saúde e educação à arrecadação. Durante a vigência do teto de gastos, não havia relação entre o recolhimento de impostos e as duas áreas. Com o novo arcabouço fiscal em 2023, voltou a valer a vinculação, e as despesas obrigatórias no Orçamento passaram a ocupar espaço ainda maior. Dos R$ 2,2 trilhões em gastos previstos para este ano, apenas R$ 211 bilhões são livres, destinados a investimento e custeio da máquina. E, desse valor exíguo, ainda saem R$ 50,4 bilhões das famigeradas emendas parlamentares — também ignoradas no pacote.

Com um governo populista disposto a entregar benesses insustentáveis e um Congresso incapaz de rever as emendas ou de cumprir o compromisso assumido, o desequilíbrio das contas públicas continuará a ser uma espada sobre a cabeça dos brasileiros. O acordo pode ser politicamente mais confortável para aqueles que o firmaram, mas mantém intacta a certeza de crise grave mais à frente. Tal situação não mudará até que as prometidas “medidas estruturantes” se tornem realidade.

Ação desastrosa do Bope durante festa junina deve ser investigada

O Globo

Operação deixou um morto e cinco feridos. Governador fez bem em exonerar comando e afastar policiais

É preciso investigar a fundo a desastrosa ação do Batalhão de Operações Especiais (Bope), tropa de elite da PM fluminense, que deixou um morto e cinco feridos à bala — todos sem antecedente criminal — no Morro Santo Amaro, Zona Sul do Rio. A incursão aconteceu na madrugada de sábado, durante festa junina com apresentação de quadrilhas, presença de crianças e adolescentes. A Secretaria de Polícia Militar alegou que agentes foram recebidos a tiros durante ação emergencial para verificar invasão do local por uma facção criminosa. O governador Cláudio Castro mandou exonerar os comandantes do Bope, coronel Aristheu Lopes, e do Comando de Operações Especiais (COE), coronel André Luiz de Souza Batista.

Os tiros, cuja origem está sob investigação, mataram um jovem de 23 anos que trabalhava como office boy numa imobiliária e assistia à apresentação das quadrilhas com os pais. A mãe acusa os PMs de ter dificultado o socorro à vítima. Dos cinco baleados, um ainda permanecia ontem em estado grave.

Fez bem o governador do Rio, Cláudio Castro, em determinar o afastamento de 12 policiais que participaram da operação. Um policial civil que disparou tiros para o alto durante protesto de moradores foi preso em flagrante. Castro prometeu que as investigações serão conduzidas com “extremo rigor” pela Polícia Civil e pela Corregedoria da PM. E que todas as imagens de câmeras corporais serão fornecidas aos inquéritos. É o mínimo. É essencial esclarecer por que foi autorizada uma operação policial quando acontecia uma festa com dezenas de pessoas nas ruas. Os riscos eram evidentes.

Muito se discutiu a letalidade policial no contexto da ADPF das Favelas. Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal retirou as restrições que engessavam o trabalho da polícia, dando-lhe independência para agir diante do grave problema da segurança pública no Rio. Grandes extensões territoriais estão dominadas por organizações criminosas que impõem o terror e achacam moradores. A polícia precisa combatê-las nesses locais. Mas não tem salvo-conduto para disparar a esmo.

Legítimas e necessárias, operações policiais precisam ser bem planejadas para que seus objetivos de segurança sejam alcançados sem expor a vida de inocentes. Tal como aconteceu noutra operação na comunidade da Maré no mês passado, comandada pelos mesmos oficiais agora exonerados. Pautada por inteligência e ampla investigação, ela teve como alvo o traficante TH, procurado havia mais de uma década, com mais de 227 anotações criminais. Ele acabou morrendo no confronto.

Não parece ter sido o caso da ação no Santo Amaro. O próprio secretário da Polícia Militar, coronel Marcelo de Menezes Nogueira, admitiu que houve erro de planejamento. É fundamental que, além das investigações da Polícia Civil e da Corregedoria, o MP faça apuração independente. É cedo para apontar culpados, mas, se comprovadas faltas graves, os responsáveis terão de ser punidos. O caso pode também balizar outras operações. A polícia deveria tirar lições da tragédia.

