terça-feira, 1 de julho de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Lula é quem mais tem a perder com o ‘nós contra eles’

O Globo

PT erra ao tentar manter aumento de impostos e ao dizer que só os mais ricos pagarão a conta

No embate com o Congresso em torno do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT optaram mais uma vez pela tática do “nós contra eles”. Em vídeos feitos para redes sociais, o “povo” carrega pesados fardos nas costas (os impostos), enquanto personagens bem vestidos, representando os “ricos”, levam pequenas sacolas simbolizando taxação leve. Mais uma vez, o governo tenta justificar sua tentativa de promover um ajuste fiscal aumentando receitas, em vez de cortar gastos. A tática usada para fustigar o Congresso é um equívoco tanto do ponto de vista econômico quanto do político.

É verdade que a estrutura de impostos brasileira é regressiva (em termos proporcionais, as faixas de renda mais alta arcam com carga menor de impostos). Pode fazer sentido, por isso, corrigir a base de cálculo do Imposto de Renda em benefício das faixas de menor renda. Mas é absurdo acreditar que a alta do IOF afete apenas os mais ricos. O tributo recai sobre empréstimos, cartões de crédito e outras operações financeiras. Seu aumento nas transações cambiais encarece importações, alimentando a inflação e punindo os mais pobres. O empréstimo rotativo do cartão, usado sobretudo pelos pobres, também fica mais caro. E saem perdendo os microempreendedores individuais (MEIs), que buscam crédito para financiar equipamentos como carrinhos de venda ou máquinas de costura.

Se estivesse mesmo interessado em tornar os impostos mais progressivos, o caminho recomendado jamais seria aumentar o IOF. O certo seria enfrentar a barafunda de regimes especiais que beneficiam diversos setores, custando à sociedade um valor que o próprio governo estimou em R$ 800 bilhões anuais. É o caso da Zona Franca de Manaus, do Simples Nacional — usado por profissionais liberais para pagar menos imposto —, de benesses para a indústria farmacêutica, automotiva, de painéis solares e outros subsídios cuja eficácia jamais é avaliada. Em nenhum momento o PT se dispôs a estabelecer critérios de revisão dos benefícios tributários, por receio de enfrentar grupos de interesse.

A campanha do governo também representa enorme equívoco político. Para começar, a eficácia dos anúncios é incerta. Como reagirá uma doceira ou costureira que é MEI ao ser comparada a um plutocrata por pagar IOF em empréstimos? “Quem alimenta o ‘nós contra eles’ acaba governando contra todos”, afirmou o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB). Ele tem razão. Motta deveria aproveitar a oportunidade para levar adiante uma agenda propositiva capaz de equacionar a crise fiscal, com medidas como a desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo e a das despesas com saúde e educação da arrecadação tributária.

Por fim, a política do “nós contra eles” já foi tentada pelo petismo no passado e deu no que deu. Aqueles que o PT considerava seus rivais — ou “eles” — se agruparam, se tornaram politicamente mais fortes e constituíram uma nova oposição, de onde surgiu um governo extremista que ameaçou a democracia. Lula não deveria esquecer que se elegeu graças ao apoio de uma frente ampla, cujo programa incluía a disciplina fiscal. Ao abandonar esse compromisso e voltar a apostar no discurso embolorado que já deu errado no passado, ele próprio e seu partido são quem mais tem a perder.

Ilha de lixo em rio da Amazônia reflete falha da diplomacia ambiental

O Globo

Lixão de cidade peruana se acumula no Rio Javarizinho trazendo riscos a florestas e populações da região

Rios e poluição não respeitam fronteiras. É o que mostra o lixão fluvial que se acumula no Rio Javarizinho, na Amazônia, formado pelo descarte do vilarejo peruano de Islândia, na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Há de tudo. De lixo hospitalar a embalagens de plástico, represados em redes de pesca ou troncos. A cidade brasileira mais prejudicada pelo lixão flutuante é Benjamin Constant, de 45 mil habitantes, no Alto Solimões. No lado brasileiro, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas se mobilizou para que, no ano da realização em Belém da Conferência do Clima da ONU, a COP30, Brasil e Peru se entendam, impedindo que águas contaminadas continuem a afetar a população, fauna e flora da região.

