CartaCapital
A retaliação tarifária de Trump mostra que o
bloco ganhou força e representa uma ameaça concreta à hegemonia do dólar
Em meio ao avanço da extrema-direita e aos ataques do governo de Donald Trump ao multilateralismo, o mundo atual é bem diferente do que era há 19 anos, quando foi criado o BRIC, inicialmente formado por Brasil, Rússia, Índia e China. Naquela ocasião, sobretudo após a adesão da África do Sul em 2011, que deu ao grupo o seu nome atual, a iniciativa foi apontada por economistas e políticos das mais diversas tendências e partes do globo como uma saudável tentativa de construção de parcerias multilaterais para o desenvolvimento dos países emergentes. Uma construção que não passasse pelos crivos e exigências das chamadas instituições de Bretton Woods, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
O que era apenas uma ideia ganhou
musculatura: o BRICS cresceu e hoje conta com 11 integrantes. Em 2014, o grupo
criou o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês), que desde
então financiou 122 projetos nos países associados, parte deles em moeda local,
em um investimento equivalente a 40 bilhões de dólares. Todo esse crescimento
foi celebrado durante os encontros do NDB e do BRICS realizados no Rio de
Janeiro entre 4 e 7 de julho. Mas, em um mundo cada vez mais polarizado, o
BRICS, suas metas e projetos agora são encarados como uma ameaça pela parte
mais rica e poderosa do establishment global.
Quem passou recibo foi o próprio Trump. No
mesmo dia em que foi divulgada a declaração final do encontro de chefes de
Estado do BRICS que, logo nas primeiras linhas, manifesta contrariedade com “a
proliferação de ações restritivas por meio do aumento indiscriminado e
unilateral de tarifas comerciais”, o presidente dos EUA anunciou que pretende
impor uma taxa extra de 10% aos países que “integram ou venham a integrar o
bloco”, ou que “se alinhem de alguma forma às políticas antiamericanas do
BRICS”. Segundo ele, o objetivo do “inimigo” é substituir o dólar como moeda de
ancoragem global e com isso enfraquecer os EUA. O Brasil foi o primeiro a
sofrer retaliação, com a imposição, na quarta-feira 9, de uma taxa de 50% a
todos os produtos importados do país.
O presidente dos EUA taxou o Brasil em 50% e
prometeu uma tarifa extra de 10% aos países que se associarem ao grupo
Trump comparou a defesa do dólar a uma guerra
mundial. “Tudo bem se quiserem jogar esse jogo, eu também sei jogar. Se
tentarem, pagarão um preço muito alto”, anunciou. A ameaça acabou dando mais
ânimo às horas finais do encontro do BRICS, sendo publicamente rechaçada por
Lula e outros chefes de Estado, como Narendra Modi (Índia) e Cyril Ramaphosa
(África do Sul), e também por notas divulgadas pelos governos da China e da
Rússia – Xi Jinping e Vladimir Putin não estiveram no Rio. O presidente
brasileiro frisou que o bloco é formado por países soberanos. “Não aceitamos
intromissão de quem quer que seja em nossas decisões e defendemos o
multilateralismo.”
“A mera existência do BRICS já traz uma nova
situação de multilateralismo. O grupo amplia a capacidade de articulação
política do mundo”, avalia o diplomata aposentado Milton Rondó. Já para Laerte
Apolinário Júnior, professor de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, o
BRICS tem relevância geopolítica e simbólica, mas “está longe de representar”
um novo multilateralismo. “O que se observa é uma tentativa de recuperar
debates que foram capturados por espaços restritos e tecnocráticos, como a OCDE
ou o G7, em temas como comércio, tributação internacional e regulação de
dados”, diz. No entanto, acrescenta Apolinário, a falta de um modelo realmente
inovador não impede que o grupo “possa contribuir para avançar os interesses
dos países em desenvolvimento nessas diferentes temáticas”.
Professor de Relações Internacionais da
UFABC, Gilberto Maringoni avalia que o BRICS vem tendo papel crescente no
contexto global, graças ao peso de seus componentes, mas ainda não é um bloco
econômico ou político capaz de realizar ações conjuntas que alterem a ordem
global. “Inexiste sede ou estatuto, e suas iniciativas se concretizam em
reuniões de cúpula anuais em distintos continentes. Isso não impede a
construção de estruturas institucionais como o NBD e o Arranjo Contingente de
Reservas (ACR). O BRICS pode ser entendido como expressão do Sul Global, que se
afirma também pelo contraste, e é possível reconhecer sua importância pela
oposição que suscita em Washington.”