Pacote fiscal perde mais uma oportunidade de cortar gastos

Valor Econômico

Há maneiras de estancar o crescimento acelerado dos gastos obrigatórios, mas o Planalto apenas quer mais receita para cobri-los

A reunião entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, os presidentes da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (UB-AP), e líderes de partidos da base governista, no domingo à noite, feita para discutir alternativas ao malfadado aumento do IOF, terminou com um suposto acordo. Nele, o IOF sobrevive atenuado; e há aumentos de imposto de renda que se esparramam por todas as letras dos investimentos com isenção tributária (LCA, LCI, CRA, CRI, CPR, FII, LIG, FIDCs e LCD, e debêntures incentivadas), além de elevação da CSLL para fintechs. As discussões prosseguem, mas a única coisa segura é que não se mencionou qualquer corte de gastos. O governo entrou com a ideia de arrumar mais receitas para mais despesas e saiu do encontro com a mesma fórmula. Não se viu uma cobrança do Congresso também.

Após cinco horas de reunião, houve um acordo frouxo, que ainda pode ser rejeitado. No seminário “Agenda Brasil: o cenário fiscal brasileiro”, promovido pelo Valor, rádio CBN e jornal O Globo, realizado no auditório do Insper, em São Paulo, Motta disse que o Congresso não tem obrigação de aprovar as alternativas expostas por Haddad. Como a oposição não participou do encontro e os partidos da base governista têm constantemente contribuído nas votações para derrotar os projetos do governo, o espectro da rejeição ainda ronda as propostas oficiais. Haddad conseguiu pelo menos impedir que projetos de decreto legislativo que derrubariam o aumento do IOF fossem para votação hoje.

O governo pretendia arrecadar R$ 20,1 bilhões com o aumento do IOF este ano e R$ 41 bilhões no ano que vem. Sob intensas críticas, a respeito da natureza diversa do IOF, que não tem fins arrecadatórios, e do encarecimento do crédito às atividades produtivas que acarretará, em um momento de juros muito elevados, Haddad amenizou o peso imaginado do IOF, sem abrir mão da medida, no entanto. Ele deve diminuir a alíquota sobre o crédito, propôs a redução de 80% do IOF sobre o “risco sacado”, operação de adiantamento de recursos a fornecedores, e prometeu atenuar a cobrança de aportes superiores a R$ 50 mil mensais, que pagariam IOF de 5%. Agora, o imposto terá como base aportes anuais, com taxação apenas sobre o que exceder a quantia de R$ 600 mil ao ano. Foi mantido o plano de aumento de taxação sobre as bets, o que cria insegurança jurídica logo após a acertada regulamentação do setor.

Com as mudanças no IOF, o ministro calculou que o potencial de arrecadação diminuiu para um terço do projetado originalmente. Algumas das ideias preliminares opcionais não foram discutidas na reunião, como o uso de R$ 28,9 bilhões das reservas de lucros do BNDES, Petrobras e Banco do Brasil, que se tornariam pagamento de dividendos à União. Ou então a venda antecipada dos direitos de produção de petróleo e gás em áreas do pré-sal, o que poderia trazer recursos de R$ 37 bilhões. Nenhuma dessas receitas resolve o problema de fundo, o de o governo gastar mais do que arrecada, e de que quanto mais arrecada mais gasta, pelas regras do regime fiscal. Podem ser, entretanto, cartas ainda na manga do governo para impedir novos bloqueios e contingenciamentos, ou ainda, aliviar os existentes, de R$ 31,3 bilhões.

Para 2026, a instituição de 5% em um leque de aplicações financeiras hoje isentas tem grande potencial de arrecadação. Pela legislação, o IR não pode ser aumentado durante o exercício fiscal e as aplicações só serão taxadas no ano que vem. Cálculos aproximados sugerem que os estoques delas, que não serão objeto de imposto, se aproximam de R$ 1,8 trilhão. Estudo do BNDES com todos os investimentos isentos no ano de 2023 identificou um estoque conjunto equivalente a 13,2% do PIB. Supondo que um quarto desse estoque seja renovado em 2026, é possível arrecadar cerca de R$ 20 bilhões a R$ 25 bilhões com a introdução do IR.

