O Globo
É preciso discordar dos aliados e dialogar
com os adversários
No fim da campanha eleitoral de 2018,
viralizou a imagem de duas mãos dadas, com uma rosa ao fundo, ao lado dos
dizeres “Ninguém solta a mão de ninguém”. A expressão, diz a lenda, teria
origem na experiência dos estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, na época
da ditadura militar. Quando as luzes do prédio da faculdade eram cortadas,
alguém gritava:
— Ninguém solta a mão de ninguém!
E todos se davam as mãos, em autoproteção.
Quando a luz retornava, fazia-se uma contagem e, às vezes, um estudante tinha
desaparecido. Às vésperas da eleição de 2018, o gesto das mãos dadas
representava solidariedade e conforto diante do risco de vitória de Jair
Bolsonaro.
Os progressistas unidos, de mãos dadas diante da ameaça autoritária, parecem uma exaltação da solidariedade e da decência ante o arbítrio e a violência, mas são, na verdade, os causadores do que pretendem combater. Para superar a crise política que vivemos, precisamos aprender a escutar os adversários e a ser críticos com os aliados. Em outras palavras, precisaremos soltar as mãos.
Em 1998, bem no início das guerras culturais,
um bispo peruano reuniu, num documento importante, evidências de grupos
feministas que consideravam qualquer tipo de família uma opressão
heteronormativa e qualquer relação sexual heterossexual um estupro. Ele alegava
que essas teses radicais eram a verdade do feminismo contemporâneo, querendo
dizer que era uma crença subjacente das feministas de hoje ou que era uma
consequência inevitável do seu modo de pensar.
Os movimentos feministas não responderam a
esse documento explicando que a maioria das feministas não pensava assim e que
não eram adversárias da família, mas defensoras de direitos iguais para as
mulheres. Elas atacaram o documento dizendo que fazia uma caricatura do
feminismo, enquanto, internamente, defendiam a unidade de todos os feminismos.
Fizeram ouvidos moucos para o documento da Igreja e cerraram fileiras com os
setores radicais do movimento que se opunham aos homens e à família.
Em 2015, bem no início das mobilizações
antipetistas, os grupos defensores da Operação Lava-Jato foram acusados de
albergar grupos neofascistas, integralistas e skinheads que se reuniam nas suas
manifestações. Os antipetistas reagiram indignados, dizendo que estavam sendo
desqualificados pela esquerda e pela imprensa, mas, em momento algum,
expulsaram dos seus atos os militantes autoritários. A indignação contra o
tratamento desfavorável, na verdade, os uniu e fortaleceu o laço com eles.
Há uma história a ser escrita do processo
pelo qual vamos caminhando assim, sem perceber quanto nos radicalizamos na
reação à ameaça do adversário. A polarização é o enfraquecimento da coesão
enquanto sociedade e o fortalecimento dos nossos laços enquanto partes
divididas.
A esquerda costuma falar da ascensão da
direita como um fenômeno exógeno, completamente estranho a ela. E a direita
conservadora gosta de dizer que está onde sempre esteve e que foi a esquerda
que, de maneira independente, se radicalizou com o progressismo.
Os dois estão errados. Progressistas e
conservadores ascenderam juntos, nos anos 2010, e eles se codeterminam e se
retroalimentam. A polarização é esse loop infinito de ataque, fortalecimento
dos laços entre os atacados e contra-ataque, que leva a novo fortalecimento de
laços do primeiro grupo. Esse ciclo está nos levando à intolerância e, dela,
nos levará para a violência política.
Além disso, na dinâmica da polarização, a
crítica apenas alimenta o ressentimento, fazendo florescer o que foi criticado
por meio do reforço da identidade de grupo. O ataque não corrige, mas consolida
e amplia a posição atacada.
Essa situação, porém, tem saída. Precisamos
fortalecer os laços sociais entre todos nós, reaprendendo a nos ver como uma
república plural, na qual esquerda e direita coexistem com respeito. Quando o
adversário nos criticar, devemos responder de boa-fé, porque precisamos dar
satisfação para quem compartilha com a gente a mesma comunidade política. E
para fazer isso bem, precisamos nos acostumar a criticar os nossos, nos
diferenciando dos correligionários que acreditamos que estão agindo mal.
Precisamos deixar para trás o pacto
silencioso da polarização que nos impede de discordar dos aliados e de dialogar
com os adversários. Precisamos trocar a lealdade incondicional pela crítica
honesta e a identidade de grupo pela consciência cívica. Soltar as mãos não é
abandonar os aliados, mas deixar de protegê-los do juízo crítico que sustenta
uma república plural.
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