Lula é quem mais tem a perder com o ‘nós contra eles’
O Globo
PT erra ao tentar manter aumento de impostos
e ao dizer que só os mais ricos pagarão a conta
No embate com o Congresso em torno do aumento
do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva e o PT optaram mais uma vez pela tática do “nós contra eles”. Em vídeos
feitos para redes sociais, o “povo” carrega pesados fardos nas costas (os
impostos), enquanto personagens bem vestidos, representando os “ricos”, levam
pequenas sacolas simbolizando taxação leve. Mais uma vez, o governo tenta
justificar sua tentativa de promover um ajuste fiscal aumentando receitas, em vez
de cortar gastos. A tática usada para fustigar o Congresso é um equívoco tanto
do ponto de vista econômico quanto do político.
É verdade que a estrutura de impostos brasileira é regressiva (em termos proporcionais, as faixas de renda mais alta arcam com carga menor de impostos). Pode fazer sentido, por isso, corrigir a base de cálculo do Imposto de Renda em benefício das faixas de menor renda. Mas é absurdo acreditar que a alta do IOF afete apenas os mais ricos. O tributo recai sobre empréstimos, cartões de crédito e outras operações financeiras. Seu aumento nas transações cambiais encarece importações, alimentando a inflação e punindo os mais pobres. O empréstimo rotativo do cartão, usado sobretudo pelos pobres, também fica mais caro. E saem perdendo os microempreendedores individuais (MEIs), que buscam crédito para financiar equipamentos como carrinhos de venda ou máquinas de costura.
Se estivesse mesmo interessado em tornar os
impostos mais progressivos, o caminho recomendado jamais seria aumentar o IOF.
O certo seria enfrentar a barafunda de regimes especiais que beneficiam
diversos setores, custando à sociedade um valor que o próprio governo estimou
em R$ 800 bilhões anuais. É o caso da Zona Franca de Manaus, do Simples
Nacional — usado por profissionais liberais para pagar menos imposto —, de
benesses para a indústria farmacêutica, automotiva, de painéis solares e outros
subsídios cuja eficácia jamais é avaliada. Em nenhum momento o PT se dispôs a
estabelecer critérios de revisão dos benefícios tributários, por receio de
enfrentar grupos de interesse.
A campanha do governo também representa
enorme equívoco político. Para começar, a eficácia dos anúncios é incerta. Como
reagirá uma doceira ou costureira que é MEI ao ser comparada a um plutocrata
por pagar IOF em empréstimos? “Quem alimenta o ‘nós contra eles’ acaba
governando contra todos”, afirmou o presidente da Câmara, Hugo Motta
(Republicanos-PB). Ele tem razão. Motta deveria aproveitar a oportunidade para
levar adiante uma agenda propositiva capaz de equacionar a crise fiscal, com
medidas como a desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo e
a das despesas com saúde e educação da arrecadação tributária.
Por fim, a política do “nós contra eles” já
foi tentada pelo petismo no passado e deu no que deu. Aqueles que o PT
considerava seus rivais — ou “eles” — se agruparam, se tornaram politicamente
mais fortes e constituíram uma nova oposição, de onde surgiu um governo
extremista que ameaçou a democracia. Lula não deveria esquecer que se elegeu
graças ao apoio de uma frente ampla, cujo programa incluía a disciplina fiscal.
Ao abandonar esse compromisso e voltar a apostar no discurso embolorado que já
deu errado no passado, ele próprio e seu partido são quem mais tem a perder.
Ilha de lixo em rio da Amazônia reflete falha
da diplomacia ambiental
O Globo
Lixão de cidade peruana se acumula no Rio
Javarizinho trazendo riscos a florestas e populações da região
Rios e poluição não respeitam fronteiras. É o
que mostra o lixão fluvial que se acumula no Rio Javarizinho, na Amazônia,
formado pelo descarte do vilarejo peruano de Islândia, na tríplice fronteira
entre Brasil, Peru e Colômbia. Há de tudo. De lixo hospitalar a embalagens de
plástico, represados em redes de pesca ou troncos. A cidade brasileira mais
prejudicada pelo lixão flutuante é Benjamin Constant, de 45 mil habitantes, no
Alto Solimões. No lado brasileiro, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas
se mobilizou para que, no ano da realização em Belém da Conferência do Clima da
ONU, a COP30, Brasil e Peru se entendam, impedindo que águas contaminadas
continuem a afetar a população, fauna e flora da região.