A Defensoria enviou ofícios pedindo ajuda aos ministros Mauro Vieira, das Relações Exteriores, e Marina Silva, do Meio Ambiente. Fez também um alerta sobre os riscos e impactos da poluição para povos indígenas e comunidades tradicionais. Trata-se, segundo o defensor público Rafael Barbosa, de uma “crise ambiental-diplomática” que precisa ser tratada pelo governo federal, uma vez que os rios em questão (o Javarizinho é afluente do Javari, que desemboca no Solimões) são da alçada federal. Além disso, qualquer assunto envolvendo outro país requer atenção do Itamaraty.

Procurado pelo GLOBO, o Itamaraty informou que apenas a pasta do Meio Ambiente poderia se pronunciar sobre o assunto, por ser “responsável pelo tema”. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, o governo brasileiro já levou a questão a autoridades federais peruanas em 18 de junho, na reunião do Grupo de Cooperação Ambiental Fronteiriça (Gcaf), em que os dois países abordam temas ambientais comuns. Na ocasião, o Brasil propôs a destinação compartilhada dos resíduos para um aterro sanitário, tema da pauta da próxima reunião do Gcaf, agendada para 10 de julho. É positivo o fato de Brasil e Peru já terem um plano conjunto de manejo de resíduos sólidos, com a participação da província peruana de Tahuamanu e do Estado do Acre. Mas é preciso agir com mais celeridade.

É necessário que a questão da ilha de lixo que cresce no lado brasileiro tramite com a devida urgência pelos diversos órgãos públicos. O Brasil e seus vizinhos nas fronteiras Centro-Oeste e Norte compartilham vários problemas comuns. A Bolívia tem altas taxas de desmatamento e usa fogo para abrir e limpar áreas agrícolas, com risco para as florestas brasileiras. Garimpos ilegais bolivianos e peruanos também ajudam a poluir de mercúrio rios que ultrapassam fronteiras. O combate a essas fontes de poluição precisa ser compartilhado. Se o Brasil enfrenta garimpos ilegais e a devastação de florestas, esse enfrentamento também precisa ser levado a cabo do outro lado da fronteira. Quando a diplomacia ambiental falha, o resultado são desastres como o lixão do Rio Javarizinho.

Argentina tem desafios como atrair dólares para reservas

Valor Econômico

O país precisa aumentar o superávit comercial, mas a valorização do peso argentino tira a competitividade das exportações e aumenta a das importações

A Argentina tem chamado a atenção pelos resultados obtidos pelo presidente Javier Milei, que promoveu um ajuste fiscal sem precedentes em tempos de paz, estabilizou o câmbio e reduziu drasticamente a inflação. Esses avanços garantiram um novo programa de crédito de US$ 20 bilhões do FMI, que deu tranquilidade aos investidores quanto à solvência do país. Não obstante, a Argentina ainda enfrenta desafios significativos, como reservas internacionais líquidas baixas e crescente déficit em conta corrente. Alguns dados recentes levantam dúvidas quanto à retomada da economia.

O Produto Interno Bruto (PIB) argentino cresceu menos que o esperado no primeiro trimestre, com a retomada das importações, juntamente com a queda nas exportações e nos gastos do governo, desacelerando a recuperação do país, segundo informou o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec) na semana passada. Em relação ao quarto trimestre de 2024, o PIB argentino cresceu 0,8%, bem abaixo da expansão de 2% e de 3,9%, respectivamente, registradas no quarto e no terceiro trimestres do ano passado. Em termos anuais, o PIB argentino cresceu 5,8% no primeiro trimestre, resultado que ficou aquém da projeção de 6,1% feita com base nos dados mensais de atividade.

O desemprego e a informalidade cresceram durante o governo Milei: o desemprego passou de 5,7% no quarto trimestre de 2023 para 7,9% no primeiro trimestre deste ano (1,8 milhão de pessoas), enquanto a informalidade subiu para 42%, segundo dados do Indec.

E apesar das reformas implementadas em abril — incluindo a adoção de uma taxa de câmbio flutuante administrada, a eliminação de restrições à compra e transferência de dólares para o exterior por residentes e a autorização para empresas e investidores estrangeiros transferirem dividendos e lucros de investimentos sob certas condições — o Morgan Stanley Capital International (MSCI) manteve a classificação da Argentina como “mercado independente” (“standalone market”), seu nível mais baixo, argumentando que as “principais limitações para investidores estrangeiros permanecem”. O MSCI sequer incluiu a Argentina na lista de países com potencial de serem reclassificados como “de fronteira” ou “emergentes” em 2026.

