O Globo
Rituais de inferiorização social são um resto
abominável de uma sociedade escravocrata, aristocrática e patrimonialista
Acabamos legalmente com a escravidão em 1888,
mas a escravidão não nos deixou. Ela sobrevive nos costumes e no comportamento
dos reacionários que abominam a vertente igualitária legitimadora das
divergências constitucionais nas democracias.
A escravidão foi abolida, mas não abolimos
essas expressões coléricas, reveladoras de quem se pensa senhorialmente e,
assim, se arroga a distribuir inferioridade aos adversários, numa clara aversão
à equidade.
São rotineiras as manifestações anti-igualitárias no nosso mundo de pessoas “livres”, mas que não são consideradas iguais entre si, como comprova a vergonhosa emboscada que alguns senadores armaram para a ministra Marina Silva.
Agressões verbais destinadas a inferiorizar
são comuns em ambientes igualitários como o trânsito, as filas e outros espaços
onde somos obrigados a esperar ao lado de desconhecidos — essa gente que não
sabemos classificar—, o que os torna candidatos a uma inferioridade tácita.
Na minha obra, tenho afirmado que esses
rituais de inferiorização social são resto abominável de uma sociedade
escravocrata, aristocrática e patrimonialista, dominada por letrados
estadomaníacos, convencidos de que a sociedade será resolvida por um Estado
onipotente, administrado por sábios-salvadores inimputáveis.
Dessa estadolatria decorre um triste axioma
do poder à brasileira: a correspondência entre impunidade e cargos públicos,
cujos ocupantes, blindados por suas prerrogativas, são isentos de igualdade.
Num livro baseado em pesquisa, intitulado “Fila & democracia”, publicado em
2017, Alberto Junqueira e eu demonstramos essa ojeriza à equidade — essa
hóspede indesejável dos regimes democráticos.
Sentimos a tonelagem dessa questão quando nos
damos conta de que, por quatro séculos, espaços públicos inquestionavelmente
ordenados por senhores e escravos foram formalmente redefinidos pela República.
Um regime que os reacionários leem como subversivo, pois como adotar liberdade
e igualdade numa sociedade que amarrava casas-grandes e senzalas? O senhor e o
escravo, como disseram Joaquim Nabuco e Gilberto Freyre?
Como institucionalizar a igualdade numa
coletividade formada por negros africanos escravizados, senhores autocráticos e
por bacharéis fazedores de leis universais válidas somente para seus
adversários? Como um sistema fundado no “cada qual sabe bem seu lugar” não
reagiria a uma incômoda equidade?
Uma saída desvirtuada para a igualdade como
valor é esse conjunto de expressões saudosas das antigas hierarquias: “Ponha-se
no seu devido lugar!”, “Quem você pensa que é?”, “Você sabe quem eu sou?”,
“Quem manda aqui sou eu!”, “Se continuar assim, dou-lhe voz de prisão!”.
E o assustadoramente anti-igualitário “Você
sabe com quem está falando?”, que, neste país onde todo mundo é culto e
progressista, além de conhecedor de política e sociologia, jamais foi analisado
como rito autoritário, revelador de uma palpável nostalgia da escravidão
hierárquica. Sistema escravocrata formador do nosso sistema cultural, em que o
saber do seu lugar era (e ainda é) algo prescritivo e imprescindível.
Tais expressões não são anedotas passageiras
ou mera falta de educação aplicável a desconhecidos ou adversários políticos.
Não! Além de sua desprezível selvageria política, elas são expressões de uma
história que requer bocas mais fechadas e olhos mais abertos.
Impossível apagar um passado que se reafirma
nos particularismos ilegais e nas ambiguidades e malandragens do jogo político,
que, numa democracia, não deveria ser um jogo, mas um seriíssimo trabalho de
construção e correção nacional.
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