A Defensoria enviou ofícios pedindo ajuda aos
ministros Mauro Vieira, das Relações Exteriores, e Marina Silva, do Meio
Ambiente. Fez também um alerta sobre os riscos e impactos da poluição para
povos indígenas e comunidades tradicionais. Trata-se, segundo o defensor
público Rafael Barbosa, de uma “crise ambiental-diplomática” que precisa ser
tratada pelo governo federal, uma vez que os rios em questão (o Javarizinho é
afluente do Javari, que desemboca no Solimões) são da alçada federal. Além
disso, qualquer assunto envolvendo outro país requer atenção do Itamaraty.
Procurado pelo GLOBO, o Itamaraty informou
que apenas a pasta do Meio Ambiente poderia se pronunciar sobre o assunto, por
ser “responsável pelo tema”. De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, o
governo brasileiro já levou a questão a autoridades federais peruanas em 18 de
junho, na reunião do Grupo de Cooperação Ambiental Fronteiriça (Gcaf), em que
os dois países abordam temas ambientais comuns. Na ocasião, o Brasil propôs a
destinação compartilhada dos resíduos para um aterro sanitário, tema da pauta da
próxima reunião do Gcaf, agendada para 10 de julho. É positivo o fato de Brasil
e Peru já terem um plano conjunto de manejo de resíduos sólidos, com a
participação da província peruana de Tahuamanu e do Estado do Acre. Mas é
preciso agir com mais celeridade.
É necessário que a questão da ilha de lixo que cresce no lado brasileiro tramite com a devida urgência pelos diversos órgãos públicos. O Brasil e seus vizinhos nas fronteiras Centro-Oeste e Norte compartilham vários problemas comuns. A Bolívia tem altas taxas de desmatamento e usa fogo para abrir e limpar áreas agrícolas, com risco para as florestas brasileiras. Garimpos ilegais bolivianos e peruanos também ajudam a poluir de mercúrio rios que ultrapassam fronteiras. O combate a essas fontes de poluição precisa ser compartilhado. Se o Brasil enfrenta garimpos ilegais e a devastação de florestas, esse enfrentamento também precisa ser levado a cabo do outro lado da fronteira. Quando a diplomacia ambiental falha, o resultado são desastres como o lixão do Rio Javarizinho.
Argentina tem desafios como atrair dólares
para reservas
Valor Econômico
O país precisa aumentar o superávit
comercial, mas a valorização do peso argentino tira a competitividade das
exportações e aumenta a das importações
A Argentina tem chamado a atenção pelos
resultados obtidos pelo presidente Javier Milei, que promoveu um ajuste fiscal
sem precedentes em tempos de paz, estabilizou o câmbio e reduziu drasticamente
a inflação. Esses avanços garantiram um novo programa de crédito de US$ 20
bilhões do FMI, que deu tranquilidade aos investidores quanto à solvência do
país. Não obstante, a Argentina ainda enfrenta desafios significativos, como
reservas internacionais líquidas baixas e crescente déficit em conta corrente.
Alguns dados recentes levantam dúvidas quanto à retomada da economia.
O Produto Interno Bruto (PIB) argentino
cresceu menos que o esperado no primeiro trimestre, com a retomada das
importações, juntamente com a queda nas exportações e nos gastos do governo,
desacelerando a recuperação do país, segundo informou o Instituto Nacional de
Estatística e Censos (Indec) na semana passada. Em relação ao quarto trimestre
de 2024, o PIB argentino cresceu 0,8%, bem abaixo da expansão de 2% e de 3,9%,
respectivamente, registradas no quarto e no terceiro trimestres do ano passado.
Em termos anuais, o PIB argentino cresceu 5,8% no primeiro trimestre, resultado
que ficou aquém da projeção de 6,1% feita com base nos dados mensais de
atividade.
O desemprego e a informalidade cresceram
durante o governo Milei: o desemprego passou de 5,7% no quarto trimestre de
2023 para 7,9% no primeiro trimestre deste ano (1,8 milhão de pessoas),
enquanto a informalidade subiu para 42%, segundo dados do Indec.
E apesar das reformas implementadas em abril
— incluindo a adoção de uma taxa de câmbio flutuante administrada, a eliminação
de restrições à compra e transferência de dólares para o exterior por
residentes e a autorização para empresas e investidores estrangeiros
transferirem dividendos e lucros de investimentos sob certas condições — o
Morgan Stanley Capital International (MSCI) manteve a classificação da
Argentina como “mercado independente” (“standalone market”), seu nível mais
baixo, argumentando que as “principais limitações para investidores
estrangeiros permanecem”. O MSCI sequer incluiu a Argentina na lista de países
com potencial de serem reclassificados como “de fronteira” ou “emergentes” em
2026.
