“Palavras, palavras, palavras”
– Shakespeare, Hamlet
Numa cena memorável de “Wall Street –
Poder e Glória” (1987), de Oliver Stone, o especulador inescrupuloso
Gordon Gekko, interpretado por Michael Douglas, explica a seu pupilo
bestificado as regras do jogo em que sempre vence: “O 1% mais rico possui
metade da riqueza do país, cinco trilhões de dólares. Noventa por cento dos
americanos lá fora possuem pouco ou nenhum patrimônio líquido. [...] Eu não
crio nada. Eu sou o proprietário. Nós é que fazemos os regulamentos; nós
tiramos o coelho da cartola enquanto todo o mundo se pergunta como é que a
gente consegue. Mas você não é inocente a ponto de achar que vivemos numa
democracia, né, Buddy? É o livre mercado. E você faz parte dele.”
Quando o filme – uma crítica de Stone, filho de um corretor da bolsa de
valores, a esse universo amoral e parasitário – foi lançado, Donald John Trump
contava 41 anos de idade e comandava o império imobiliário de sua família, com
foco em projetos extravagantes de arranha-céus, hotéis e cassinos (aproveitando
o crescimento de uma bolha que não tardaria a estourar), e aperfeiçoava o dom
de usar a seu favor as facilidades de um sistema financeiro e uma ordem
jurídica moldados para beneficiar o homem branco endinheirado. Embevecidos, os
meios de comunicação exaltavam o seu “toque de Midas”.
Num ensaio de 2018, "The Cruelty Is the Point", o jornalista
Adam Serwer argumentava que o apelo de Trump junto a uma parcela expressiva do
eleitorado não se resumia a queixas de ordem econômica ou "incorreção
política", mas envolvia, ainda, a crueldade compartilhada como
mecanismo de união. Seus apoiadores teriam encontrado solidariedade, um chão
comum, no ato coletivo de menosprezar os outros – seja rindo das
vítimas do furacão em Porto Rico, zombando das mulheres do movimento #MeToo ou
ridicularizando pessoas com deficiência. Essa dinâmica, que não nos é
estranha, estaria historicamente enraizada, segundo o escriba, na violência
racial dos EUA, onde o espetáculo público da crueldade, como os linchamentos de
homens negros, foi um aglutinador para algumas comunidades (“As árvores do sul
dão uma fruta estranha / Sangue nas folhas e sangue na raiz”, canta Billie
Holiday, maravilhosamente, em “Strange Fruit”).
No segundo mandato, como temos visto, a natureza e a intensidade da crueldade
evoluíram (e talvez não haja melhor exemplo disso que a grotesca caça a
imigrantes por milícias de encapuzados, sobre a qual a “comunidade
internacional” tem guardado um silêncio cúmplice): não se trata mais, apenas,
de estabelecer laços por meio da humilhação grupal, mas de produzir
instabilidade generalizada como estratégia de governança.
Há também um outro fenômeno que permite vislumbrar onde entramos nós nessa
história, que é o inegável declínio do império americano: os EUA seguem sendo a
principal potência militar, financeira e cultural do mundo, mas sua influência
relativa está diminuindo, sobretudo na economia e na diplomacia, enquanto seu
maior rival decola. A China (principal parceiro comercial de mais de 130
países, Brasil incluído) produz hoje 30% dos bens manufaturados do mundo (os
EUA, 16%) e já ultrapassou a terra do Tio Sam em produção científica, ao mesmo
tempo em que forma novas alianças (como o BRICS) que desafiam a liderança
global dos EUA e contribuem para a redução da influência de sua moeda: em 2001,
o dólar estadunidense representava 72% das reservas cambiais globais; em 2023,
esse percentual caíra para 58%.
Trump é, também, uma reação a esse declínio, que sinaliza um reordenamento
global.
E isto nos leva, por fim, à carta endereçada a Lula que o mandatário
estadunidense, em vez de encaminhar pelos meios adequados, divulgou nas redes
sociais na semana passada. Coincidentemente ou não, a mensagem veio a lume no
último dia 09/07, quando se encerrava a cúpula do BRICS no Rio de Janeiro,
evento em que o Brasil estendera o tapete vermelho a Narendra Modi, líder
de uma Índia que é hoje o país mais populoso do mundo, com cerca de 1,450
bilhão de habitantes, PIB de U$ 3,4 trilhões e projeção de crescimento de 6,5%
para 2024-2025 (mantendo, assim, um ritmo robusto de expansão, ainda que mais
moderado que no biênio anterior).
Com ofensas à gramática, redundâncias e emprego de uma retórica mais afeita a
campanha política e propaganda comercial que a instrumentos diplomáticos,
inclusive fazendo uso de uma agressividade inadmissível, o petardo de Trump,
como já se comentou, parte de um ataque às instituições brasileiras pelos
infortúnios do golpista Jair Bolsonaro, e afinal se queixa de um superávit
comercial do Brasil em relação aos EUA – algo que não ocorre há mais de 15
anos.
A ameaça do capo – aplicar um tarifaço de 50% a todas as
exportações brasileiras para os EUA – decerto pode gerar prejuízos para os
nossos setores de manufaturados, agroindústria, petróleo e derivados (entre
outros), resultando em desemprego; mas pode também elevar os custos de setores
industriais estadunidenses que hoje carecem de insumos brasileiros (como aço,
alumínio, celulose), gerando pressão doméstica, e contribuir para estreitar os
laços entre Brasília e Beijing.