Atualmente, além dos cinco primeiros
fundadores, o BRICS tem como integrantes Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes
Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã. O contraste entre os países não impede a
unidade, o que representa força, mas também limita as margens de ação política
do grupo. Essa fragilidade ficou evidente em diversos pontos da declaração
final do encontro, como, por exemplo, ao tocar apenas de passagem na guerra da
Ucrânia (por pressão da Rússia) ou ao falar do massacre em Gaza sem citar a
proposta de dois Estados (porque o Irã não reconhece Israel). O documento
também buscou o equilibrismo em questões como o aumento do Conselho de
Segurança da ONU, reivindicado por Brasil, Índia e África do Sul, mas com
resistências de outros integrantes. Ou no trecho em que fala de direitos de
gênero, mesmo sendo assinado por países como Arábia Saudita, Emirados Árabes e
Irã, onde a opressão às mulheres é flagrante.
No campo econômico, também existem nuances e
objetivos distintos. “Rússia e China buscam focar em temas que questionam a
atual hegemonia global dos EUA, enquanto Brasil, Índia e África do Sul oscilam
entre ampliar suas iniciativas internacionais e não criar arestas com os EUA”,
observa Maringoni. Os textos finais emanados dos últimos dois encontros do
BRICS – em Kazan e no Rio – mostram claramente essa diferença, acrescenta o
professor da UFABC. “No primeiro, há ênfase na demanda pelo uso de moedas
locais em transações internacionais e a construção de mecanismos de compensação
financeira alternativos ao sistema dólar. Agora, a carga maior fixou-se nas
questões climáticas e de transição energética.”
O uso progressivo de moedas locais em
projetos nas áreas de infraestrutura, mudanças climáticas e transformação
digital e a criação de novos modelos de financiamento ao desenvolvimento
sustentável foram as principais discussões travadas no 10º encontro do NDB. O
caráter de contraponto à ordem econômica vigente foi ressaltado pela presidente
do banco, a brasileira Dilma Rousseff: “O NDB foi construído sobre a premissa
de que os países do Sul Global têm o direito e a capacidade de definir seus
próprios caminhos de desenvolvimento e que a infraestrutura, a modernização
industrial e tecnológica e a sustentabilidade deveriam ser financiadas não por
meio da imposição de modelos uniformes, mas impulsionando a justiça social, com
soberania e crescimento sustentável.”
Apolinário afirma que o NDB cumpre importante
papel ao propor alternativas de financiamento para o Sul Global, mas pondera
que sua atuação ainda é limitada e financeiramente modesta. “Para cumprir o
papel transformador que se espera, precisaria romper com a lógica financeira
dominante. Para isso, é necessário ampliar o uso de moedas locais, assumir mais
riscos e priorizar projetos com impacto social e ambiental”, ensina.
O “banco do BRICS” pode ousar mais no uso de
moedas locais, avalia Apolinário Jr.
Rondó afirma enxergar o NDB como semelhante
ao BNDES no financiamento de projetos de infraestrutura. Segundo ele, “o FMI e
o Banco Mundial estão contaminados pelo neocolonialismo liderado pelos EUA e
seguido pela Europa. Essas instituições sobrevivem mais como a pálida ideia de
um passado. Não é presente e claramente não é futuro”.
O economista Paulo Nogueira Batista Júnor,
ex-vice-presidente do NDB, diz que o banco é a principal criação prática do
BRICS. “Agora, é importante fazer o que se falou, criar novos mecanismos de
financiamento para o Sul Global e implementar melhor os mecanismos já criados”,
afirma. “O NDB ainda não atingiu a condição de banco global e precisa melhorar
vários aspectos, inclusive a transparência em relação aos seus projetos. Quem
não está lá não consegue saber exatamente como estão os projetos que o banco
aprova na diretoria e implementa depois.”
Sobre a heterogeneidade dos países que
aderiram ao banco, com a recente inclusão de Argélia, Bangladesh, Egito e
Emirados Árabes, além das entradas de Colômbia e Uzbequistão, aprovadas no Rio,
o economista afirma que o NDB não impõe condicionalidades nem foi concebido
para se imiscuir nos arranjos institucionais dos países. “É um banco que
respeita mais as políticas das instituições dos países que venham a pedir
empréstimos a ele.”
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital,
em 16 de julho de 2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.