Porém, é importante deixar claro que o
sucesso do programa é inegável, mas um dos principais problemas se mantém: a
falta de reservas internacionais.
Havia grande expectativa de que Milei teria
de fazer uma desvalorização maior do peso quando acabou com a maior parte das
restrições externas, após renegociar o acordo com o FMI e receber US$ 12
bilhões logo depois. O câmbio paralelo (blue) hoje está apenas 0,6% acima do
oficial, um feito, ajudado também pela “anistia” para que os argentinos
trouxessem seus dólares para a Argentina ou os tirassem do colchão — sem
precisarem explicar sua origem, qualquer que fosse.
O acordo com o FMI previa um aumento
gradativo das reservas internacionais. Uma missão foi a Buenos Aires avaliar o
desempenho, e o governo argentino pensa em pedir um “waiver” pelo
descumprimento desse ponto. Ele, porém, não é secundário.
O dólar ficou “barato” para os argentinos,
que passaram a viajar mais ao exterior, ao mesmo tempo em que as importações
caíram de preço. O resultado é que o déficit em conta corrente foi de US$ 5,2
bilhões pela combinação principal dos dois fatores. Segundo o Indec, mais de
6,7 milhões de argentinos foram ver o mundo nos primeiros cinco meses do ano,
enquanto a Argentina tornou-se cara demais para atrair turistas, cujo fluxo
diminuiu muito. Houve um déficit de US$ 3,46 bilhões na rubrica viagem no primeiro
trimestre, em serviços. As importações, antes represadas por muitos mecanismos
burocráticos, aumentaram, e o saldo da balança comercial em maio caiu para
apenas US$ 608 milhões. As exportações caíram 7,4%, enquanto as compras
externas cresceram 29,4%.
Como resultado dessa dinâmica, a equipe
econômica argentina estima que o déficit em conta corrente deve atingir 2% do
PIB este ano, bem acima da meta de 0,4% estabelecida no acordo com o FMI.
Porém, o governo argentino minimiza esse déficit argumentando que isso “é algo
absolutamente esperado” em um “país que cresce a uma taxa anual de 6%”.
Não há muitas formas de obter dólares para as
reservas. O país precisa aumentar o superávit comercial, e a valorização do
peso argentino — que foi uma ferramenta para derrubar uma inflação muito alta
para 1,5% ao mês em maio — tira a competitividade das exportações e aumenta a
das importações. Outra maneira seria atrair volumosos investimentos diretos
para o país, o que pode ocorrer no futuro se as deficiências da economia
argentina, que começaram a ser sanadas, forem reduzidas. Os investimentos em
portfólio, de curto prazo, podem fazer alguma diferença, mas eles serão
contidos pelo rating ainda baixo do país, que não se livrará tão cedo da imagem
dos vários calotes que protagonizou.
Milei conseguiu muito até agora,
especialmente porque seu partido é minúsculo e não tem força no Congresso. Para
levar adiante as reformas, precisará de bom desempenho nas eleições
legislativas, e os indícios para ele são promissores, por enquanto. Mas o nó
que amarra a economia argentina ainda não foi desatado.
Polêmica do IOF é ponta do iceberg fiscal
Folha de S. Paulo
Enquanto governo mirava R$ 40 bi com imposto
em 2026, Banco Mundial alerta que contas precisam de ajuste de R$ 380 bi
Controvérsias em torno de medidas pontuais
para as contas públicas, como na recente tentativa
frustrada de elevação do IOF, por vezes ofuscam um diagnóstico mais amplo
do desequilíbrio orçamentário a ser enfrentado pelo país.
Relatório recém-publicado pelo Banco Mundial
aponta que o Estado brasileiro precisa
de um ajuste equivalente a 3% do Produto Interno Bruto em seu saldo
primário (receitas menos despesas, excluindo juros) para
conter a escalada de sua dívida, hoje em 76% do PIB e com
perspectivas de superar 80% no futuro próximo.
Fala-se aqui de R$ 380 bilhões anuais
—enquanto o governo Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) pretendia
obter R$ 40 bilhões em 2026 por meio da alta do IOF.
Com o avanço do endividamento desde 2013, de
mais de 20 pontos percentuais, é preciso não somente eliminar o déficit do
Tesouro Nacional, mas fazer superávits capazes de enfrentar os juros e sustar
essa alta. Imaginar que isso será conseguido apenas com mais impostos —dada uma
carga tributária já excessiva, em torno de 33% do PIB— é ilusório.