Porém, é importante deixar claro que o sucesso do programa é inegável, mas um dos principais problemas se mantém: a falta de reservas internacionais.

Havia grande expectativa de que Milei teria de fazer uma desvalorização maior do peso quando acabou com a maior parte das restrições externas, após renegociar o acordo com o FMI e receber US$ 12 bilhões logo depois. O câmbio paralelo (blue) hoje está apenas 0,6% acima do oficial, um feito, ajudado também pela “anistia” para que os argentinos trouxessem seus dólares para a Argentina ou os tirassem do colchão — sem precisarem explicar sua origem, qualquer que fosse.

O acordo com o FMI previa um aumento gradativo das reservas internacionais. Uma missão foi a Buenos Aires avaliar o desempenho, e o governo argentino pensa em pedir um “waiver” pelo descumprimento desse ponto. Ele, porém, não é secundário.

O dólar ficou “barato” para os argentinos, que passaram a viajar mais ao exterior, ao mesmo tempo em que as importações caíram de preço. O resultado é que o déficit em conta corrente foi de US$ 5,2 bilhões pela combinação principal dos dois fatores. Segundo o Indec, mais de 6,7 milhões de argentinos foram ver o mundo nos primeiros cinco meses do ano, enquanto a Argentina tornou-se cara demais para atrair turistas, cujo fluxo diminuiu muito. Houve um déficit de US$ 3,46 bilhões na rubrica viagem no primeiro trimestre, em serviços. As importações, antes represadas por muitos mecanismos burocráticos, aumentaram, e o saldo da balança comercial em maio caiu para apenas US$ 608 milhões. As exportações caíram 7,4%, enquanto as compras externas cresceram 29,4%.

Como resultado dessa dinâmica, a equipe econômica argentina estima que o déficit em conta corrente deve atingir 2% do PIB este ano, bem acima da meta de 0,4% estabelecida no acordo com o FMI. Porém, o governo argentino minimiza esse déficit argumentando que isso “é algo absolutamente esperado” em um “país que cresce a uma taxa anual de 6%”.

Não há muitas formas de obter dólares para as reservas. O país precisa aumentar o superávit comercial, e a valorização do peso argentino — que foi uma ferramenta para derrubar uma inflação muito alta para 1,5% ao mês em maio — tira a competitividade das exportações e aumenta a das importações. Outra maneira seria atrair volumosos investimentos diretos para o país, o que pode ocorrer no futuro se as deficiências da economia argentina, que começaram a ser sanadas, forem reduzidas. Os investimentos em portfólio, de curto prazo, podem fazer alguma diferença, mas eles serão contidos pelo rating ainda baixo do país, que não se livrará tão cedo da imagem dos vários calotes que protagonizou.

Milei conseguiu muito até agora, especialmente porque seu partido é minúsculo e não tem força no Congresso. Para levar adiante as reformas, precisará de bom desempenho nas eleições legislativas, e os indícios para ele são promissores, por enquanto. Mas o nó que amarra a economia argentina ainda não foi desatado.

Polêmica do IOF é ponta do iceberg fiscal

Folha de S. Paulo

Enquanto governo mirava R$ 40 bi com imposto em 2026, Banco Mundial alerta que contas precisam de ajuste de R$ 380 bi

Controvérsias em torno de medidas pontuais para as contas públicas, como na recente tentativa frustrada de elevação do IOF, por vezes ofuscam um diagnóstico mais amplo do desequilíbrio orçamentário a ser enfrentado pelo país.

Relatório recém-publicado pelo Banco Mundial aponta que o Estado brasileiro precisa de um ajuste equivalente a 3% do Produto Interno Bruto em seu saldo primário (receitas menos despesas, excluindo juros) para conter a escalada de sua dívida, hoje em 76% do PIB e com perspectivas de superar 80% no futuro próximo.

Fala-se aqui de R$ 380 bilhões anuais —enquanto o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretendia obter R$ 40 bilhões em 2026 por meio da alta do IOF.

Com o avanço do endividamento desde 2013, de mais de 20 pontos percentuais, é preciso não somente eliminar o déficit do Tesouro Nacional, mas fazer superávits capazes de enfrentar os juros e sustar essa alta. Imaginar que isso será conseguido apenas com mais impostos —dada uma carga tributária já excessiva, em torno de 33% do PIB— é ilusório.

