Cientista político vê 'enrascada de governabilidade' que não ficará restrita a Lula
O Brasil “está numa enrascada de
governabilidade”, que vai além das deficiências do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), avalia
o cientista político e sociólogo Sérgio
Abranches. Em 1988, ele criou o conceito de “presidencialismo
de coalizão” para descrever o modelo brasileiro em que a Presidência da
República monta aliança ampla no Congresso para avançar sua agenda.
Em entrevista ao Valor, Abranches avalia que o
Legislativo esvaziou funções do Executivo, com a disparada no valor de emendas parlamentares. Além
disso, deixou de “pensar no coletivo” para se ocupar de interesses próprios e
da busca por reeleição de seus membros. “Com esse
tipo de Congresso, nenhuma reforma estrutural vai acontecer”, afirma.
A seguir, os principais trechos:
Valor: O presidencialismo de coalizão está funcionando
no contexto atual das relações entre Executivo e Congresso ou passa por alguma
disfuncionalidade?
Sérgio Abranches: Ele não deixou
de existir, porque é uma característica estrutural do nosso modelo político,
com federalismo e multipartidarismo, mas não está funcionando, e não é de
agora. A entrega do governo para o Congresso começou com Michel Temer e degringolou
de vez no governo Jair
Bolsonaro, com uma transferência definitiva de poder sobre a
execução do orçamento. A abundância de emendas e dos
fundos eleitoral e partidário faz com que os parlamentares não dependam mais do
governo, que deixou de ter recursos para administrar uma coalizão. Anabolizados
por esses recursos, os partidos do centrão cresceram muito, resultando num
descompasso ainda maior com a representação ligada ao presidente [Lula], de
partidos à esquerda.
Valor: Existem outras razões para o governo não ter
base sólida?
Abranches: O Brasil está numa enrascada de governabilidade. O
centrão tem a maioria e é completamente invertebrado, o que faz com que não
sirva de base para coalizão majoritária de governo nenhum. São partidos
dominados por interesses muito particularistas e muito pequenos, associados a
grupos de pressão, a lobbies
poderosos. Na derrubada dos vetos [de Lula, na semana passada], vimos o lobby dos setores de
gás e carvão, por exemplo.
Temos um Congresso
que é disfuncional para a sociedade. Ele não pensa mais no coletivo, só nos
interesses particulares e locais. A composição atual não oferece a
possibilidade de coalizões majoritárias que sigam a orientação do governo. Por
isso, não existe base. Nas votações que têm derrotado o governo, em torno de
60% dos votos são de partidos com ministério. As legendas já não respondem de
forma coesa aos comandos, como antes.
Valor: O que a queda de braço em torno do aumento do
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) e a pressão do Congresso por corte de
gastos significam, do ponto de vista de equilíbrio entre os Poderes?
Abranches: Há um
desequilíbrio institucional no ar. E há também perda de qualidade das bancadas,
com representantes do centrão que desfazem acordos à sua vontade. Nunca tinha visto o Congresso dando ultimato a presidente. É
uma anomalia. O governo chama os presidentes das duas Casas do Congresso, faz
uma negociação, e 24 horas depois o acerto é rompido, unilateralmente, antes
que o governo tenha condições de apresentar as alternativas negociadas.
Já não se pode dizer que o país tenha um
presidencialismo plenamente funcional, porque o presidente está destituído dos
seus poderes. O Congresso, por sua vez, já não atende mais aos interesses do
eleitorado. E o Judiciário está sendo forçado a ocupar espaços, tentando
corrigir as omissões que o Legislativo comete contra a coletividade.
Valor: Qual a parcela de responsabilidade do governo
no fracasso das negociações com o Congresso?
Abranches: Não se pode
atribuir os problemas no Congresso a um presidente [Lula] que é minoritário.
Por melhor que ele administrasse a sua coalizão, ainda assim ele seria
minoritário. O Lula é
muito bom negociador, como demonstrou em seus dois primeiros governos. O
problema é que ele não consegue mais fazer com que os líderes dos partidos que
têm ministérios levem seus partidos a se comportarem conforme o acordado.
No entanto, é claro que uma parte dos
problemas do governo Lula é de responsabilidade do Lula. Há decisões na direção errada. Na área ambiental, ele deixa uma
divisão sobre o tema crescer dentro do governo. O mesmo problema de gestão
interna ocorre na questão fiscal.
Ele não dá toda força ao [ministro da Fazenda] Fernando Haddad e permite
que cresça uma oposição ao equilíbrio fiscal na Casa Civil.
Valor: Por que o Congresso não aparenta ter o mesmo
empenho em cortar gastos que pede ao governo?
Abranches: Não vota corte
de gastos porque não interessa a eles, sobretudo os gastos que beneficiam os
empresários que eles defendem. É pura hipocrisia do Congresso. A ideia dos economistas de que o país precisa de reformas
estruturais, pode tirar da agenda do curto e médio prazo, porque com esse tipo
de Congresso não vai acontecer nunca.
O Haddad está
na direção correta, ao fazer ajuste
fiscal cortando o gasto que beneficia os ricos, para poder
financiar as políticas sociais e fazer a distribuição de renda pelo lado da
justiça tributária, mas o Congresso não está interessado nisso.
Falta fazer, por exemplo, uma revisão dos incentivos.