Não se sabe se é para valer a proposta de eliminar as alíquotas diferenciadas do IR por prazo de aplicação — hoje de 15% a 22,5% — em favor de apenas uma, de 17,5%. O objetivo da diferenciação, assim como da isenção de debêntures incentivadas, LCI e outros títulos, é incentivar as aplicações de mais longo prazo. Em uma economia instável, como a brasileira, a preferência pelo curto prazo tende a ser preponderante, de forma que a arrecadação do IR pode cair ao se eliminar alíquotas maiores sobre períodos curtos. O incentivo tributário para investimentos acima de dois anos deixa de existir, o que não parece ser uma medida saudável. Não é possível afirmar nada com certeza, pois as medidas não foram oficialmente detalhadas.

A cada pacote de medidas, o governo tenta evitar o acerto de contas necessário. O regime fiscal, modificado em seu primeiro ano, garantiu ao governo Lula que não precisaria obter qualquer saldo positivo em seus quatro anos de gestão. E para ele chegar apenas ao déficit zero em 2026 terá de fazer muito esforço. No entanto, com a economia aquecida, não há qualquer problema de arrecadação, que segue vigorosa e avançando acima da inflação. Há maneiras de estancar o crescimento acelerado dos gastos obrigatórios, mas o Planalto apenas quer mais receita para cobri-los. Com uma eleição que se aproxima, não fará agora o que não fez antes. O Congresso pode até barrar aumento de impostos, mas não tem vontade manifesta de fazê-lo reduzir despesas.

Pacote alternativo ao IOF é frágil e incerto

Folha de S. Paulo

Negociação entre Fazenda e Congresso resulta em propostas de alta de impostos para as quais nem há promessa de aprovação

O resultado dos entendimentos entre a equipe econômica do governo e lideranças do Congresso Nacional para alternativas ao aumento do IOF, enfim anunciado, só não é decepcionante porque não seria sensato esperar nada melhor.

A Fazenda até expôs corretamente parte dos gargalos que levam ao descontrole das contas públicas, como a expansão das concessões judiciais do Benefício de Prestação Continuada (BPC), dos repasses ao Fundeb, das emendas parlamentares e de transferências da União para estados e municípios.

Nada disso, porém, bastou para que se chegasse a medidas ditas "estruturantes" para o controle. Mais uma vez, as ideias se limitaram a subir impostos de modo improvisado. Fora isso, há apenas uma vaga promessa de reduzir benefícios fiscais (os chamados gastos tributários), em formato ainda a ser definido.

O Executivo propôs, para compensar o alívio de 65% da alta do IOF, ampla modificação na taxação de instrumentos financeiros, além de carga maior sobre as empresas de apostas online —a princípio defensável, embora seja preciso conhecer as estimativas de impacto.

Papéis com rendimentos hoje isentos passam a pagar 5%, caso de LCI e afins (voltados ao setor imobiliário), LCA (agronegócio) e debêntures de infraestrutura.

A cobrança geral sobre renda fixa será estabelecida em 17,5%, qualquer que seja o prazo da aplicação. Outras receitas são esperadas com o aumento da tributação de juros sobre o capital próprio, de 15% para 20%, e das alíquotas da contribuição social incidentes sobre fintechs.

Embora desejáveis do ponto de vista de harmonização do mercado de capitais, tais alterações sobre os rendimentos financeiros deveriam vir no bojo de uma reforma ampla do Imposto de Renda, em vez de serem tratadas de maneira emergencial por meio de uma medida provisória.

Mais ainda, assim como a tentativa de elevar o IOF sofreu oposição que obrigou o Palácio do Planalto a recuar, o novo e frágil acordo já é alvo de mobilizações contrárias. Não por acaso, poucas horas após o suposto entendimento, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), afirmou que não há compromisso com a aprovação da MP.