Como aponta o Banco Mundial, a maior parte do ajuste deve vir do controle de despesas. Reformas previdenciária e administrativa, incluindo a desvinculação de benefícios sociais do salário mínimo, são medidas necessárias para conter o crescimento desenfreado das despesas obrigatórias.

Além disso, a revisão de subsídios e isenções fiscais, que hoje superam 4% do PIB só no âmbito federal, é essencial para liberar recursos e aumentar a eficiência do gasto público.

Quanto aos impostos, a recomendação é alargar a base do Imposto de Renda por meio da diminuição de abatimentos que beneficiam os mais ricos.

O relatório também propõe uma abordagem inovadora ao sugerir políticas fiscais com vantagens ambientais, como a reforma do Imposto Territorial Rural (ITR). Atualmente, o tributo arrecada apenas R$ 3,1 bilhões anuais, ante um potencial de vinte vezes isso, conforme comparação com países como a Austrália.

Há também sugestões para reduzir subsídios ao setor agropecuário e adotar mecanismos que ajudem a reduzir emissões de carbono e alinhem o ajuste fiscal a metas de sustentabilidade.

As regras de controle de gastos implementadas no governo petista já se mostraram insuficientes. A rigidez orçamentária, agravada por despesas obrigatórias que crescem acima da inflação, compromete a capacidade do Estado de responder a crises e promover crescimento sustentável.

Sem reformas, as projeções são de expansão da dívida pública em proporção do PIB até 2033, o que tornará muito difícil reduzir os juros e manterá o país vulnerável a crises financeiras severas.

Infelizmente, ao que tudo indica, não haverá mais do que paliativos até as eleições do próximo ano, e as providências urgentes ficarão para o próximo governo. A dúvida é se um colapso da máquina pública vai esperar até lá.

Maternidade em baixa traz desafios para o país

Folha de S. Paulo

Taxa de fecundidade brasileira cai ao menor nível desde 1940; impactos exigirão mais do Estado em políticas de seguridade

A redução na taxa de fecundidade (o número médio de filhos que uma mulher teria ao longo de sua vida reprodutiva) está relacionada ao progresso do estrato feminino. O fenômeno indica que mulheres têm mais acesso a informação, a métodos contraceptivos, aos estudos e ao mercado de trabalho.

Tal aspecto positivo, no entanto, vem acompanhado de desafios não triviais, como o impacto nas contas previdenciárias. Trata-se de tendência global, e dados do Censo 2022 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o Brasil não é exceção.

Em 2022, a taxa foi de 1,55 filho por mulher. Esse patamar é o menor da série histórica, iniciada em 1940, e está abaixo do chamado nível de reposição (2,1 filhos por mulher) —a média necessária para que o tamanho da população se mantenha estável. A taxa começou a cair a partir de 1960, quando era de 6,28.

Também verificou-se elevação na idade média na qual mulheres tornam-se mães, de 26,3 anos para 26,8 anos entre 2000 e 2010, até chegar a 28,1 anos em 2022.

Ademais, aumentou a porcentagem de pessoas do sexo feminino na faixa entre 50 e 59 anos que não têm filhos: 16,1% em 2022, ante 11,8% em 2010 e 10% em 2000.

A taxa de fecundidade no Brasil (1,55) é igual à da média da OCDE. Mas, diferentemente das nações mais ricas da entidade, o país não aproveitou a janela de oportunidade do bônus demográfico para se desenvolver. Essa janela, agora, está se fechando.

Segundo estudo da organização, 2064 marcará o ano na história moderna em que pela primeira vez o índice global de mortalidade superará o de natalidade.

O resultado é a queda da parcela economicamente ativa da população, o que tende a implicar encarecimento inflacionário da mão de obra, acompanhada por alta de despesas com aposentadorias, pensões e saúde, sobrecarregando as contas públicas.

No Brasil, os pagamentos do INSS, que até caíram após a reforma de 2019, alcançaram 8% em 2024 e a projeção oficial é de alta até 10% por volta de 2050, evidenciado a necessidade de novos ajustes no sistema, nos regimes de servidores civis e militares e de novas formas de contribuição alinhadas a variadas modalidades de trabalho.

Será necessário ainda fortalecer o SUS, em particular nas políticas voltadas para a população mais idosa, repensar normas de imigração e mitigar o encolhimento da força de trabalho. Todas essas deixaram de ser questões a serem tratadas apenas em um futuro distante.

