terça-feira, 24 de junho de 2025

Temos um Congresso disfuncional, diz Sérgio Abranches

Joelmir Tavares / Valor Econômico

Cientista político vê 'enrascada de governabilidade' que não ficará restrita a Lula

O Brasil “está numa enrascada de governabilidade”, que vai além das deficiências do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), avalia o cientista político e sociólogo Sérgio Abranches. Em 1988, ele criou o conceito de “presidencialismo de coalizão” para descrever o modelo brasileiro em que a Presidência da República monta aliança ampla no Congresso para avançar sua agenda.

Em entrevista ao Valor, Abranches avalia que o Legislativo esvaziou funções do Executivo, com a disparada no valor de emendas parlamentares. Além disso, deixou de “pensar no coletivo” para se ocupar de interesses próprios e da busca por reeleição de seus membros. “Com esse tipo de Congresso, nenhuma reforma estrutural vai acontecer”, afirma.

A seguir, os principais trechos:

Valor: O presidencialismo de coalizão está funcionando no contexto atual das relações entre Executivo e Congresso ou passa por alguma disfuncionalidade?

Sérgio Abranches: Ele não deixou de existir, porque é uma característica estrutural do nosso modelo político, com federalismo e multipartidarismo, mas não está funcionando, e não é de agora. A entrega do governo para o Congresso começou com Michel Temer e degringolou de vez no governo Jair Bolsonaro, com uma transferência definitiva de poder sobre a execução do orçamento. A abundância de emendas e dos fundos eleitoral e partidário faz com que os parlamentares não dependam mais do governo, que deixou de ter recursos para administrar uma coalizão. Anabolizados por esses recursos, os partidos do centrão cresceram muito, resultando num descompasso ainda maior com a representação ligada ao presidente [Lula], de partidos à esquerda.

Valor: Existem outras razões para o governo não ter base sólida?

Abranches: O Brasil está numa enrascada de governabilidade. O centrão tem a maioria e é completamente invertebrado, o que faz com que não sirva de base para coalizão majoritária de governo nenhum. São partidos dominados por interesses muito particularistas e muito pequenos, associados a grupos de pressão, a lobbies poderosos. Na derrubada dos vetos [de Lula, na semana passada], vimos o lobby dos setores de gás e carvão, por exemplo.

Temos um Congresso que é disfuncional para a sociedade. Ele não pensa mais no coletivo, só nos interesses particulares e locais. A composição atual não oferece a possibilidade de coalizões majoritárias que sigam a orientação do governo. Por isso, não existe base. Nas votações que têm derrotado o governo, em torno de 60% dos votos são de partidos com ministério. As legendas já não respondem de forma coesa aos comandos, como antes.

Valor: O que a queda de braço em torno do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e a pressão do Congresso por corte de gastos significam, do ponto de vista de equilíbrio entre os Poderes?

Abranches: Há um desequilíbrio institucional no ar. E há também perda de qualidade das bancadas, com representantes do centrão que desfazem acordos à sua vontade. Nunca tinha visto o Congresso dando ultimato a presidente. É uma anomalia. O governo chama os presidentes das duas Casas do Congresso, faz uma negociação, e 24 horas depois o acerto é rompido, unilateralmente, antes que o governo tenha condições de apresentar as alternativas negociadas.

Já não se pode dizer que o país tenha um presidencialismo plenamente funcional, porque o presidente está destituído dos seus poderes. O Congresso, por sua vez, já não atende mais aos interesses do eleitorado. E o Judiciário está sendo forçado a ocupar espaços, tentando corrigir as omissões que o Legislativo comete contra a coletividade.

Valor: Qual a parcela de responsabilidade do governo no fracasso das negociações com o Congresso?

Abranches: Não se pode atribuir os problemas no Congresso a um presidente [Lula] que é minoritário. Por melhor que ele administrasse a sua coalizão, ainda assim ele seria minoritário. O Lula é muito bom negociador, como demonstrou em seus dois primeiros governos. O problema é que ele não consegue mais fazer com que os líderes dos partidos que têm ministérios levem seus partidos a se comportarem conforme o acordado.

No entanto, é claro que uma parte dos problemas do governo Lula é de responsabilidade do Lula. Há decisões na direção errada. Na área ambiental, ele deixa uma divisão sobre o tema crescer dentro do governo. O mesmo problema de gestão interna ocorre na questão fiscal. Ele não dá toda força ao [ministro da Fazenda] Fernando Haddad e permite que cresça uma oposição ao equilíbrio fiscal na Casa Civil.

Valor: Por que o Congresso não aparenta ter o mesmo empenho em cortar gastos que pede ao governo?

Abranches: Não vota corte de gastos porque não interessa a eles, sobretudo os gastos que beneficiam os empresários que eles defendem. É pura hipocrisia do Congresso. A ideia dos economistas de que o país precisa de reformas estruturais, pode tirar da agenda do curto e médio prazo, porque com esse tipo de Congresso não vai acontecer nunca.

Haddad está na direção correta, ao fazer ajuste fiscal cortando o gasto que beneficia os ricos, para poder financiar as políticas sociais e fazer a distribuição de renda pelo lado da justiça tributária, mas o Congresso não está interessado nisso.