Como aponta o Banco Mundial, a maior parte do
ajuste deve vir do controle de despesas. Reformas previdenciária e
administrativa, incluindo a desvinculação de benefícios sociais do salário
mínimo, são medidas necessárias para conter o crescimento desenfreado das
despesas obrigatórias.
Além disso, a revisão de subsídios e isenções
fiscais, que hoje superam 4% do PIB só no âmbito federal, é essencial para
liberar recursos e aumentar a eficiência do gasto público.
Quanto aos impostos, a recomendação é alargar
a base do Imposto de Renda por meio da diminuição de abatimentos que beneficiam
os mais ricos.
O relatório também propõe uma abordagem
inovadora ao sugerir políticas fiscais com vantagens ambientais, como a reforma
do Imposto Territorial Rural (ITR). Atualmente, o tributo arrecada apenas R$
3,1 bilhões anuais, ante um potencial de vinte vezes isso, conforme comparação
com países como a Austrália.
Há também sugestões para reduzir subsídios ao
setor agropecuário e adotar mecanismos que ajudem a reduzir emissões de carbono
e alinhem o ajuste fiscal a metas de sustentabilidade.
As regras de controle de gastos implementadas
no governo petista já se mostraram insuficientes. A rigidez orçamentária,
agravada por despesas obrigatórias que crescem acima da inflação, compromete a
capacidade do Estado de responder a crises e promover crescimento sustentável.
Sem reformas, as projeções são de expansão da
dívida pública em proporção do PIB até 2033, o que tornará muito difícil
reduzir os juros e manterá o país vulnerável a crises financeiras severas.
Infelizmente, ao que tudo indica, não haverá
mais do que paliativos até as eleições do próximo ano, e as providências
urgentes ficarão para o próximo governo. A dúvida é se um colapso da máquina
pública vai esperar até lá.
Maternidade em baixa traz desafios para o
país
Folha de S. Paulo
Taxa de fecundidade brasileira cai ao menor
nível desde 1940; impactos exigirão mais do Estado em políticas de seguridade
A redução na taxa de fecundidade (o número
médio de filhos que uma mulher teria ao longo de sua vida reprodutiva) está
relacionada ao progresso do estrato feminino. O fenômeno indica que mulheres
têm mais acesso a informação, a métodos contraceptivos, aos estudos e ao mercado
de trabalho.
Tal aspecto positivo, no entanto, vem
acompanhado de desafios não triviais, como o impacto nas contas
previdenciárias. Trata-se de tendência global, e dados do Censo 2022 divulgados
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que
o Brasil não é exceção.
Em
2022, a taxa foi de 1,55 filho por mulher. Esse patamar é o menor da série
histórica, iniciada em 1940, e está abaixo do chamado nível de reposição (2,1
filhos por mulher) —a média necessária para que o tamanho da população se
mantenha estável. A taxa começou a cair a partir de 1960, quando era de 6,28.
Também verificou-se elevação na idade média
na qual mulheres tornam-se mães, de 26,3 anos para 26,8 anos entre 2000 e 2010,
até chegar a 28,1 anos em 2022.
Ademais, aumentou a porcentagem de pessoas do
sexo feminino na faixa entre 50 e 59 anos que não têm filhos: 16,1% em 2022,
ante 11,8% em 2010 e 10% em 2000.
A taxa de fecundidade no Brasil (1,55) é
igual à da média da OCDE. Mas,
diferentemente das nações mais ricas da entidade, o país não
aproveitou a janela de oportunidade do bônus demográfico para se
desenvolver. Essa janela, agora, está se fechando.
Segundo estudo da organização, 2064 marcará o
ano na história moderna em que pela primeira vez o índice global de mortalidade
superará o de natalidade.
O resultado é a queda da parcela
economicamente ativa da população, o que tende a implicar encarecimento
inflacionário da mão de obra, acompanhada por alta de despesas com
aposentadorias, pensões e saúde,
sobrecarregando as contas públicas.
No Brasil, os pagamentos do INSS, que até
caíram após a reforma de 2019, alcançaram 8% em 2024 e a projeção oficial é de
alta até 10% por volta de 2050, evidenciado a necessidade de novos ajustes no
sistema, nos regimes de servidores civis e militares e de novas formas de
contribuição alinhadas a variadas modalidades de trabalho.
Será necessário ainda fortalecer o SUS, em particular nas políticas voltadas para a população mais idosa, repensar normas de imigração e mitigar o encolhimento da força de trabalho. Todas essas deixaram de ser questões a serem tratadas apenas em um futuro distante.