Paternalismo judicial

O Estado de S. Paulo

Ao dizer que, não fosse pelo Supremo, haveria ‘213 milhões de pequenos tiranos’ no Brasil, Cármen Lúcia revela que parte da Corte vê o cidadão não como titular de direitos, mas como ameaça

A desordem instaurada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet não se desvela “apenas”, por assim dizer, como um erro jurídico. Um erro, eventualmente, pode ser corrigido. O problema é mais grave. Subjaz à confusa decisão da Corte o predomínio de uma mentalidade autoritária segundo a qual caberia aos doutos 11 ministros salvar os brasileiros de si mesmos, resgatá-los da incivilidade e do despreparo para tomar decisões e formar juízos por conta própria.

Do constrangedor despreparo exposto por alguns ministros ao voluntarismo manifestado por outros, o páreo era duríssimo. Mas nada encarnou tão bem esse espírito daninho que animou o STF durante o julgamento quanto o voto da ministra Cármen Lúcia. Ao decidir pela responsabilização das redes sociais pelo conteúdo publicado por usuários sem a devida moderação judicial, a ministra afirmou que “não se pode permitir que estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”. Noves fora a arrogância, trata-se de uma visão absolutamente distorcida da democracia, do papel do Judiciário e, não menos importante, do serviço que o Supremo deve prestar à sociedade.

Ao fim e ao cabo, o que a maioria do STF revelou entender por democracia é um regime no qual o cidadão não é visto como titular de direitos, mas como uma potencial ameaça a ser contida pelo Estado. As togas que se prestaram a uma avaliação desse jaez não serviram à impessoalidade, à imparcialidade e à dignidade da Justiça – serviram à tirania. Foi exatamente o que o Supremo fez. Agora, sim, a internet será “terra de ninguém”. Agora, de fato, haverá milhões de “pequenos tiranos soberanos” prontos para apontar o dedo para tudo o que encontrarem de “ofensivo” nas redes sociais. Pouco ou nada de útil para o debate público online sobreviverá à razia desses bem-intencionados servos da “verdade” e da “democracia”.

Para infortúnio do País, por mais problemática que seja, a infeliz intervenção de Cármen Lúcia está longe de ser um caso isolado, como se sabe. A fala da ministra foi só mais uma expressão de um ânimo que se consolidou no Supremo nos últimos anos para tutelar a sociedade em uma miríade de questões, como se os cidadãos brasileiros fossem incapazes de exercer sua liberdade com responsabilidade. Nesse sentido, Cármen Lúcia aliou-se ao colega Dias Toffoli, segundo quem o Supremo exerce um “poder moderador” e, por essa razão, os ministros atuam como “editores de um país inteiro”. Incontornável lembrar, ainda, que o próprio presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, já falou em “recivilizar” o Brasil.

Ao classificar todos os brasileiros, indiscriminadamente, como “pequenos tiranos soberanos”, a ministra Cármen Lúcia parece ter esquecido que a liberdade de expressão, com todos os seus excessos e imperfeições, é um pilar fundamental da vida democrática. Abusos, desde que criminosos, devem ser responsabilizados, como já previa o próprio Marco Civil da Internet, entre outras leis. Mas o que se prega é a supressão de discursos indesejados em nome de uma sanha purgatória que seguramente descambará, como já sublinhamos nesta página, para a censura prévia e/ou para o agravamento do quadro de desconfiança sistemática que grassa no debate público em ambiente digital.

A missão do Supremo não é nem nunca foi reeducar a sociedade – muito menos silenciá-la seja lá por que meios. É resguardar a Constituição e as leis tais como elas são, não como deveriam ser, e garantir a todos os cidadãos os seus direitos fundamentais, entre eles o direito de livre manifestação do pensamento.

A Corte, por sua própria natureza contramajoritária, deve ter cuidado redobrado ao se pronunciar sobre temas que tocam diretamente a liberdade individual. Quando se afasta desse princípio, o Supremo corre o risco de deixar de ser visto como guardião da Constituição para se tornar instrumento de controle do discurso público – algo incompatível com os fundamentos de uma democracia liberal que, pelo jeito, ainda tem um longo caminho a percorrer até o pleno grau de amadurecimento

O PCC e suas ‘filiais’ em 28 países

O Estado de S. Paulo

Com mais de 2 mil integrantes espalhados pelo exterior, facção criminosa expande atuação e presença em prisões mundo afora e evidencia necessidade de atuação internacional para enfrentá-la

O Primeiro Comando da Capital (PCC) já está presente em ao menos 28 países, segundo um recente mapeamento do Ministério Público de São Paulo (MP-SP). São mais de 2 mil integrantes da maior facção criminosa brasileira espalhados pelo mundo. Esses bandidos atuam dentro e fora dos presídios em nações das Américas, da Europa e da Ásia. Quase metade deles está nas ruas, e o restante, detido no sistema carcerário.