O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem diante de si um problema que é de sua própria lavra: restaurar alguma disciplina orçamentária —depois de dois anos de gastança patrocinada pelo Executivo e alegremente acompanhada pelo Congresso— demanda medidas difíceis, mas o apetite para reformas é escasso.

Com a proximidade das eleições gerais de 2026, deputados e senadores priorizam interesses de curto prazo. O presidente da República, que já desperdiçou a oportunidade de fazer o necessário no início do mandato, agora está mais preocupado com a corrosão de sua popularidade e prefere deixar os desgastes para seu ministro da Fazenda.

É preciso aplicar normas contra racismo no futebol

Folha de S. Paulo

Fifa reformula regras de combate à discriminação, com aumento de multas; é necessária uma mudança de cultura no esporte

A Federação Internacional de Futebol estabeleceu punições mais duras contra o racismo e notificou as 211 entidades filiadas para que revejam as suas normas internas até o final do ano. Trata-se de medida necessária para coibir atos intoleráveis de preconceito continuem a ocorrer nos estádios.

Assim, a Fifa reforça a exigência de cumprimento do seu Código Disciplinar, que já prevê ações para identificar e punir responsáveis por episódios de discriminação, independentemente de processos nas Justiças locais.

Pelas novas regras, a punição varia de multa de 20 mil francos suíços (cerca de R$ 137 mil) a 5 milhões na mesma moeda (R$ 34,2 milhões), além da restrição de público —para corrigir um caso de impacto desproporcional para o punido, o valor pode cair a 1.000 francos suíços (R$ 6.800).

A entidade exige também o respeito ao seu protocolo, que assegura resposta imediata. A partida precisa ser interrompida assim que um jogador ou o árbitro façam o gesto indicativo de racismo (braços cruzados), ou caso um representante do torneio informe ao árbitro. Se o incidente não cessar, o jogo poder

As medidas servem para dar efetividade às normas dos códigos disciplinares de clubes, federações e confederações que já punem discriminação. A partir de agora, em casos atípicos, a Fifa pode entrar com uma apelação direta no CAS (corte de arbitragem do esporte) contra a decisão de uma entidade sobre comportamento racista em campo.

A reformulação do ordenamento é adequada, quando se considera que o futebol ainda é um esporte no qual episódios do tipo são recorrentes.

Num deles, em março, o ataque foi direcionado a um jogador do time sub-20 do Palmeiras, Luighi Hanri, durante partida contra o Cerro Porteño pela Copa Libertadores, no Paraguai. Torcedores do time rival fizeram gestos racistas contra o brasileiro.

O caso levou a uma troca de acusações entre os chefes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol). O Cerro Porteño foi condenado a pagar multa de US$ 50 mil (R$ 287 mil) —criticada por ser considerada branda— e a Conmebol instituiu um grupo de combate ao racismo.

O reforço da Fifa é bem-vindo como iniciativa para tirar as normas do papel. Mas a recorrência e a gravidade dos atos indicam que, além das punições, uma mudança de cultura no futebol é imprescindível. Racismo não faz parte do jogo.

Marco institucional contra o golpismo

O Estado de S. Paulo

Interrogatórios de Bolsonaro e corréus no STF, incluindo militares de alta patente, são inflexão histórica no enfrentamento de sedições que afirma a força do Estado de Direito no País

O Supremo Tribunal Federal (STF) começou ontem as oitivas dos réus que compõem o chamado “núcleo crucial” da tentativa de golpe de Estado urdida em 2022. Ao longo desta semana, estarão diante da Primeira Turma do STF o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete corréus, entre os quais figuram três generais de quatro estrelas, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto, e um almirante de esquadra, Almir Garnier, ex-comandante da Marinha. O primeiro a ser ouvido foi o tenente-coronel Mauro Cid, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro que se tornou réu colaborador.