Falta fazer, por exemplo, uma revisão dos incentivos. Esse é o maior problema hoje no Brasil, porque eles custam caro e concentram renda. Há incentivos estapafúrdios, que não fazem sentido e conspiram contra o futuro, como os destinados ao setor do carvão. A própria Zona Franca de Manaus, que é algo intocável do ponto de vista do Congresso, devolve muito pouco para a sociedade brasileira. Alguns incentivos já têm a duração de décadas, e não ajudaram a tornar mais competitivos ou eficientes setores que ficaram apenas dependentes de subsídios.

Valor: Os problemas institucionais diminuiriam com um Executivo mais alinhado ao Congresso, com teses liberais e reformistas?

Abranches: O governo Bolsonaro se dizia liberal, mas toda a sua política econômica foi intervencionista. Não vai ter governo liberal no Brasil, sobretudo de presidentes saídos desses partidos que fazem parte do centrão hoje. Eles são liberais da boca para fora, porque todos eles estão interessados no orçamento público e não vão abrir mão da fatia que eles já ocuparam do orçamento público, inclusive beneficiando grupos empresariais que têm poder político grande e importância econômica pequena.

Valor: O sr. vê alguma saída?

Abranches: Não no curto prazo. Seria preciso uma rearrumação partidária no Congresso, e que crescessem suficientemente as bancadas com interesse público, para inclusive abrirem mão da parte das emendas que elas se apropriaram indevidamente. Não creio que os eleitores tenham muita noção disso.

Por outro lado, o que está acontecendo adicionalmente é uma mudança estrutural muito profunda no mundo inteiro, que está fazendo com que os governos democráticos não sejam capazes de atender às necessidades da população. Algumas coisas não funcionam mais, inclusive na economia. Isso produz muita insatisfação, medo e insegurança. Esses sentimentos negativos vêm fazendo com que o eleitor vote sempre contra o governo.

Mesmo governos autoritários de lideranças demagógicas autocráticas, como Donald Trump e o próprio Jair Bolsonaro, também caem se não conseguem mudar as regras do jogo para se perpetuarem no poder. O Trump está com a popularidade em queda, não tem chance de se reeleger nem de fazer um sucessor.

Valor: Que cenário se desenha para a eleição presidencial de 2026? A polarização continuará?

Abranches: O Bolsonaro, [eventualmente] condenado e preso, é uma liderança política em declínio, [caminhando] para o desaparecimento. A pontuação dele nas pesquisas é “recall”. Quem disputou a Presidência tem mais preferência eleitoral do que quem não disputou. A saída de cena dele vai ajudar a despolarizar a população. Com relação ao Lula, ele é muito competitivo ainda e tem base de saída forte, por possuir “recall” nacional. Por outro lado, há uma defasagem entre a popularidade e a economia, algo que não existia antes.

A economia está melhorando, mas há uma sociedade muito insatisfeita com várias coisas. Se acontecer uma desinflação pelo menos no preço dos alimentos, a popularidade do Lula vai melhorar e, na hora em que ele entrar em campanha, conseguirá ser competitivo. Não sei se será competitivo o suficiente para se reeleger, mas, a não ser que ele faça algum desastre, provavelmente estará no segundo turno.

Do lado da oposição, é preciso observar se algum candidato se transforma num fenômeno eleitoral. Nomes como os dos governadores de São Paulo, Tarcísio de Freitas [Republicanos], do Paraná, Ratinho Junior [PSD], e de Minas Gerais, Romeu Zema [Novo], têm que ultrapassar a barreira do eleitorado local. Por exemplo, uma parte do eleitorado do Nordeste vê São Paulo com um Estado que prejudica o Nordeste.

Valor: E a eleição do Congresso?

Abranches: O que é garantido é que a composição dificilmente mudará a favor de alterações mais sérias e certeiras, na questão fiscal e na correção da transferência de poder orçamentário do Executivo para o Legislativo. Esse é o grande problema com o qual o próximo presidente da República, qualquer que seja ele, vai ter que lidar.

Valor: A defesa da democracia, que foi uma pauta central em 2022, voltou ao debate com o julgamento de Bolsonaro e aliados por tentativa de golpe de Estado, mas há uma espécie de normalização do que ocorreu, com o Supremo Tribunal Federal sofrendo descrédito em parte da opinião pública, segundo as pesquisas. Como o sr. avalia a percepção democrática hoje no país?

Abranches: Primeiramente, considero que a opinião pública foi, sim, tocada pela comprovação da conspiração por um golpe no Brasil. Agora, em contraponto a isso, no mundo inteiro há uma insatisfação com a democracia, porque ela não é mais representativa, nem tem mais capacidade de responder às necessidades do povo, sobretudo aquelas emergentes. Cito como exemplo a instabilidade no emprego por conta do avanço de robotização e inteligência artificial. A democracia ficou muito analógica, enquanto a sociedade se digitalizou.

Quem fala mais com a sociedade? É a extrema direita, que, como esteve muito tempo fora do poder, durante esse período encontrou o nicho digital e aprendeu a usá-lo. A questão que se coloca para ela, daqui por diante, é se atualizar. E não existe uma possibilidade de a extrema direita ser moderna ou mais contemporânea. Ela é o que é.

Por fim, esse cenário de muita insatisfação, muita insegurança e muito medo produz uma enorme volatilidade eleitoral. Há uma grande incerteza econômica que pode no futuro favorecer o Lula ou desfavorecê-lo de vez. A imprevisibilidade do contexto doméstico e global, no caso da geopolítica e das guerras, pode ter impacto sobre a nossa conjuntura econômica e política.

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