Extasiado com o próprio umbigo, Donald esquece que tudo tem, ao menos, dois
lados.
O fiasco do rugido presidencial, neste caso, se assemelharia ao do cassino Taj
Mahal, um de seus muitos empreendimentos fracassados – o qual, afundado em
dívidas, entrou em falência apenas um ano após ser inaugurado com pompa e
circunstância (patrimônio da humanidade, o magnífico Taj Mahal indiano subiste
há quase 4 séculos).
Um dado curioso: investido no papel de bully global, Trump enviara,
dois dias antes, cartas idênticas entre si (e quase idênticas à que endereçaria
a Lula) aos líderes de Coreia do Sul, Lee Jae-myung, e Japão, Ishiba
Shigeru. Também atravessadas por erros gramaticais e problemas de estilo, as
cartas padronizadas ostentam um tom autocongratulatório descabido, passam ao
largo do que se conhece como diplomacia e ignoram o modo como negociações
comerciais se dão entre nações soberanas: ao lado da ameaça de elevação de
“Tariffs” (assim mesmo, com maiúscula), o magnata convida os contrapartes a
“participar da extraordinária economia dos Estados Unidos”.
Prato cheio para estudos nas áreas de linguística, psicanálise e, claro,
relações internacionais.
Reforçando o mergulho no bizarro, e a impressão de que o país de Abraham
Lincoln não está sendo governado por um adulto funcional, os perfis da Casa
Branca e do próprio Trump no ex-Twitter exibiram, dias depois, uma imagem
do presidente retratado como Superman. É, sem dúvida, desafiador interpretar
essa avalanche semiótica. Por onde começar? Para o filósofo italiano Franco
Berardi, "Trump é a erupção psicótica do inconsciente branco senil; ele é
a forma política monstruosa na qual se manifesta a inumerável multidão de
fantasmas que assombram a memória e a autopercepção desse povo infeliz".
A carta ao presidente Lula provocou reações diversas no Brasil, por exemplo: os
presidentes da Câmara e do Senado exibiram, juntos, a covardia que deles se
espera, o jornalão dos Mesquita teve um arroubo nacionalista inusitado e um
diplomata de pijama sentenciou, sabujíssimo, que “o assunto é técnico; politizá-lo
é um erro”. Como se habitasse um universo paralelo, o presidenciável governador
de SP (que dia desses posou para fotografia exibindo um boné com o lema “Make
America Great Again”) saiu-se com esta: “Lula colocou sua ideologia acima da
economia, e esse é o resultado.” As redes sociais foram inundadas por
expressões de repúdio à agressão norte-americana (com direito a um
hilário vampetaço), e uma manifestação em defesa da soberania nacional
convocada pelas frentes Povo Sem Medo e Brasil Popular, além de sindicatos,
levou mais de 15 mil pessoas à Avenida Paulista.
Registre-se, para os anais da indignidade de um Congresso que mais e mais se
rebaixa: horas após a diatribe de Trump ganhar as manchetes, a Comissão de
Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, comandada pelo
partido do ex-capitão, aprovou uma “moção de louvor” ao mandatário
estadunidense. Sem medo ou pejo do ridículo, o proponente da coisa (um deputado
fluminense ligado a Silas Malafaia), se permitiu justificar a homenagem "pelo
brilhante trabalho desenvolvido por ele como presidente da maior nação e pela
incansável luta em defesa da democracia e da liberdade de expressão em todo o
planeta". Uma pérola da vassalagem.
Há quem diga que, na semana que passou, a corrida presidencial de 2026 começou
para valer. É possível. Seja como for, o governo Lula finalmente demonstrou
acerto na estratégia comunicacional, reagindo com firmeza à agressão, e
mostrando que a paralisia pelo medo não funcionará por aqui. O ataque de Trump,
pondo a nu o caráter conspiratório, antinacional, de Bolsonaro e sua gangue
(que já fornece condições para a prisão cautelar), também os expõe a conflitos
com sua própria base; além disso, permite a Lula sair da defensiva e dar passos
na direção da frente amplíssima com que sonha a socialdemocracia.
O caminho pelo centro, contudo, tende a ser tortuoso, difícil, como são os
ensaios de conciliação de classes neste país moldado pela desigualdade abissal,
e dominado por uma elite avessa a compromissos. Vejamos, para refrescar a
memória, o que dizia o Valor Online em 21/09/2018, em matéria sobre a
queda do dólar, que vinha em trajetória de alta: "O alívio no mercado
brasileiro se dá pela leitura de que Jair Bolsonaro se firma como o candidato
forte para o 2º turno da eleição presidencial. Por mais que não seja o
candidato ideal para parte dos profissionais de mercado, o presidenciável é
apontado como o principal ponto de resistência contra a volta de governos à
esquerda."
Nossos Gordons Gekkos – grandes e pequenos – topam tudo, tudo
mesmo, para deter qualquer ameaça de redução da desigualdade social, isto é,
para evitar a substituição disso que aí está pelo “something better” que, como
aponta a camarada Jodi Dean, é algo que podemos conquistar.
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