Paternalismo judicial
O Estado de S. Paulo
Ao dizer que, não fosse pelo Supremo, haveria
‘213 milhões de pequenos tiranos’ no Brasil, Cármen Lúcia revela que parte da
Corte vê o cidadão não como titular de direitos, mas como ameaça
A desordem instaurada pelo Supremo Tribunal
Federal (STF) após o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet não se
desvela “apenas”, por assim dizer, como um erro jurídico. Um erro,
eventualmente, pode ser corrigido. O problema é mais grave. Subjaz à confusa
decisão da Corte o predomínio de uma mentalidade autoritária segundo a qual
caberia aos doutos 11 ministros salvar os brasileiros de si mesmos, resgatá-los
da incivilidade e do despreparo para tomar decisões e formar juízos por conta
própria.
Do constrangedor despreparo exposto por
alguns ministros ao voluntarismo manifestado por outros, o páreo era duríssimo.
Mas nada encarnou tão bem esse espírito daninho que animou o STF durante o
julgamento quanto o voto da ministra Cármen Lúcia. Ao decidir pela
responsabilização das redes sociais pelo conteúdo publicado por usuários sem a
devida moderação judicial, a ministra afirmou que “não se pode permitir que
estejamos numa ágora em que haja 213 milhões de pequenos tiranos soberanos”.
Noves fora a arrogância, trata-se de uma visão absolutamente distorcida da
democracia, do papel do Judiciário e, não menos importante, do serviço que o
Supremo deve prestar à sociedade.
Ao fim e ao cabo, o que a maioria do STF
revelou entender por democracia é um regime no qual o cidadão não é visto como
titular de direitos, mas como uma potencial ameaça a ser contida pelo Estado.
As togas que se prestaram a uma avaliação desse jaez não serviram à
impessoalidade, à imparcialidade e à dignidade da Justiça – serviram à tirania.
Foi exatamente o que o Supremo fez. Agora, sim, a internet será “terra de
ninguém”. Agora, de fato, haverá milhões de “pequenos tiranos soberanos”
prontos para apontar o dedo para tudo o que encontrarem de “ofensivo” nas redes
sociais. Pouco ou nada de útil para o debate público online sobreviverá à razia
desses bem-intencionados servos da “verdade” e da “democracia”.
Para infortúnio do País, por mais
problemática que seja, a infeliz intervenção de Cármen Lúcia está longe de ser
um caso isolado, como se sabe. A fala da ministra foi só mais uma expressão de
um ânimo que se consolidou no Supremo nos últimos anos para tutelar a sociedade
em uma miríade de questões, como se os cidadãos brasileiros fossem incapazes de
exercer sua liberdade com responsabilidade. Nesse sentido, Cármen Lúcia
aliou-se ao colega Dias Toffoli, segundo quem o Supremo exerce um “poder
moderador” e, por essa razão, os ministros atuam como “editores de um país
inteiro”. Incontornável lembrar, ainda, que o próprio presidente da Corte, Luís
Roberto Barroso, já falou em “recivilizar” o Brasil.
Ao classificar todos os brasileiros,
indiscriminadamente, como “pequenos tiranos soberanos”, a ministra Cármen Lúcia
parece ter esquecido que a liberdade de expressão, com todos os seus excessos e
imperfeições, é um pilar fundamental da vida democrática. Abusos, desde que
criminosos, devem ser responsabilizados, como já previa o próprio Marco Civil
da Internet, entre outras leis. Mas o que se prega é a supressão de discursos
indesejados em nome de uma sanha purgatória que seguramente descambará, como já
sublinhamos nesta página, para a censura prévia e/ou para o agravamento do
quadro de desconfiança sistemática que grassa no debate público em ambiente
digital.
A missão do Supremo não é nem nunca foi
reeducar a sociedade – muito menos silenciá-la seja lá por que meios. É
resguardar a Constituição e as leis tais como elas são, não como deveriam ser,
e garantir a todos os cidadãos os seus direitos fundamentais, entre eles o
direito de livre manifestação do pensamento.
A Corte, por sua própria natureza
contramajoritária, deve ter cuidado redobrado ao se pronunciar sobre temas que
tocam diretamente a liberdade individual. Quando se afasta desse princípio, o
Supremo corre o risco de deixar de ser visto como guardião da Constituição para
se tornar instrumento de controle do discurso público – algo incompatível com
os fundamentos de uma democracia liberal que, pelo jeito, ainda tem um longo
caminho a percorrer até o pleno grau de amadurecimento
O PCC e suas ‘filiais’ em 28 países
O Estado de S. Paulo
Com mais de 2 mil integrantes espalhados pelo
exterior, facção criminosa expande atuação e presença em prisões mundo afora e
evidencia necessidade de atuação internacional para enfrentá-la
O Primeiro Comando da Capital (PCC) já está
presente em ao menos 28 países, segundo um recente mapeamento do Ministério
Público de São Paulo (MP-SP). São mais de 2 mil integrantes da maior facção
criminosa brasileira espalhados pelo mundo. Esses bandidos atuam dentro e fora
dos presídios em nações das Américas, da Europa e da Ásia. Quase metade deles
está nas ruas, e o restante, detido no sistema carcerário.
