O Estado de S. Paulo
Para Ortega, pensar não é apenas ver e
analisar as circunstâncias e as perspectivas. É ação intelectual que se abre
para o conviver
Ortega y Gasset (1883-1955) foi um pensador
vigoroso e intrépido, com notável percepção do mundo em que estamos inseridos.
Recolocou com o poder irradiador da sua
palavra o universo ibérico no campo do conhecimento filosófico.
É sua a conhecida formulação inaugural que enunciou em Meditações sobre o Quixote (1914): “Eu sou eu e as minhas circunstâncias, agregando que, se não as salvo, não me salvo”.
Esclarece que a realidade circundante forma a
outra metade da minha pessoa, e só por meio dela posso integrar-me e ser
plenamente eu mesmo.
Octavio Paz, escrevendo sobre Ortega, realça
que a circunstância foi a grande descoberta e o eixo do seu pensamento. Foi
sempre um dialogador com os desafios da sua circunstância. Daí, como observa
Hélio Jaguaribe, o sentido da relevância e urgência que pontua a sua obra, que
neste diálogo tem o dom de desvendar a multiplicidade das circunstâncias e de
perceber os seres humanos, não como entidades abstratas ou isoladas, mas como
parte das suas interconexões no mundo. Ortega não padecia, como tantos filósofos,
da alienação em relação ao mundo. Por isso nos toca.
A presença de Ortega como um grande
intelectual público viu-se alimentada pela limpidez de seu estilo, como a de
quem assumiu que a “clareza é a cortesia do filósofo”, uma clareza voltada para
esclarecer como as ideias não são abstrações. Estão inseridas na vida humana
como instrumentos mentais que usamos e vivemos. Nas crenças, como diz Ortega,
estamos; as ideias elaboramos para enfrentar o “mar de dúvidas” suscitadas
pelas circunstâncias. As ideias necessitam a crítica, “como o pulmão de
oxigênio”, e ao oxigênio da crítica, dedicou-se Ortega.
Seus grandes textos não só estimulam, mas
iluminam. São exercícios de clareza que são também tentativas de nitidez, como
realça Octavio Paz.
Em novembro de 2023, realizou-se, em São
Paulo, evento organizado por José Paulo Teixeira e Eugênio Lacerda para
resgatar a recepção de sua obra no Brasil. O desafio foi retomado no Rio, em
junho deste ano, na Academia Brasileira de Letras, em sessão coordenada pela
densa presença de Arno Wehling.
No evento de 2023, homenageei Gilberto de
Mello Kujawski, o mais devotado orteguiano em nosso meio. Gilberto, no seu
percurso, soube, à maneira de Ortega, coma intrepidez de sua própria visão do
mundo enos eu trato coma realidade, o “saber a que aterse” em tempos de crise,
e de desintegração, dos alicerces das crenças, para lidar com as coisas e o que
delas se pode esperar.
E mO Te made Nosso Tempo, Ortega destaca
arelevância do significado da geração como um conceito importante para a
História. Cada geração é uma forma compartilhada de sensibilidade que a
identifica, independentemente de suas diferenças. Gilberto, Paz, Jaguaribe
tiveram, com suas características e caminhos próprios, uma sensibilidade
geracional compartilhada sobre a relevância de Ortega. Eu sou da outra geração,
mas com afinidades em relação ao legado orteguiano desses três expoentes de uma
geração anterior.
Em O Tema de Nosso Tempo, impactou-me a
afirmação de Ortega de que a perspectiva organiza a realidade a partir das
circunstâncias, e nela se localiza para adquirir mobilidade e permitira
operação do logos concreto da razão vital.
Foi com esta inspiração orteguiana que
Jaguaribe empenhou-se como grande mestre das relações internacionais e do tema
do lugar do Brasil na vida internacional, a analisar o mundo na perspectiva do
Brasil e o Brasil na perspectiva do espaço que o mundo oferece para o
desenvolvimento do Brasil.
Nesta linha, assinalo que o sentido
instigador do pensamento de Ortega inspirou proposta acadêmica de 1977. Nela
realçava a importância curricular da pluralidade das perspectivas dos campos de
conhecimento, esclarecedores da relevância para o Brasil da institucionalização
do estudo das relações internacionais. Ela é muito explícita na concepção do
meu livro A Identidade Internacional do Brasil (2001, 2004). Nele me vali da
ideia organizadora de perspectiva e do papel do eu e das circunstâncias para
articular: 1) que apolítica externa brasileira no correr dos tempos, resulta de
um ponto de vista sobre o funcionamento do mundo e sua incidência em nosso
país; 2) que a América doSu léo eu de nossa circunstância diplomática e daí a
relevância diplomática de nosso contexto regional para a condução da política
externa.
É heurístico oque diz Ortega sobre a inter
transitividade do sentimento de ódio. Este move aguerra econduzàa nulação de
valores. Traz como consequência impedira interconexão entre as coisas e as
pessoas. Ajudou-me no trato do discurso de ódio que anima a geografia das
paixões na atualidade.
Para Ortega, pensar não é apenas ver e
analisar as circunstâncias e as perspectivas. É ação intelectual que se abre
para o conviver. A sua prosa mobiliza os verbos incitar, instigar, aguilhoar,
vertebrar. A convocatória destes verbos tem estimulado o modo como procuro
associar pensamento e ação nos meus caminhos.
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