Folha de S. Paulo
Politização identitária transforma toda e
qualquer crítica em crime moral e impede a continuidade do debate democrático
Caros críticos, detratores e discordantes,
saibam que eu sei que vocês só fazem isso comigo porque não sou branco,
sudestino ou rico. O que automaticamente transforma críticas, ataques e
divergências dirigidas a mim em atos infames de preconceito —e,
portanto, condenáveis por qualquer tribunal
moral.
Um argumento desconfortável para vocês e
muito conveniente para mim, não é? Já ganhei a discussão antes mesmo de lutar e
ainda posso usar essa premissa como uma espécie de imunidade preventiva em
qualquer situação futura.
Afinal, o que poderia ser melhor do que o
poder de desmoralizar antecipadamente qualquer acusação e de desqualificar
qualquer crítico? E sem precisar apresentar razões ou evidências, apenas sendo
quem eu sou: a vítima mais merecedora.
Uma sociedade que considere isso um modelo normal de discussão pública está no caminho errado. Um debate baseado nessa lógica é viciado, desonesto e injusto. Implode o princípio do melhor argumento e assume que algumas pessoas, ao reivindicar o status de vítimas, gozam de privilégios morais especiais.
Pois é exatamente isso que a ideologia
identitária, tão em voga, propõe. E serve para qualquer situação. Serve como
estratégia de defesa de acusações objetivas, como no caso de Silvio
Almeida ou Erika Hilton,
ou como forma de criar controvérsia moral em qualquer ocasião, como na morte
de Juliana
Marins.
No último caso, uma tragédia —dessas capazes
de unir o país— foi usada para dividi-lo. Comentários laterais sobre o
comportamento da publicitária —sugerindo imprudência, falta de preparo,
exposição a riscos desnecessários— foram o pretexto para o modo como os identitários se
apropriaram da história e da pessoa para transformar essa tragédia em um
espetáculo de denuncismo e vitimismo.
De repente, não se tratava mais apenas de uma
jovem tragicamente morta, mas de um ícone da luta pelo direito das mulheres
negras à liberdade. Manifestos proclamavam que Juliana encarnava a coragem e a
autonomia de todas, mesmo sem que qualquer argumento contrário tivesse sido de
fato apresentado.
O luto e o respeito à dor da família ficaram
em segundo plano ante o imperativo da guerra moral. A pessoa concreta, com nome
e história, transforma-se em artefato simbólico de um movimento.
No caso de Erika Hilton, repetiu-se um
roteiro conhecido: qualquer acusação, mesmo baseada em fatos objetivos, é
recodificada como perseguição política ou preconceito. Toda denúncia vira
combustível para reforçar a própria identidade de vítima.
E há um contexto histórico particularmente
sensível no país, com fartas histórias de uso indevido de dinheiro público para
sustentar assessores
fantasmas, repasses irregulares e esquemas de "rachadinha".
Por isso mesmo, soa especialmente
contraditório ver uma parlamentar de esquerda —cuja retórica moralizante se
baseia na denúncia das relações imorais entre políticos e assessores pagos com
recursos públicos— contratar maquiadores como assessores e, ao que tudo indica,
beneficiar-se dos seus serviços particulares.
Mas a defesa não foi "errei, peço
desculpas, vou corrigir". Resumiu-se a desqualificar os acusadores: se
houve erro no episódio, não consistiu na contratação de maquiadores como
assessores parlamentares, mas na acusação descabida feita por homens
brancos, héteros e
cisgênero —o "combo maldito" que a ideologia identitária considera
culpado de tudo.
Por que um deputado identitário precisaria
manter um elevado padrão republicano de conduta se já existe, sempre à mão, um
bode expiatório a quem se pode atribuir toda responsabilidade?
Assim como todo membro de minoria é
moralmente superior não em função do que faz, mas de sua identidade de vítima,
toda pessoa que não é trans ou não pertence a minorias
sexuais ou raciais ou que se recusa a viver sob o dogma da culpa
hereditária é errada por sua própria natureza. Mesmo que não discrimine
enquanto indivíduo, ainda assim é culpada por integrar a categoria dos que
historicamente oprimiram e se beneficiaram da opressão.
E pedir desculpas e emendar-se, para quê?
Afinal, se o argumento "vocês só fazem isso comigo ou com ela porque somos
parte de uma minoria racial ou de gênero" encerra qualquer questão e cala
qualquer razão, por que assumir vacilos e erros ou até mesmo cuidar para ter um
comportamento público que seja impecável? Isso é desnecessário.
É claro que críticas preconceituosas e racistas existem e devem ser combatidas. Mas a ideia de que toda crítica a qualquer conduta seja por definição preconceito e racismo é um veneno para o debate democrático.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.