A novidade, agora, é que o PCC tem realizado
“batizados”, uma espécie de ritual de iniciação, também no exterior. Segundo o
promotor de Justiça Lincoln Gakiya, esses processos de adesão já foram
registrados em prisões de países como Argentina, Chile, Paraguai e Bolívia. E
em países onde já tem forte atuação, como Portugal, Espanha, Holanda e Estados
Unidos, a organização já estaria “batizando”, inclusive, cidadãos locais, e não
só brasileiros residentes.
O Grupo de Atuação Especial de Combate ao
Crime Organizado (Gaeco), do MP-SP, descobriu ainda que a presença
internacional da organização repete o modelo brasileiro. Isso inclui a
“sintonia”, composta por integrantes do alto escalão; o “progresso”, responsável
pelo tráfico; e o “disciplina”, um árbitro de disputas do mundo do crime e
fiscal do cumprimento das ordens dos líderes. Para o constrangimento do Brasil,
é esse modelo criminoso que está em exportação.
É por meio de ordens emitidas de dentro das
prisões a seus batizados que os líderes do PCC estabelecem uma rígida cadeia de
comando, dominam territórios, diversificam seus negócios ilícitos e levam
terror às ruas. Agora, a facção poderá reproduzir lá fora esse ciclo de
violência. E, quanto mais forte o PCC estiver, seja lá onde for, pior para o
Brasil.
Desvendado por meio do monitoramento de
integrantes do PCC pelo Gaeco, o processo de expansão territorial mostra a
ousadia da facção, que agora finca suas raízes mundo afora – e o Brasil sabe
muito bem como elas crescem. Basta lembrar que esse bando nasceu nos anos 1990
num presídio de Taubaté, no interior de São Paulo, com meia dúzia de
faccionados, e hoje reúne cerca de 40 mil bandidos em todas as regiões do País
e agora também pelo mundo.
Para crescer dessa forma exponencial, o PCC
contou com a ineficácia do Estado brasileiro em combatê-lo desde os primórdios,
quando era um organismo insignificante. Diante da inépcia e não raro omissão do
poder público, o bando encontrou condições ideais para se alastrar pelo sistema
carcerário, de onde seus líderes impõem a fidelidade ao grupo como um elemento
central da sua estruturação de poder, nas celas e nas ruas.
Não é de hoje que o tráfico internacional de
drogas, sobretudo o de cocaína, impulsiona o PCC. O objetivo da facção sempre
foi encontrar rotas e parceiros, como a máfia italiana ‘Ndrangheta, para enviar
a cocaína produzida nos vizinhos Bolívia, Peru e Colômbia aos lucrativos
mercados de países europeus e asiáticos. É por isso que há integrantes da
organização também na França, na Irlanda, na Suíça, na Turquia e até no Japão.
O impressionante faturamento anual de US$ 1
bilhão, ou mais de R$ 5 bilhões, conforme estimado pelo MP-SP, ajuda a entender
a ambição dos criminosos brasileiros na busca por mais territórios. Não só o
tráfico, com a venda final da cocaína, interessa ao PCC, mas também a prática
do crime de lavagem de dinheiro, pelo qual tenta, e consegue, movimentar
quantias vultosas, driblando as autoridades.
Esse poderio geográfico e financeiro do PCC
exige do poder público brasileiro, e agora também do estrangeiro, a capacidade
de se antecipar aos movimentos da facção e o uso de inteligência para combater
o tráfico de drogas e a lavagem de dinheiro. Torna-se cada vez mais necessária
a cooperação internacional para a troca de informações e a atuação conjunta
para asfixiar esse bando.
Os achados sobre o PCC já começaram a ser
compartilhados pelo MP-SP com embaixadas e consulados. Que os países alertados
não repitam os erros cometidos no passado pelo Brasil, e que o Brasil firme
parcerias com esses países para lutar contra o crime transnacional e corrigir o
equívoco de ter subestimado o PCC desde o início.