Não é trivial o que a sociedade verá nos próximos dias. Seja qual for o teor das oitivas, está-se diante de um marco institucional contra o golpismo sem precedentes na história republicana do País. Afinal, é fato incontrastável que todos os golpes de Estado ou tentativas de ruptura da ordem constitucional havidos no período contaram com participação das Forças Armadas, em particular do Exército. No entanto, esta é a primeira vez que civis e militares graduados envolvidos numa sedição prestam contas à Justiça dentro de um contexto político e social que torna a pena de prisão um desdobramento concreto.

Essa inflexão histórica é digna de registro. Os civis e militares denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por suspeita de participação numa conspiração para impedir a posse de Lula da Silva, presidente legitimamente eleito em 2022, agora se veem obrigados a prestar contas de seus atos perante a Justiça. É de notar, ainda, que a eles estão asseguradas todas as garantias processuais que caracterizam o mesmo Estado de Direito que tentaram derrubar. O simbolismo é imenso, independentemente dos efeitos jurídico-penais deste julgamento. A tutela militar sobre os rumos da política nacional, um resquício da visão anacrônica, paternalista e autoritária de parte das Forças Armadas sobre a vida civil, está sendo finalmente confrontada dentro das mais sólidas balizas constitucionais.

Sentar-se no banco dos réus não é um atestado de culpa. A presunção de inocência é um princípio basilar de qualquer democracia digna do nome. Mas não é irrelevante o fato de a Polícia Federal, a PGR e o STF terem avançado tanto na responsabilização daqueles que, segundo o parquet, estiveram à frente de uma desabrida tentativa de golpe de Estado.

Ao fim e ao cabo, no curso do julgamento, o País encara de forma corajosa e institucional um triste legado de insubordinação ao poder político civil que ainda anima os liberticidas que desonram a farda. Esse espírito golpista, por tudo o que se viu, só estava adormecido na Nova República, sob a égide da “Constituição Cidadã”, até Bolsonaro ascender à Presidência e reanimá-lo como o mau militar e inimigo da democracia que sempre foi.

Como este jornal já alertou não poucas vezes, o julgamento dos envolvidos na trama golpista não pode apenas ser imparcial, precisa parecê-lo, ainda que para os bolsonaristas mais empedernidos a eventual condenação dos réus seja vista como “perseguição” politicamente motivada. Até aqui, porém, é de reconhecer a maturidade demonstrada pelas instituições republicanas diante das graves e inauditas condutas em julgamento. Não há o que macule a legalidade da ação penal contra Bolsonaro e seus corréus num processo no qual, repita-se, estão asseguradas a eles as garantias democráticas que certamente seriam negadas a adversários políticos caso o golpe de Estado tivesse sido bem-sucedido.

Ao trazer à luz as entranhas de uma conspiração que poderia ter mergulhado o Brasil no caos, o início desta fase determinante do julgamento no STF serve como uma espécie de renovação de votos num futuro no qual o regime democrático não seja apenas um pacto formal inscrito na Lei Maior, mas uma experiência social, política e institucional viva, amparada pela responsabilidade, transparência e justiça daqueles incumbidos de exercer o múnus público.

O País precisa virar essa página sombria, mas só depois de tê-la lido com atenção e dela ter extraído as devidas lições.

Mais do mesmo

O Estado de S. Paulo

Em reunião com Congresso para impedir derrubada do decreto do IOF, governo volta a recorrer a medidas para aumentar arrecadação sem alterar dinâmica explosiva do gasto público

Encurralado pela ameaça de derrubada do decreto que elevou o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) pelo Congresso, o governo apresentou às lideranças do Legislativo um novo pacote para substituir a proposta inicial e salvar a meta fiscal. Mais uma vez, o Executivo recorreu a alternativas para aumentar a arrecadação, deixando de lado reformas estruturais capazes de alterar a dinâmica do gasto público.

Convocada em pleno domingo, a reunião entre ministros do governo e parlamentares durou quase seis horas e avançou pela noite, sugerindo um plano ambicioso de reequilíbrio das contas públicas. Mas a entrevista coletiva concedida na residência oficial da Câmara frustrou quem esperava o anúncio de um pacto entre os poderes em nome da responsabilidade fiscal.