A novidade, agora, é que o PCC tem realizado “batizados”, uma espécie de ritual de iniciação, também no exterior. Segundo o promotor de Justiça Lincoln Gakiya, esses processos de adesão já foram registrados em prisões de países como Argentina, Chile, Paraguai e Bolívia. E em países onde já tem forte atuação, como Portugal, Espanha, Holanda e Estados Unidos, a organização já estaria “batizando”, inclusive, cidadãos locais, e não só brasileiros residentes.

O Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do MP-SP, descobriu ainda que a presença internacional da organização repete o modelo brasileiro. Isso inclui a “sintonia”, composta por integrantes do alto escalão; o “progresso”, responsável pelo tráfico; e o “disciplina”, um árbitro de disputas do mundo do crime e fiscal do cumprimento das ordens dos líderes. Para o constrangimento do Brasil, é esse modelo criminoso que está em exportação.

É por meio de ordens emitidas de dentro das prisões a seus batizados que os líderes do PCC estabelecem uma rígida cadeia de comando, dominam territórios, diversificam seus negócios ilícitos e levam terror às ruas. Agora, a facção poderá reproduzir lá fora esse ciclo de violência. E, quanto mais forte o PCC estiver, seja lá onde for, pior para o Brasil.

Desvendado por meio do monitoramento de integrantes do PCC pelo Gaeco, o processo de expansão territorial mostra a ousadia da facção, que agora finca suas raízes mundo afora – e o Brasil sabe muito bem como elas crescem. Basta lembrar que esse bando nasceu nos anos 1990 num presídio de Taubaté, no interior de São Paulo, com meia dúzia de faccionados, e hoje reúne cerca de 40 mil bandidos em todas as regiões do País e agora também pelo mundo.

Para crescer dessa forma exponencial, o PCC contou com a ineficácia do Estado brasileiro em combatê-lo desde os primórdios, quando era um organismo insignificante. Diante da inépcia e não raro omissão do poder público, o bando encontrou condições ideais para se alastrar pelo sistema carcerário, de onde seus líderes impõem a fidelidade ao grupo como um elemento central da sua estruturação de poder, nas celas e nas ruas.

Não é de hoje que o tráfico internacional de drogas, sobretudo o de cocaína, impulsiona o PCC. O objetivo da facção sempre foi encontrar rotas e parceiros, como a máfia italiana ‘Ndrangheta, para enviar a cocaína produzida nos vizinhos Bolívia, Peru e Colômbia aos lucrativos mercados de países europeus e asiáticos. É por isso que há integrantes da organização também na França, na Irlanda, na Suíça, na Turquia e até no Japão.

O impressionante faturamento anual de US$ 1 bilhão, ou mais de R$ 5 bilhões, conforme estimado pelo MP-SP, ajuda a entender a ambição dos criminosos brasileiros na busca por mais territórios. Não só o tráfico, com a venda final da cocaína, interessa ao PCC, mas também a prática do crime de lavagem de dinheiro, pelo qual tenta, e consegue, movimentar quantias vultosas, driblando as autoridades.

Esse poderio geográfico e financeiro do PCC exige do poder público brasileiro, e agora também do estrangeiro, a capacidade de se antecipar aos movimentos da facção e o uso de inteligência para combater o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Torna-se cada vez mais necessária a cooperação internacional para a troca de informações e a atuação conjunta para asfixiar esse bando.

Os achados sobre o PCC já começaram a ser compartilhados pelo MP-SP com embaixadas e consulados. Que os países alertados não repitam os erros cometidos no passado pelo Brasil, e que o Brasil firme parcerias com esses países para lutar contra o crime transnacional e corrigir o equívoco de ter subestimado o PCC desde o início.