Empregos a jato no TJ-SP
O Estado de S. Paulo
Deputados paulistas criam cargos no
Judiciário e dão aumento sem saber o impacto financeiro
Em apenas 93 segundos, os deputados estaduais
paulistas aprovaram projetos de lei que inflam o quadro de magistrados e
servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) e concedem
reajustes de salário para servidores do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e da
Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). O pacote com quatro
propostas foi chancelado por aclamação. Por meio desse modelo de votação, o
presidente da sessão pede que os parlamentares favoráveis permaneçam como estão
e, assim, dão o seu aval à iniciativa. E, no caso desses projetos de lei,
apenas três deputados, de um total de 94 da Alesp, manifestaram votos
contrários.
A decisão praticamente unânime da Casa
acarreta na criação de mais de 1,3 mil cargos de escrevente, chefe de seção
judiciário, supervisor, coordenador, diretor e juiz de primeira instância, que,
em que pese a velocidade da aprovação, durarão anos. Desse total, são mais de
300 cargos de coordenadores, com salários acima de R$ 15 mil, e 80 de
magistrados, com remunerações de R$ 37,7 mil ou R$ R$ 39,7 mil, que dependerão
da chamada entrância – intermediária ou final – e serão contemplados, mais cedo
ou mais tarde, por penduricalhos de toda a sorte. Além disso, os servidores do
TCE e da Alesp terão aumento de 5% e 7%, respectivamente.
Esse tipo de votação a jato carrega alguns
significados. O primeiro deles evidencia o consenso em torno dessas propostas
na Alesp, haja vista que, para que os projetos de lei sejam chancelados dessa
forma, é necessário um acordo prévio dos líderes partidários. O que se vê é um
harmonioso alinhamento entre os Poderes Legislativo e Judiciário em iniciativas
que implicam o aumento da máquina pública. Além disso, explicita a força do lobby dos
servidores dessas instituições em defesa de suas pautas corporativistas.
Mas, não menos importante, a aprovação desse
pacote, sem nenhum debate, mostra que os parlamentares paulistas fizeram o
possível para fugir da vergonha de defender em plenário a criação de cargos
públicos e o aumento de salários. Teriam de admitir em público que cederam à
pressão de categorias muito bem articuladas e foram irresponsáveis com o
dinheiro público. Para piorar, as propostas foram aprovadas sem que a maior
parte delas contivesse uma estimativa de seus gastos – a exceção foi o TCE, que
calculou o impacto de sua medida em R$ 20,5 milhões ao ano. O TJ-SP e a Alesp
apenas afirmaram que têm orçamento próprio, o que, segundo esse raciocínio,
lhes confere autonomia para executar essas ações.
Autonomia, no entanto, não é carta-branca quando se trata de dinheiro público. Sem debater as projeções financeiras para o Tribunal de Justiça de São Paulo e a própria Alesp, os deputados deram o aval para a criação de cargos e aumentos de salários sem ter a mínima ideia do peso de suas decisões sobre os cofres públicos, que são irrigados com o dinheiro arrecadado pelos impostos pagos pelos contribuintes paulistas.
Machismo também leva à baixa fecundidade
Correio Braziliense
Em um país estruturalmente machista, decidir
não ser mãe ou ter poucos filhos pode ser também uma questão de sobrevivência
A queda histórica na taxa de fecundidade no
Brasil, detalhada na semana passada pelo IBGE, desperta debates sobre temas
como o envelhecimento acelerado do país, a ruptura com a cobrança social pela
maternidade, a consolidação do planejamento familiar e o aumento do grau de
escolaridade entre as mulheres. Como todo o fenômeno complexo, as
possibilidades de análises são diversas. E a perspectiva considerando a relação
desigual entre gêneros precisa ser uma delas. Em um país estruturalmente
machista, decidir não ser mãe ou ter poucos filhos pode ser também uma questão
de sobrevivência.
Se não, como se manter em um mercado de
trabalho avesso à maternidade? Não faltam estudos indicando uma taxa de
demissão significativa — que deixaria qualquer especialista em alta
rotatividade empresarial sem sono — entre as mulheres que voltam da licença-maternidade.
Famosa pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) intitulada Mulheres perdem
trabalho após terem filhos revela que, depois de 24 meses do afastamento
garantido por lei, metade delas sai do mercado.
Quando não são demitidas, sucumbem a
dificuldades como falta de creches, de flexibilidade no horário de trabalho e
de alguém para compartilhar os cuidados com a prole. Há de se lembrar que o
abandono parental é regra no Brasil. Também o Censo 2022 indica que o número de
mães solo é seis vezes maior que o de homens na mesma condição: de todos os
adultos que moram sozinhos com os filhos no país, 86,4% são mulheres.