O decreto do IOF será recalibrado, com ajustes nas operações de crédito e câmbio que reduzirão a arrecadação que se projetava. O principal deles diz respeito a operações de risco sacado, que permitem a antecipação de recebíveis por fornecedores pequenos e médios tendo como garantia vendas para grandes empresas. Depois de muitas críticas, elas não terão mais alíquota fixa, mantendo apenas a variável, o que reduzirá a taxação inicialmente prevista pelo decreto em 80%.

Para compensar essas perdas, o Executivo editará uma medida provisória que tributará títulos de renda fixa atualmente isentos, como as Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e do Agronegócio (LCA), com alíquota de Imposto de Renda de 5%. Aplicações financeiras terão alíquota única de IR de 17,5%, e não mais escalonada conforme o prazo em que o investimento é mantido em carteira.

As apostas online, cuja tributação sobre a receita bruta havia sido fixada em 12% pelo Congresso, terão taxa de 18%, como o Executivo havia proposto originalmente. A Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) deixará de ter alíquota padrão de 9%, que valia para instituições financeiras, como fintechs, e passará a ter apenas as mais altas, de 15% e 20%.

Na área de despesas, ao contrário do que havia sido aventado na semana passada, o pacote não tocará nas vacas sagradas do Orçamento. Não haverá mudanças nos pisos constitucionais da saúde e da educação, hoje vinculados ao comportamento das receitas, e benefícios assistenciais e previdenciários permanecerão atrelados ao salário mínimo.

No lugar delas, a equipe econômica sugeriu uma proposta de redução linear, de 10%, em benefícios fiscais via projeto de lei complementar. De saída, foram descartadas mudanças em alguns dos maiores gastos tributários da União, tais como Zona Franca de Manaus, Simples Nacional, cesta básica e entidades filantrópicas e sem fins lucrativos.

O Executivo também mencionou a evolução, ao longo do ano, de despesas com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), os Fundos de Participação de Estados (FPE) e Municípios (FPM) e as emendas parlamentares, mas ainda não há acordo sobre esses temas.

Ainda assim, o pacote já gerou descontentamento. Ladeado pelos presidentes da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), o ministro da Fazenda chegou a classificar a reunião como “histórica”, mas o clima que parecia amistoso na noite de domingo era outro na manhã de segunda-feira.

A medida provisória, segundo Haddad, só será enviada ao Congresso depois que o presidente Lula da Silva retornar da França, mas Motta já disse não haver compromisso dos parlamentares em aprová-la – provavelmente em razão do incômodo da bancada ruralista e do setor imobiliário com a taxação da LCA e da LCI, ainda que ambos mantenham vantagens sobre outros produtos financeiros.

O problema de fundo permanece e deve se agravar quando o governo detalhar a parte mais sensível do pacote: a redução linear dos benefícios fiscais. Motta já não descarta a possibilidade de que, em dois ou três meses, esse debate se repita e novas medidas para aumentar a arrecadação sejam discutidas.

Um tiro na democracia

O Estado de S. Paulo

Atentado contra oposicionista colombiano expõe o custo da irresponsabilidade política

O atentado que deixou o senador da oposição Miguel Uribe Turbay entre a vida e a morte não é só mais um episódio de violência política. É um abalo sísmico que atinge os fundamentos da democracia colombiana. A tentativa de execução em praça pública de um pré-candidato à Presidência, herdeiro de uma das famílias abatidas pelo terror dos anos 1990, revive o trauma dos magnicídios na Colômbia, que se vê, mais uma vez, diante do espelho de sua trágica história.

Como nas disputas eleitorais sangrentas de 1986 e 1990, quando quatro candidatos foram assassinados, o país volta a confrontar a ameaça da eliminação física como método político. E, mais uma vez, o Estado se revela incapaz de garantir o básico: a proteção da vida daqueles que pretendem governá-lo.

O tiro na cabeça de Uribe por um sicário de 15 anos, provavelmente recrutado por redes criminosas, é, antes de tudo, um tiro no coração da democracia. Mas também é sintoma de instituições frágeis, de uma Justiça lerda e seletiva, da infiltração do crime organizado nas entranhas do poder e de uma sociedade habituada à estigmatização de quem pensa diferente. É um sinal de que a violência política, longe de ter sido superada com o Acordo de Paz de 2016, foi reciclada e continua a moldar os destinos do país.

