domingo, 20 de julho de 2025

Ortega – circunstância e perspectiva - Celso Lafer

O Estado de S. Paulo

Para Ortega, pensar não é apenas ver e analisar as circunstâncias e as perspectivas. É ação intelectual que se abre para o conviver

Ortega y Gasset (1883-1955) foi um pensador vigoroso e intrépido, com notável percepção do mundo em que estamos inseridos.

Recolocou com o poder irradiador da sua palavra o universo ibérico no campo do conhecimento filosófico.

É sua a conhecida formulação inaugural que enunciou em Meditações sobre o Quixote (1914): “Eu sou eu e as minhas circunstâncias, agregando que, se não as salvo, não me salvo”.

Esclarece que a realidade circundante forma a outra metade da minha pessoa, e só por meio dela posso integrar-me e ser plenamente eu mesmo.

Octavio Paz, escrevendo sobre Ortega, realça que a circunstância foi a grande descoberta e o eixo do seu pensamento. Foi sempre um dialogador com os desafios da sua circunstância. Daí, como observa Hélio Jaguaribe, o sentido da relevância e urgência que pontua a sua obra, que neste diálogo tem o dom de desvendar a multiplicidade das circunstâncias e de perceber os seres humanos, não como entidades abstratas ou isoladas, mas como parte das suas interconexões no mundo. Ortega não padecia, como tantos filósofos, da alienação em relação ao mundo. Por isso nos toca.

A presença de Ortega como um grande intelectual público viu-se alimentada pela limpidez de seu estilo, como a de quem assumiu que a “clareza é a cortesia do filósofo”, uma clareza voltada para esclarecer como as ideias não são abstrações. Estão inseridas na vida humana como instrumentos mentais que usamos e vivemos. Nas crenças, como diz Ortega, estamos; as ideias elaboramos para enfrentar o “mar de dúvidas” suscitadas pelas circunstâncias. As ideias necessitam a crítica, “como o pulmão de oxigênio”, e ao oxigênio da crítica, dedicou-se Ortega.

Seus grandes textos não só estimulam, mas iluminam. São exercícios de clareza que são também tentativas de nitidez, como realça Octavio Paz.

Em novembro de 2023, realizou-se, em São Paulo, evento organizado por José Paulo Teixeira e Eugênio Lacerda para resgatar a recepção de sua obra no Brasil. O desafio foi retomado no Rio, em junho deste ano, na Academia Brasileira de Letras, em sessão coordenada pela densa presença de Arno Wehling.

No evento de 2023, homenageei Gilberto de Mello Kujawski, o mais devotado orteguiano em nosso meio. Gilberto, no seu percurso, soube, à maneira de Ortega, coma intrepidez de sua própria visão do mundo enos eu trato coma realidade, o “saber a que aterse” em tempos de crise, e de desintegração, dos alicerces das crenças, para lidar com as coisas e o que delas se pode esperar.

E mO Te made Nosso Tempo, Ortega destaca arelevância do significado da geração como um conceito importante para a História. Cada geração é uma forma compartilhada de sensibilidade que a identifica, independentemente de suas diferenças. Gilberto, Paz, Jaguaribe tiveram, com suas características e caminhos próprios, uma sensibilidade geracional compartilhada sobre a relevância de Ortega. Eu sou da outra geração, mas com afinidades em relação ao legado orteguiano desses três expoentes de uma geração anterior.

Em O Tema de Nosso Tempo, impactou-me a afirmação de Ortega de que a perspectiva organiza a realidade a partir das circunstâncias, e nela se localiza para adquirir mobilidade e permitira operação do logos concreto da razão vital.

Foi com esta inspiração orteguiana que Jaguaribe empenhou-se como grande mestre das relações internacionais e do tema do lugar do Brasil na vida internacional, a analisar o mundo na perspectiva do Brasil e o Brasil na perspectiva do espaço que o mundo oferece para o desenvolvimento do Brasil.

Nesta linha, assinalo que o sentido instigador do pensamento de Ortega inspirou proposta acadêmica de 1977. Nela realçava a importância curricular da pluralidade das perspectivas dos campos de conhecimento, esclarecedores da relevância para o Brasil da institucionalização do estudo das relações internacionais. Ela é muito explícita na concepção do meu livro A Identidade Internacional do Brasil (2001, 2004). Nele me vali da ideia organizadora de perspectiva e do papel do eu e das circunstâncias para articular: 1) que apolítica externa brasileira no correr dos tempos, resulta de um ponto de vista sobre o funcionamento do mundo e sua incidência em nosso país; 2) que a América doSu léo eu de nossa circunstância diplomática e daí a relevância diplomática de nosso contexto regional para a condução da política externa.

É heurístico oque diz Ortega sobre a inter transitividade do sentimento de ódio. Este move aguerra econduzàa nulação de valores. Traz como consequência impedira interconexão entre as coisas e as pessoas. Ajudou-me no trato do discurso de ódio que anima a geografia das paixões na atualidade.

Para Ortega, pensar não é apenas ver e analisar as circunstâncias e as perspectivas. É ação intelectual que se abre para o conviver. A sua prosa mobiliza os verbos incitar, instigar, aguilhoar, vertebrar. A convocatória destes verbos tem estimulado o modo como procuro associar pensamento e ação nos meus caminhos.

 

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