Empregos a jato no TJ-SP

O Estado de S. Paulo

Deputados paulistas criam cargos no Judiciário e dão aumento sem saber o impacto financeiro

Em apenas 93 segundos, os deputados estaduais paulistas aprovaram projetos de lei que inflam o quadro de magistrados e servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) e concedem reajustes de salário para servidores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O pacote com quatro propostas foi chancelado por aclamação. Por meio desse modelo de votação, o presidente da sessão pede que os parlamentares favoráveis permaneçam como estão e, assim, dão o seu aval à iniciativa. E, no caso desses projetos de lei, apenas três deputados, de um total de 94 da Alesp, manifestaram votos contrários.

A decisão praticamente unânime da Casa acarreta na criação de mais de 1,3 mil cargos de escrevente, chefe de seção judiciário, supervisor, coordenador, diretor e juiz de primeira instância, que, em que pese a velocidade da aprovação, durarão anos. Desse total, são mais de 300 cargos de coordenadores, com salários acima de R$ 15 mil, e 80 de magistrados, com remunerações de R$ 37,7 mil ou R$ R$ 39,7 mil, que dependerão da chamada entrância – intermediária ou final – e serão contemplados, mais cedo ou mais tarde, por penduricalhos de toda a sorte. Além disso, os servidores do TCE e da Alesp terão aumento de 5% e 7%, respectivamente.

Esse tipo de votação a jato carrega alguns significados. O primeiro deles evidencia o consenso em torno dessas propostas na Alesp, haja vista que, para que os projetos de lei sejam chancelados dessa forma, é necessário um acordo prévio dos líderes partidários. O que se vê é um harmonioso alinhamento entre os Poderes Legislativo e Judiciário em iniciativas que implicam o aumento da máquina pública. Além disso, explicita a força do lobby dos servidores dessas instituições em defesa de suas pautas corporativistas.

Mas, não menos importante, a aprovação desse pacote, sem nenhum debate, mostra que os parlamentares paulistas fizeram o possível para fugir da vergonha de defender em plenário a criação de cargos públicos e o aumento de salários. Teriam de admitir em público que cederam à pressão de categorias muito bem articuladas e foram irresponsáveis com o dinheiro público. Para piorar, as propostas foram aprovadas sem que a maior parte delas contivesse uma estimativa de seus gastos – a exceção foi o TCE, que calculou o impacto de sua medida em R$ 20,5 milhões ao ano. O TJ-SP e a Alesp apenas afirmaram que têm orçamento próprio, o que, segundo esse raciocínio, lhes confere autonomia para executar essas ações.

Autonomia, no entanto, não é carta-branca quando se trata de dinheiro público. Sem debater as projeções financeiras para o Tribunal de Justiça de São Paulo e a própria Alesp, os deputados deram o aval para a criação de cargos e aumentos de salários sem ter a mínima ideia do peso de suas decisões sobre os cofres públicos, que são irrigados com o dinheiro arrecadado pelos impostos pagos pelos contribuintes paulistas.

Machismo também leva à baixa fecundidade

Correio Braziliense

Em um país estruturalmente machista, decidir não ser mãe ou ter poucos filhos pode ser também uma questão de sobrevivência

A queda histórica na taxa de fecundidade no Brasil, detalhada na semana passada pelo IBGE, desperta debates sobre temas como o envelhecimento acelerado do país, a ruptura com a cobrança social pela maternidade, a consolidação do planejamento familiar e o aumento do grau de escolaridade entre as mulheres. Como todo o fenômeno complexo, as possibilidades de análises são diversas. E a perspectiva considerando a relação desigual entre gêneros precisa ser uma delas. Em um país estruturalmente machista, decidir não ser mãe ou ter poucos filhos pode ser também uma questão de sobrevivência.

Se não, como se manter em um mercado de trabalho avesso à maternidade? Não faltam estudos indicando uma taxa de demissão significativa — que deixaria qualquer especialista em alta rotatividade empresarial sem sono — entre as mulheres que voltam da licença-maternidade. Famosa pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) intitulada Mulheres perdem trabalho após terem filhos revela que, depois de 24 meses do afastamento garantido por lei, metade delas sai do mercado. 

Quando não são demitidas, sucumbem a dificuldades como falta de creches, de flexibilidade no horário de trabalho e de alguém para compartilhar os cuidados com a prole. Há de se lembrar que o abandono parental é regra no Brasil. Também o Censo 2022 indica que o número de mães solo é seis vezes maior que o de homens na mesma condição: de todos os adultos que moram sozinhos com os filhos no país, 86,4% são mulheres.

