O Globo
Eventuais acertos do grupo, como a ideia de
negociar com suas moedas, perdem-se diante do acúmulo de incoerências e da
defesa de ditaduras e invasões.
Inicialmente Bric, grupo que reunia Brasil, Rússia, Índia, China e ganhou o plural para receber a África do Sul (South Africa em inglês) nasceu da inventividade de Jim O'Neill, economista do Goldman Sachs que criou o acrônimo para identificar os países que mais cresceriam economicamente no futuro e entrariam no grupo dos mais desenvolvidos. Seriam “os tijolos” dessa nova configuração. Isso foi há 25 anos. Não aconteceu exatamente assim, mas não há dúvida de que três dos países originários (China, Brasil e Índia) estão entre as maiores economias do mundo e de que a Rússia continua como um dos mais influentes.
O que originalmente era apenas uma espécie de
truque de economista para prospectar o futuro e deixá-lo mais inteligível para
o comum dos mortais hoje transformou-se em geleia geral que inclui mais
ditaduras do que democracias. São integrantes do Brics: Egito, Emirados Árabes
Unidos, Arábia Saudita, Etiópia, Irã, Bielorússia, Bolívia, Cazaquistão, Cuba,
Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda e Uzbequistão. Não poderia ser diferente,
portanto, o documento extenso da reunião do bloco que se encerrou ontem no Rio.
Tão extenso quanto incoerente, o documento
final é escancaradamente partidário. Defende o Irã contra ataques dos Estados
Unidos e Israel, esquecendo que o país financia grupos terroristas como Hamas e
Hezbolah. Não se refere à Rússia na guerra contra a Ucrânia, país invadido que
reage heroicamente à agressão de sua soberania territorial. Elogia o
multilateralismo, mas classifica a ONU como organismo defasado, entregue aos
países que venceram a Segunda Guerra Mundial — crítica correta, mas que carrega
toda a incoerência do bloco. Um dos países que travam as decisões da ONU no
Conselho de Segurança é a Rússia, que usa seu poder de veto da mesma maneira
que os Estados Unidos.
A declaração do Brics coloca-se na oposição
da estrutura da política internacional em vigor, com a ideia crescente de não
usar mais o dólar nas transações entre seus integrantes. Tenho a impressão de
que foi esse o ponto que desencadeou a fúria do presidente americano Donald
Trump, que se sente “um imperador”, como insinuou Lula em seu discurso final.
Eventuais acertos do grupo, como a ideia de
negociar com suas moedas, perdem-se diante do acúmulo de incoerências e da
defesa de ditaduras e invasões. O governo Lula atola-se nesse pântano de
incertezas e incoerências. Perde a chance de se colocar diante de uma clara
transgressão de Trump, que, ao tentar defender Bolsonaro, sugere que o Brasil
comporta-se como uma ditadura de terceiro mundo, incapaz de respeitar os
direitos humanos e perseguidor de adversários políticos.
Lula apressou-se a afirmar que o Brasil é um
país soberano e não admite interferências desse tipo. Nisso está certo. Mas,
como também errou ao ir à Argentina e visitar a ex-presidente Cristina
Kirchner, posando com um cartaz que pede a libertação dela (presa condenada por
corrupção), a reação perde o caráter de defesa do Estado brasileiro para ser
apenas uma desavença entre dois presidentes que têm ideologias diferentes, mas
agem da mesma maneira.
A política externa brasileira se baseia cada
vez mais na manutenção de uma relação cordial com países que têm importância na
geopolítica de um mundo que no futuro, na visão dos analistas governamentais,
será muito mais próximo dos países hoje periféricos que tentam se desenvolver
do que da Europa e dos Estados Unidos. O Brasil faz uma escolha, aposta num
futuro que nada indica que vá chegar tão cedo, se afastando das principais
potências do Ocidente, para se aliar a ditaduras do Oriente Médio, da Rússia e
da China. O “Sul Global” antagoniza o “Norte Global” na tentativa de antecipar
um futuro que não parece tão próximo.
P.S.: Fluminense na cabeça!
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