O Globo
Partido tenta fazer parecer que sua
inabilidade de navegar o sistema político é, na verdade, luta de classes
Desde a semana passada a esquerda se engajou numa campanha contra o Congresso e os BBBs — Bilionários, Bancos e Bets. Nesta semana, a campanha virou “oficial”. Na quarta-feira, o perfil do governo federal publicou uma charge com um cabo de guerra tendo, de um lado, o povo trabalhador com a descrição “avanço” e, no outro lado, madames e engravatados com a inscrição “retrocesso”. Em seu perfil pessoal, Lula publicou uma foto, no meio da multidão, segurando o cartaz “Taxação dos super ricos”. O PT religou sua máquina de prestidigitação, tentando fazer parecer que sua inabilidade de navegar o sistema político é, na verdade, luta de classes.
O argumento do governo é que sua agenda de
reformas tributárias, que inclui a reforma do Imposto de Renda (IR) — com
isenção para quem ganha até R$ 5 mil mensais e tributação obrigatória para quem
ganha acima de R$ 600 mil anuais — e o aumento do IOF, encontrou resistência no
Congresso porque os mais ricos se recusam a pagar sua parte dos impostos. Isso,
prossegue o argumento, obriga o governo a passar a conta aos mais pobres, com
cortes no orçamento de saúde e educação. A intransigência do Congresso, reflexo
de compromisso com a classe empresarial, conclui o raciocínio, obriga o governo
a mobilizar trabalhadores e a classe média a promover enfrentamento “nas ruas e
nas redes”.
O diagnóstico é completamente equivocado. É
falsa tanto a suposição de que o impacto distributivo das medidas é
significativo como a de que o governo está realmente empenhado em combater a
desigualdade. É falsa também a alegação de que o foco da resistência às medidas
se deve ao fato de atingirem o “andar de cima”.
Quando a reforma do IR foi proposta, o foco
da resistência não foi a tributação obrigatória para quem ganha acima de R$ 600
mil por ano. Foi a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil por
mês, como o
debate público da época claramente mostra. Os entes subnacionais, estados,
mas sobretudo
prefeituras, exigiram um sistema claro de compensação para a perda de
recursos. Quase um quarto da arrecadação líquida do IR é repassado a elas pelo
Fundo de Participação dos Municípios. Além disso, ficam com o IR retido na
fonte sobre salários de servidores e pagamentos a fornecedores. Como mais de
70% dos servidores municipais ganham até R$ 5 mil, a nova faixa de isenção
praticamente zeraria essa retenção.
Não foi diferente com o aumento do IOF. Na
sociedade, o principal argumento foi que oneraria o crédito, aumentando o custo
de capital num momento de juros elevados. Mas mesmo isso foi o que menos se
discutiu no Parlamento. Na votação acelerada nas duas Casas, o recado era
contra o atropelo do governo, que não negociava com o Parlamento e atrasava o
cronograma de pagamento das emendas. Ninguém ali supôs que julgava o mérito da
questão. Até PDT e PSB votaram
majoritariamente contra.
É pouco crível supor que medidas tão
moderadas na progressividade tributária provocariam reação feroz das elites
econômicas contra o governo. Mas o governo prefere se enganar — e enganar a
sociedade — a reconhecer que está perdido e não sabe administrar o Congresso
com a nova configuração de forças trazida pelas emendas impositivas.
Naturalmente, o fato de enfrentar
dificuldades políticas para aprovar suas medidas não significa que, sem essa
provocação do Executivo, o Congresso faria qualquer outra coisa para corrigir
as iniquidades tributárias. Aquilo é um antro de interesses paroquiais, movido
a emendas e fundo partidário — com as conhecidas exceções.
Ao tratar suas dificuldades como fruto de
resistência de classe, e não da sua inabilidade política, o governo quer se
apresentar como paladino da justiça social, apostando na cegueira ideológica da
militância. Olhando sobriamente para o Brasil, quem poderia aceitar essa
imagem? Com o intervalo do período Temer-Bolsonaro, o país é governado pelo PT
há 16 anos e segue com uma das piores desigualdades da América Latina,
comparável à de um país africano.
Se pegarmos a redução da desigualdade no
período que vai de Lula 1 a Dilma 2 e a projetarmos no futuro, ainda faltariam
15 anos para atingir a desigualdade da Argentina —
isso se os ganhos dos anos iniciais se mantiverem no mesmo ritmo no futuro e
não houver qualquer tipo de sobressalto.
O PT espera que o Brasil vote num discurso
militante de combate à desigualdade por 32 anos — quase duas gerações! — para
entregar, no melhor cenário, a desigualdade da Argentina? E se mesmo isso der
errado, a culpa é da resistência das elites e não da inépcia do partido?
Esse é o discurso que o governo quer vender.
Compra quem quiser.
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