Há responsabilidade difusa. Tanto a oposição quanto o governo, a direita e a esquerda, contribuíram para alimentar ressentimentos sociais com discursos incendiários.

O presidente Gustavo Petro, em especial, falha vergonhosamente. Ao vilipendiar recentemente congressistas contrários aos seus plebiscitos por decreto como “escravistas” e “nazistas” ou brandir a espada de Bolívar vociferando contra adversários, o ex-guerrilheiro abastardou a autoridade de sua própria função e tensionou as instituições num momento em que o país mais precisava de equilíbrio. Mais lamentável foi sua reação ao atentado. Empregando o episódio para inflamar antagonismos de classe com analogias entre empresários e “patrões que vinham pelo ouro”, ou atacando críticos como “ratos de esgoto”, o presidente acirrou divisões num momento em que deveria convocar a unidade. Ao invés de liderar como estadista, Petro conjurou fantasmas de um passado que o país deveria estar deixando para trás.

A Colômbia precisa blindar a política contra as armas, proteger suas campanhas da intimidação e restaurar o respeito ao dissenso. Precisa, sobretudo, de lideranças pacificadoras, como já teve em momentos críticos, se quiser romper os ciclos de violência que transformam filhos de vítimas – como o prefeito de Bogotá Carlos Fernando Galán, a senadora María José Pizarro e o próprio Uribe – em protagonistas de uma tragédia sem fim.

A urgência de um choque de civilidade, firmeza institucional e desescalada retórica extrapola a Colômbia. Num continente onde o crime organizado se alastra, as instituições se fragilizam e a polarização se acirra, o atentado é uma advertência de que, quando a retórica política perde o rumo, a barbárie abre caminho – e políticos que deveriam ser vencidos nas urnas são silenciados a bala.

Duelo ideológico é ameaça à democracia

Correio Braziliense

Diante da convivência conflitante entre os Poderes, o risco de retrocessos é elevado, o que impõe aos parlamentares e aos cidadãos a responsabilidade de impedir que os avanços duramente conquistados na luta pela redemocratização sejam destruídos

O cenário de violência e depredação das sedes do Executivo, Legislativo e Judiciário, em 8 de janeiro de 2023, surpreendeu a maioria da sociedade brasileira. Era a materialização do discurso de ódio que preponderou desde as eleições de 2018 e dividiu o país —  de um lado, democratas e, de outro, saudosistas do hediondo período da ditadura militar (1964-1985). A tomada da Praça dos Três Poderes seria a largada para concretizar a trama golpista contra o Estado Democrático de Direito que, se concluída, impediria a volta, pela terceira vez, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto.

A tentativa de golpe foi frustrada. Porém, não foi compreendida dessa maneira por parcela expressiva da sociedade. Tanto em meio à população quanto no Congresso Nacional, é possível testemunhar graves embates entre grupos de extrema-direita, favoráveis à ditadura, e  democratas que rejeitam a possibilidade de o país reviver o obscuro regime de exceção. 

Nesta segunda-feira, os acusados de planejar e liderar o 8 de Janeiro começaram a ser interrogados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator do inquérito sobre a trama golpista que apura a responsabilidade das autoridades do governo passado. O ministro Moraes era uma das autoridades que estavam na mira dos golpistas. Ele, o presidente Lula e o vice-presidente Geraldo Alckmin deveriam ser assassinados para que Jair Bolsonaro continuasse sendo o ocupante do Palácio do Planalto, com o apoio de uma parcela das Forças Armadas, conforme investigação da Polícia Federal. Seria a retomada do poder para dar um fim ao regime democrático.

E não se trata de tentativa única. A Constituição Federal promulgada em 5 outubro de 1998 tem recebido inúmeras emendas que comprometem a sua versão original, produzida a partir da larga participação de todas as camadas da população brasileira. Não foi uma obra exclusiva de deputados e senadores, mas de uma sociedade ávida por mudanças no país após 21 anos de opressão, tortura e mortes. 

