O Globo
Americanos começam a sentir o peso destrutivo
do Estado policial que elegeram e prefeririam não ver
‘O tempo envelhece depressa’, ensinou o escritor italiano Antonio Tabucchi em belíssimo livro de contos publicado há anos. Quase já não conseguimos mais habitá-lo (o tempo), tamanho é nosso desassossego contemporâneo. Estamos cada vez mais aprisionados ao turbilhão do momento, à sensação de aceleração e fragilidade do mundo. Esquecemos quanto a História é apenas um rosário de momentos que o futuro se encarrega de trançar. A política, de modo geral, e os políticos medíocres, em particular, gostam pouco de elucubrações sobre o tempo — e ainda menos de ensinamentos da História. Vão atropelando para não ser atropelados por suas próprias fraquezas. Tome-se como exemplo o 45º presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Cinquenta anos atrás, o 37º ocupante da Casa
Branca fora obrigado a renunciar, enrolado até o pescoço no escândalo
Watergate. Para Richard Nixon, a hecatombe teve amargor pessoal. Para o resto
do país, o trauma foi nacional. Ao longo dos anos seguintes, o Congresso
americano empenhou-se em promulgar uma série de reformas visando a proteger as
instituições democráticas e a restaurar a confiança dos americanos no governo.
Foram reformas que fortaleceram a transparência e a ética públicas, aprimoraram
a supervisão do Congresso, impuseram limites significativos aos poderes
presidenciais. Resistiram bastante bem ao teste do tempo, até a irrupção de
Trump na cena mundial. No primeiro mandato, ele escapou de dois pedidos de
impeachment encaminhados pela Câmara, fatalidade histórica que poderia ter
evitado seu segundo mandato. Saiu da Casa Branca literalmente pela porta dos
fundos em 2020, depois de derrotado pelo democrata Joe Biden, mas renasceu
legitimado nas urnas em 2024.
É desde sua segunda posse, em janeiro, que
Trump passou a agir como “imperador do mundo”, expressão cunhada pelo
presidente Lula em
entrevista a Christiane Amanpour, da CNN Internacional.
Um presidente desprovido de respeito às leis, que age como se regras fossem
para tolos e normas, para perdedores. Talvez até acredite ser mesmo imperador.
Já no seu primeiríssimo livro, intitulado “A arte da negociação”, de 1987, ele
exaltava a arte da bravata.
— Jogo com as fantasias das pessoas —
escreveu pelas mãos do ghostwriter Tony Schwartz. — As pessoas nem sempre sabem
pensar grande por conta própria, mas ficam hiperfascinadas com quem é capaz
disso. Querem acreditar que algo é a maior coisa do mundo, a mais espetacular e
mais grandiosa. Chamo a isso de “hipérbole verdadeira”. Outros chamariam esse
jogo de fraude moral.
Trump acabou revelando, na semana passada, a
dimensão doentia de sua própria fantasia. Depois de anunciar a taxação dos
produtos brasileiros vendidos nos Estados Unidos em 50%, deu uma explicação
lapidar para os tarifaços que anda espalhando mundo afora:
— Faço porque eu posso.
Como gosta de dizer o brasileiro Frei Betto,
pessoas não mudam, apenas se revelam.
Fazer, como sabemos, exige visão de longo
prazo, disciplina, planejamento, compreensão de complexidades — tudo que Donald
Trump desdenha por carecer desses atributos. Segundo citação frequentemente
atribuída a Albert Einstein (por soar inteligente), nenhum problema pode ser
resolvido a partir do mesmo grau de consciência que o criou. Pois bem, passados
seis meses de governo Trump 2, nada do que ele anunciou de forma espetaculosa
tem dado os resultados prometidos. A revolução tarifária destinada a “tornar a América
grande novamente” corre o risco de fazer o resto do mundo conhecer-se
melhor. Ucrânia e Gaza continuam
com a vida civil em carne viva, com o russo Vladimir
Putin e o israelense Benjamin
Netanyahu dando um baile nas fantasias do americano de acabar com
guerras em 24 horas. Ainda na semana passada, Netanyahu avançou mais um degrau
no seu ímpeto expansionista, arrogando-se o direito de bombardear também
a Síria.
Putin, enquanto isso, multiplica a derrama de bombas sobre Kiev ganhando
tempo e terreno.
Também a política anti-imigração de Trump —
extremada, perversa, aplicada com crueldade estratégica e indiferença tática —
tem obtido resultados tortos. A maré humana que conseguia atravessar a
fronteira pelo México praticamente
secou, tornando concreta sua principal promessa de campanha. Ao mesmo tempo, o
número de americanos — inclusive republicanos — que se declaram contrários à
deportação em massa de imigrantes capturados nas ruas, no trabalho, em igrejas,
fábricas, plantações, escolas ou hospitais já beira os 60%. Começam a sentir o
peso destrutivo do Estado policial que elegeram e prefeririam não ver.
Faltam três anos e meio para Trump terminar o
mandato. Esse tempo certamente não envelhecerá depressa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.