A disparidade salarial deixa o cenário ainda
mais desfavorável. Mães solteiras têm a menor renda familiar do país. Dados
mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad), referentes
a 2022, mostram que o rendimento das mães solo no Brasil é 39% menor do que o
dos homens solteiros e com filhos: média de R$ 2.105 e R$ 3.443,
respectivamente. A questão de gênero fica ainda mais evidente quando se
considera que a renda média dos pais casados é praticamente a mesma da dos pais
solos: R$ 3.438.
O cenário tão desfavorável no mundo do
trabalho se repete em outras esferas sociais, abrindo espaço para a prática de
outros abusos. Portanto, não é exagero afirmar que a violência de gênero pode
levar mulheres a escolherem não formar grandes famílias ou terem filhos. Estar
grávida ou puérpera é, inclusive, considerado condição de maior vulnerabilidade
no formulário de avaliação de risco para feminicídio elaborado pelo Conselho
Nacional de Justiça. Isso porque o parceiro costuma ficar mais violento ao perceber
que terá que dividir a mulher com outra pessoa, ainda que seja um filho.
O país que está abaixo do nível de reposição
demográfica — quando a média de filhos necessária para que o tamanho da
população se mantenha (2,1 contra 1,55) — é também o que impede mulheres de
envelhecerem (10 são vítimas de feminicídio por dia, segundo o Atlas da
Violência 2025) e que deixa marcas profundas nas sobreviventes (25% das vítima
de violência doméstica têm até 14 anos, sendo 45,7% dos casos ligados à
violência sexual, por exemplo). Portanto, precisa urgentemente implementar
medidas que revertam ou amenizem todos esses cenários.
Negar a maternidade ou ter poucos filhos é, sem dúvidas, reflexo do imperioso processo de emancipação feminina. Mas seguir um caminho contrário pode ser tão desafiador quanto. Mulheres não devem fazer escolhas, quaisquer que elas sejam, acuadas por um sistema de crenças e práticas que as inferioriza. O Brasil de poucos bebês ainda tem muito a avançar rumo a uma igualdade de gêneros plena.
A política é a arte do diálogo
O Povo (CE)
Brasília segue emitindo sinais preocupantes à
nossa democracia porque resultantes de uma aparente perda de capacidade de
diálogo entre os interlocutores dos principais poderes da República. Os
comandos do Executivo e do Legislativo precisam apresentar um esforço maior
para refazer as pontes de uma conversa que deve fluir com naturalidade para se
evitar que o ambiente institucional saia arranhado.
A tensão cresceu bastante a partir de quando,
na semana passada, o Congresso, em votações sequenciadas que aconteceram na
Câmara e no Senado, derrubou um decreto presidencial que alterava taxas de
cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). O argumento principal,
que talvez ainda deva ser explicado em mais detalhes, é que representaria um
aumento na carga tributária, pesando no dia-a-dia do contribuinte. Portanto,
teria sido, conforme o discurso, um movimento dos parlamentares em favor do cidadão.
A derrubada de um decreto presidencial é algo
raro e claro que desencadeou desdobramentos que já envolvem também o
Judiciário, onde começou a tramitar uma ação que questiona a
constitucionalidade da decisão tomada no âmbito do parlamento.
O que se vê, desde então, é uma troca de
declarações públicas de vozes importantes do Congresso e do Executivo que
indicam pouca disposição para, na busca de uma saída para a crise, abrir-se um
diálogo que possibilite superar um impasse que não interessa ao País que se
estenda além do necessário. Nenhum poder é subserviente ao outro, a
independência entre eles é uma característica que precisa ser preservada, mas
isso pode acontecer sem atropelar a importância de a relação se dar, também, de
maneira harmônica.
A disposição no governo, especialmente na
equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é de lutar
com todas as armas disponíveis para restabelecer a medida que o Congresso
anulou, sob o argumento fundamental de que ela é importante para manter o
equilíbrio das contas públicas. O recurso que já tramita no STF foi apresentado
pelo Psol, mas a Advocacia Geral da União (AGU) também pode ser acionada para
adotar o mesmo caminho, a depender apenas de uma decisão política do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. Este é um dos pontos de tensão institucional dos
últimos dias.
Melhor seria que estivessem todos esses
personagens envolvidos numa discussão a sério, e de fundamento, sobre a saúde
das nossas contas públicas e a melhor maneira de o Estado encontrar o caminho
do equilíbrio em sua estrutura fiscal. A briga que assistimos acontecer,
envolvendo algumas das figuras mais influentes da política nacional, não parece
levar a lugar nenhum e, em muitos aspectos, diz respeito mais a objetivos
políticos do que ao interesse público.
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