Ao Correio, o senador Paulo Paim (PT-RS), um dos constituintes como deputado federal, afirmou que  as proposições apresentadas colocam em risco direitos históricos, conquistados principalmente pelos mais vulneráveis. "O Congresso atual, com a correlação  de forças que temos, não escreveria melhor do que o de 1988", enfatizou o parlamentar, que também se disse preocupado com o ineditismo da "ascensão de grupos de extrema-direita com discurso de ódio" e que colocam "a democracia em risco".

O temor de Paim tem sentido. A relação pouco amigável entre Congresso e Executivo reforça a possibilidade apontada. Diante da convivência conflitante entre os Poderes, o risco de retrocessos é elevado, o que impõe aos parlamentares e aos cidadãos a responsabilidade de impedir que os avanços duramente conquistados na luta pela redemocratização sejam destruídos e o país perca valores democráticos. Vive-se num país em que, apesar dos esforços de vários segmentos, ainda há um longo caminho a se percorrer para traduzir em realidade a máxima de que "todos são iguais perante as leis" — até hoje, uma ilusão.

A violência política na Colômbia

O Povo (CE)

O episódio de violência na Colômbia, sábado passado, quando um pré-candidato à presidência foi alvo de um atentado e até agora luta pela sua sobrevivência, merece uma reflexão que vá além dos limites determinados pela geografia. Trata-se de algo que diz respeito, no seu sentido trágico e na perspectiva de localizar suas causas, à vivência de um momento delicado que a política experimenta em seu âmbito global e, infelizmente, que também diz respeito à realidade atual do Brasil.

A Colômbia tem um histórico de episódios violentos no seu conturbado cenário político que, de certa forma, até ajudam a explicar o que aconteceu com Miguel Uribe Turbay, jovem senador de direita que circulava pelo país apresentando-se como uma das alternativas de oposição ao governo de Gustavo Petro, ideologicamente posicionado mais à esquerda. A própria vítima deste caso recente chorou, no passado, a perda de sua mãe, a jornalista Diana Turbay, tragicamente morta numa situação confusa que envolvia o cartel de drogas comandado pelo notório Pablo escolar num momento em que os traficantes disputavam o controle do Estado com o próprio governo. No caso, falamos dos anos 1990.

A ação de agora assumida por um garoto de 15 anos, que atirou contra a vítima durante ato em bairro popular da capital, Bogotá, vai enriquecer uma estatística colombiana macabra que acumula muitas mortes vinculadas a disputas eleitorais. Há registro de pelo menos cinco assassinatos de pré-candidatos ou candidatos ao longo da história.

É um cenário agravado pela polarização que hoje marca a atividade política mundial, em muitas situações transformando adversários em inimigos. Diferenças políticas e ideológicas acabam gerando desavenças pessoais e um quadro que termina alimentado pelo ódio mútuo em boa parte dos casos.

Claro que seria irresponsabilidade, quanto à necessidade de entender se há razões por trás do gesto e se ele atende outros interesses, apontar responsáveis pelo atentado além do garoto, detido e já entregue às autoridades. É fundamental que o mandante de uma ação que parecia ter como objetivo tirar do cenário o jovem senador, de apenas 39 anos, caso exista, seja identificado, e preso, claro, como forma de acalmar os espíritos no vizinho e simpático país sul-americano.

A sociedade, no plano global, precisa reencontrar o caminho da racionalidade no processo de disputa pelo poder. É isso que a democracia prevê e permite, através dos instrumentos institucionais que disponibiliza para que a sociedade assuma o controle das decisões sobre quem deve governá-la, através do voto.

Não faz sentido que a violência, em pleno ano de 2025, seja vista como alternativa de conquista de um governo ou como meio para impedir que um adversário o alcance. Por enquanto, resta-nos cobrar de quem dirige a Colômbia um esforço absoluto para esclarecer o que aconteceu, É a única resposta que se aceita para a crise imensa que se abriu diante dele. 

 

 

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