quarta-feira, 2 de julho de 2025

Futebol e igualdade - Roberto DaMatta

O Globo

Em campo, as leis valem para o campeão e para o lanterninha. Valem para os craques e para os ‘pernas de pau’

Convidado pelos professores Carmen Rial e Fábio Machado Pinto, realizarei, gratificado, a conferência de abertura do Terceiro Colóquio Internacional INCT/Futebol. Saliento a coincidência do diálogo de pesquisadores do antigo “esporte bretão” no mesmo ano de uma Copa do Mundo de Clubes, no contexto de um espetáculo jurídico deprimente, em que se discutem culpabilidades causadas pelo rompimento de leis por golpistas. No STF discute-se a aplicação de leis por ministros e juristas, exato oposto da universal jurisprudência futebolística.

Na política, a lei tem espaço para anistia e burla. No futebol, a política é vencer seguindo as regras que legitimam vitória, empate ou derrota, porque valem para nós e — eis a novidade — para eles!

O futebol se mundializou pela capacidade de produzir igualdade democrática, ao lado da experiência de vitória e excelência em competições. Nada mais gratificante para sociedades colonizadas, marcadas pela autodepreciação, do que dar “um banho de bola” nos branquelos invencíveis. O roubo do futebol pelo Brasil e por outros povos periféricos é uma façanha revolucionária justamente porque não é definitiva e porque nega o determinismo.

Se as leis legitimavam a escravidão e sustentavam um sistema político com notável vocação para tirar vantagem de tudo, as do esporte e do futebol são universais. Valem para o campeão e para o lanterninha. Valem para os craques e para os “pernas de pau”. Essa é a grande lição do esporte em nossa sociedade elitista e aristocrática, marcada pela possibilidade de jogar nos dois times...

A aceitação de leis fixas torna o futebol um milagre para os tidos como “pobres” e para quem tem sofrido a permanente desonestidade dos governos. Vencer ou ganhar seguindo regras revela talento e trabalho, coisas raras na vida política. No futebol, não há como anular ou anistiar jogadores ou times desonestos e derrotados. Eis um contraste que, por si só, explica a paixão pelo futebol.

É essa substância democrática que atrai na esfera esportiva. Foi essa experiência com a liberdade e a igualdade que promoveu a forte reação de intelectuais que não suportavam mulheres torcendo livremente, ao lado da igualdade que associou brancos riquinhos a seus ex-escravos nos verdes campos da justiça social embutida no futebol!

Não tenho espaço para seguir, mas saliento que o futebol é hoje um tema acadêmico legítimo. Numa época em que ele, como o carnaval, era considerado o “ópio do povo” e assunto para reacionários, como Nélson Rodrigues, promovi o seu estudo no Museu Nacional. Ali, orientei Simoni Guedes e tive a satisfação de ler os ensaios sobre futebol de José Sérgio Leite Lopes, bem como do saudoso Afrânio Garcia, organizador de um pioneiro encontro para discuti-lo em Paris.

Recusando o reducionismo, examinei como o Brasil jogava futebol e como o futebol jogava o Brasil. Esse Brasil que, pelo menos no futebol, era obrigado a seguir as suas regras, sob pena de assassinar o jogo.

Aprofundei tal postura no livro “A bola corre mais que os homens”, publicado em 2006. Ensaio hoje vencido pela gloriosa fúria analítica de Antonio Risério em seu “Pelé: o negão planetário”. Um estudo importante porque, como o ensaio de Leite Lopes sobre Garrincha, concentra-se nos craques e introduz um campo burocratizado, o carisma. Aquele talento de “comer a bola” que os abençoados possuem. Donos desse dom — como, no Brasil, Ademir Menezes, Didi, Zico, Orlando, Nílton Santos, Garrincha ou Pelé — que representam o sumo do futebol em sua variante brasileira.

 

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