A disparidade salarial deixa o cenário ainda mais desfavorável. Mães solteiras têm a menor renda familiar do país. Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad), referentes a 2022, mostram que o rendimento das mães solo no Brasil é 39% menor do que o dos homens solteiros e com filhos: média de R$ 2.105 e R$ 3.443, respectivamente. A questão de gênero fica ainda mais evidente quando se considera que a renda média dos pais casados é praticamente a mesma da dos pais solos: R$ 3.438.

O cenário tão desfavorável no mundo do trabalho se repete em outras esferas sociais, abrindo espaço para a prática de outros abusos. Portanto, não é exagero afirmar que a violência de gênero pode levar mulheres a escolherem não formar grandes famílias ou terem filhos. Estar grávida ou puérpera é, inclusive, considerado condição de maior vulnerabilidade no formulário de avaliação de risco para feminicídio elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça. Isso porque o parceiro costuma ficar mais violento ao perceber que terá que dividir a mulher com outra pessoa, ainda que seja um filho.

O país que está abaixo do nível de reposição demográfica  — quando a média de filhos necessária para que o tamanho da população se mantenha (2,1 contra 1,55) — é também o que impede mulheres de envelhecerem (10 são vítimas de feminicídio por dia, segundo o Atlas da Violência 2025) e que deixa marcas profundas nas sobreviventes (25% das vítima de violência doméstica têm até 14 anos, sendo 45,7% dos casos ligados à violência sexual, por exemplo). Portanto, precisa urgentemente implementar medidas que revertam ou amenizem todos esses cenários.

Negar a maternidade ou ter poucos filhos é, sem dúvidas, reflexo do imperioso processo de emancipação feminina. Mas seguir um caminho contrário pode ser tão desafiador quanto. Mulheres não devem fazer escolhas, quaisquer que elas sejam, acuadas por um sistema de crenças e práticas que as inferioriza. O Brasil de poucos bebês ainda tem muito a avançar rumo a uma igualdade de gêneros plena. 

A política é a arte do diálogo

O Povo (CE)

Brasília segue emitindo sinais preocupantes à nossa democracia porque resultantes de uma aparente perda de capacidade de diálogo entre os interlocutores dos principais poderes da República. Os comandos do Executivo e do Legislativo precisam apresentar um esforço maior para refazer as pontes de uma conversa que deve fluir com naturalidade para se evitar que o ambiente institucional saia arranhado.

A tensão cresceu bastante a partir de quando, na semana passada, o Congresso, em votações sequenciadas que aconteceram na Câmara e no Senado, derrubou um decreto presidencial que alterava taxas de cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). O argumento principal, que talvez ainda deva ser explicado em mais detalhes, é que representaria um aumento na carga tributária, pesando no dia-a-dia do contribuinte. Portanto, teria sido, conforme o discurso, um movimento dos parlamentares em favor do cidadão.

A derrubada de um decreto presidencial é algo raro e claro que desencadeou desdobramentos que já envolvem também o Judiciário, onde começou a tramitar uma ação que questiona a constitucionalidade da decisão tomada no âmbito do parlamento.

O que se vê, desde então, é uma troca de declarações públicas de vozes importantes do Congresso e do Executivo que indicam pouca disposição para, na busca de uma saída para a crise, abrir-se um diálogo que possibilite superar um impasse que não interessa ao País que se estenda além do necessário. Nenhum poder é subserviente ao outro, a independência entre eles é uma característica que precisa ser preservada, mas isso pode acontecer sem atropelar a importância de a relação se dar, também, de maneira harmônica.

A disposição no governo, especialmente na equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é de lutar com todas as armas disponíveis para restabelecer a medida que o Congresso anulou, sob o argumento fundamental de que ela é importante para manter o equilíbrio das contas públicas. O recurso que já tramita no STF foi apresentado pelo Psol, mas a Advocacia Geral da União (AGU) também pode ser acionada para adotar o mesmo caminho, a depender apenas de uma decisão política do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Este é um dos pontos de tensão institucional dos últimos dias.

Melhor seria que estivessem todos esses personagens envolvidos numa discussão a sério, e de fundamento, sobre a saúde das nossas contas públicas e a melhor maneira de o Estado encontrar o caminho do equilíbrio em sua estrutura fiscal. A briga que assistimos acontecer, envolvendo algumas das figuras mais influentes da política nacional, não parece levar a lugar nenhum e, em muitos aspectos, diz respeito mais a objetivos políticos do que ao interesse público. 

 

 

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