Esse é o maior problema hoje no Brasil, porque eles custam caro e concentram
renda. Há incentivos estapafúrdios, que não fazem sentido e conspiram contra o
futuro, como os destinados ao setor do carvão. A própria Zona Franca de Manaus, que é
algo intocável do ponto de vista do Congresso, devolve muito pouco para a
sociedade brasileira. Alguns incentivos já têm a duração de décadas, e não
ajudaram a tornar mais competitivos ou eficientes setores que ficaram apenas
dependentes de subsídios.
Valor: Os problemas institucionais diminuiriam com um
Executivo mais alinhado ao Congresso, com teses liberais e reformistas?
Abranches: O governo Bolsonaro se dizia
liberal, mas toda a sua política econômica foi intervencionista. Não vai ter
governo liberal no Brasil, sobretudo de presidentes saídos desses partidos que
fazem parte do centrão hoje. Eles são liberais da boca para fora, porque todos
eles estão interessados no orçamento público e não vão abrir mão da fatia que
eles já ocuparam do orçamento público, inclusive beneficiando grupos
empresariais que têm poder político grande e importância econômica pequena.
Valor: O sr. vê alguma saída?
Abranches: Não no curto
prazo. Seria preciso uma rearrumação partidária no Congresso, e que crescessem
suficientemente as bancadas com interesse público, para inclusive abrirem mão
da parte das emendas que elas se apropriaram indevidamente. Não creio que os eleitores
tenham muita noção disso.
Por outro lado, o que está acontecendo
adicionalmente é uma mudança estrutural muito profunda no mundo inteiro, que
está fazendo com que os governos democráticos não sejam capazes de atender às
necessidades da população. Algumas coisas não funcionam mais, inclusive na
economia. Isso produz muita insatisfação, medo e insegurança. Esses sentimentos
negativos vêm fazendo com que o eleitor vote sempre contra o governo.
Mesmo governos autoritários de lideranças
demagógicas autocráticas, como Donald
Trump e o próprio Jair Bolsonaro, também caem se não conseguem mudar
as regras do jogo para se perpetuarem no poder. O Trump está com a popularidade
em queda, não tem chance de se reeleger nem de fazer um sucessor.
Valor: Que cenário se desenha para a eleição
presidencial de 2026? A polarização continuará?
Abranches: O Bolsonaro, [eventualmente]
condenado e preso, é uma liderança política em declínio, [caminhando] para o
desaparecimento. A pontuação dele nas pesquisas é “recall”. Quem disputou a
Presidência tem mais preferência eleitoral do que quem não disputou. A saída de
cena dele vai ajudar a despolarizar a população. Com relação ao Lula, ele é
muito competitivo ainda e tem base de saída forte, por possuir “recall”
nacional. Por outro lado, há uma defasagem entre a popularidade e a economia,
algo que não existia antes.
A economia está melhorando, mas há uma
sociedade muito insatisfeita com várias coisas. Se
acontecer uma desinflação pelo menos no preço dos alimentos, a popularidade
do Lula vai melhorar e, na hora em que ele entrar em campanha,
conseguirá ser competitivo. Não sei se será competitivo o suficiente para se
reeleger, mas, a não ser que ele faça algum desastre, provavelmente estará no
segundo turno.
Do lado da oposição, é preciso observar se
algum candidato se transforma num fenômeno eleitoral. Nomes como os dos
governadores de São Paulo, Tarcísio
de Freitas [Republicanos], do Paraná, Ratinho Junior [PSD], e de
Minas Gerais, Romeu
Zema [Novo], têm que ultrapassar a barreira do eleitorado
local. Por exemplo, uma parte do eleitorado do Nordeste vê São Paulo com um
Estado que prejudica o Nordeste.
Valor: E a eleição do Congresso?
Abranches: O que é
garantido é que a composição dificilmente mudará a favor de alterações mais
sérias e certeiras, na questão fiscal e na correção da transferência de poder
orçamentário do Executivo para o Legislativo. Esse é
o grande problema com o qual o próximo presidente da República, qualquer que
seja ele, vai ter que lidar.
Valor: A defesa da democracia, que foi uma pauta
central em 2022, voltou ao debate com o julgamento de Bolsonaro e aliados por
tentativa de golpe de Estado, mas há uma espécie de normalização do que
ocorreu, com o Supremo Tribunal Federal sofrendo descrédito em parte da opinião
pública, segundo as pesquisas. Como o sr. avalia a percepção democrática hoje
no país?
Abranches: Primeiramente,
considero que a opinião pública foi, sim, tocada pela comprovação da
conspiração por um golpe no
Brasil. Agora, em contraponto a isso, no mundo inteiro há uma insatisfação com
a democracia, porque ela não é mais representativa, nem tem mais capacidade de
responder às necessidades do povo, sobretudo aquelas emergentes. Cito como
exemplo a instabilidade no emprego por conta do avanço de robotização e inteligência artificial. A
democracia ficou muito analógica, enquanto a sociedade se digitalizou.
Quem fala mais com a sociedade? É a extrema direita, que, como
esteve muito tempo fora do poder, durante esse período encontrou o nicho
digital e aprendeu a usá-lo. A questão que se coloca para ela, daqui por
diante, é se atualizar. E não existe uma possibilidade de a extrema direita ser
moderna ou mais contemporânea. Ela é o que é.
Por fim, esse cenário de muita insatisfação, muita insegurança e muito medo produz uma enorme volatilidade eleitoral. Há uma grande incerteza econômica que pode no futuro favorecer o Lula ou desfavorecê-lo de vez. A imprevisibilidade do contexto doméstico e global, no caso da geopolítica e das guerras, pode ter impacto sobre a nossa conjuntura econômica e política.
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