Correio Braziliense
O gesto diplomático dos EUA
pode ser lido como tentativa de pressionar o Supremo e isolar Alexandre de
Moraes, cujo desgaste não se restringe aos aliados de Bolsonaro
A nota divulgada pela Embaixada dos Estados
Unidos no Brasil, ontem, alertando aliados do ministro Alexandre de Moraes no
Judiciário e em “outras esferas” para que não apoiem ou facilitem sua conduta,
reacende memórias da história latino-americana que nos remetem aos golpes de
Estado que destituíram os presidentes João Goulart, no Brasil, em 1964, e
Salvador Allende, no Chile, em 1973. Ambos eram líderes de esquerda, como os
atuais presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Gabriel Boric.
Embora revestida de linguagem diplomática, a mensagem no X (antigo Twitter) chama Moraes de “arquiteto da censura e perseguição contra Bolsonaro e seus apoiadores”. O texto ainda ameaçou outras autoridades: seus flagrantes violações de direitos humanos resultaram em sanções pela Lei Magnitsky, determinadas pelo presidente Donald Trump. Os aliados do ministro no Judiciário e em outras esferas estão avisados para não apoiar nem facilitar a conduta de Moraes. “Estamos monitorando a situação de perto”, escreveu a Embaixada.
Trata-se de uma evidente tentativa de
intimidação aos demais ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal
(STF), Cristiano Zanin (presidente), Cármen Lúcia, Flávio Dino e Luiz Fux, além
do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso. O Itamaraty decidiu convocar o
encarregado de negócios da Embaixada, Gabriel Escobar, após a divulgação da
nota. A representação norte-americana no Brasil está sem titular desde janeiro,
quando Elizabeth Bagley retornou aos EUA.
A Embaixada é chefiada por Escobar, que antes
atuou no Paraguai, na Bolívia e na Sérvia. Devido ao seu status diplomático,
pelo protocolo, somente deveria ser recebido pelo segundo escalão do Itamaraty,
mas diante da crise comercial e diplomática provocada pelo tarifaço de 50%
sobre as exportações, passou a ser o principal interlocutor de autoridades e
empresários brasileiros nas negociações sobre as exportações brasileiras.
Ontem, o vice-presidente e ministro da
Indústria, Geraldo Alckmin, afirmou que o Brasil está disposto a dialogar com
os EUA sobre temas que envolvem regulações não tarifárias, como a atuação de
big techs, data centers e minerais estratégicos. Depois da divulgação da nota,
mesmo assim, Alckmin recebeu o encarregado de negócios. “Ele veio conversar.
Nós dissemos claramente nossos argumentos, dizendo: ‘Olha, a questão tarifária,
de cada 10 dos maiores produtos exportados, oito têm alíquota zero. A tarifa
média é 2,7%'”, explicou.
O mesmo argumento
A nota da Embaixada norte-americana faz
referência a uma outra postagem, do subsecretário de Diplomacia Pública dos
Estados Unidos, Darren Beattie, que diz exatamente a mesma coisa. A
representação já havia se manifestado em julho deste ano com uma nota que
endossava a opinião de Trump sobre Bolsonaro, dizendo que o ex-presidente está
sendo vítima de “perseguição política”.
Voltando ao passado intervencionista dos EUA,
que fomentaram 70 golpes de Estado pelo mundo, alguns abertamente, como os da
América Latina nas décadas de 1960 e 1970, o envolvimento direto da Casa Branca
em nome do combate ao comunismo e da “defesa da democracia” é a narrativa
predominante na mobilização bolsonarista contra Moraes e o presidente Luiz
Inácio Lula da Silva. A nota da Embaixada coincide com o protocolo de um pedido
de impeachment de Moraes no Senado, após a oposição tomar de assalto as mesas
do Senado e da Câmara.
O caldeirão da crise mistura um ex-presidente
em prisão domiciliar por violar medidas cautelares, manifestações de rua
inflamadas, ataques às instituições e, agora, um gesto diplomático dos EUA que
pode ser lido como tentativa de pressionar o Supremo e isolar Moraes, cujo
desgaste não se restringe aos aliados de Bolsonaro com o pedido de impedimento.
O decano do STF, Gilmar Mendes, que saiu em defesa de Moraes, advertiu que o
momento é grave: “O Brasil teria se tornado um pântano institucional não fosse
a ação de Moraes”. Sua manifestação refuta os rumores de isolamento do ministro
e reforça que o Supremo não aceitará intimidações, nem internas, nem externas.
Ainda assim, a lembrança de 1964 torna-se
inevitável. Naquela época, a instabilidade da política interna, alimentada por
disputas eleitorais e pela radicalização ideológica, abriu brechas para a
ingerência norte-americana. Navios da Marinha dos EUA à espreita da costa
brasileira, em plena crise política, eram o sinal mais visível de que
Washington estava pronto para agir. A retórica da Guerra Fria servia como
justificativa para tudo.
Hoje, a retórica mudou, mas os métodos são
preocupantes. Após ter o visto cancelado e ser atingido por sanções da Casa Branca,
Moraes tornou-se o alvo preferencial e exemplar do poder de retaliação de
Trump, que pretende resgatar a elegibilidade de Bolsonaro.
A defesa do ex-presidente apresentou recurso tentando reverter sua prisão domiciliar e, caso não consiga, levará a decisão ao colegiado da Primeira Turma do STF. Há dúvidas jurídicas legítimas a serem esclarecidas, mas o tom do embate político contamina o processo. O risco, como em 1964, é que um caso de natureza judicial acabe alcançando as Forças Armadas, sendo transformado em pretexto para novas aventuras autoritárias.
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