Valor Econômico
É o futuro que nos aflige
Notório autor de frases de efeito, o
jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues dizia que “não há nada mais antigo do
que o passado recente”. Relembrado por ocasião dos 100 anos do jornal “O
Globo”, do qual foi colunista, o autor de “Vestido de Noiva” afirmou em uma
crônica de 1968 que “a toda hora e em toda parte, a vida injeta o passado no
presente”.
Atualmente, brasileiros assistem, perplexos,
à vida injetando o passado de ações intervencionistas dos Estados Unidos no
Brasil. Em 201 anos de relações diplomáticas, prevaleceram a amizade e alianças
políticas e comerciais entre os dois países, com respeito mútuo pela soberania,
mas com incidentes pontuais.
Lembre-se que em 1952, quando o presidente Harry Truman pressionou Getúlio Vargas a enviar soldados para lutarem ao lado dos americanos na Guerra da Coreia, o mandatário brasileiro recusou-se. Para não se indispor com o aliado, Getúlio propôs um acordo militar, envolvendo a exploração em solo nacional de matérias estratégicos, como urânio e terras raras. Tal qual se deu no passado, atualmente, o interesse americano pelas mesmas terras raras, abundantes no Brasil, pode ajudar a reconstruir a relação entre os dois países.
No pós-Segunda Guerra, Getúlio costurou com o
presidente Franklin Roosevelt, em 1945, a retirada das bases americanas do
Brasil. Essas instalações deram apoio logístico à aviação americana, e
reforçaram a segurança da região, num cenário em que submarinos alemães haviam
abatido embarcações brasileiras.
No início de 1946, o então ministro das
Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, foi cobrado pela permanência de
algumas dessas bases no país. Ele ponderou que o processo de desocupação estava
em curso, e exaltou a soberania nacional: “O Brasil cultiva o espírito de
cooperação panamericana no mais alto grau, mas dentro de seu território só pode
flutuar uma bandeira - a nossa”.
Em 1952, coube ao mesmo João Neves - desta
vez, como chanceler de Getúlio - costurar com sua contraparte americana o
acordo de cooperação militar com os Estados Unidos. A negativa de Getúlio ao
envio das tropas para a Coreia era ousada pela sensibilidade da conjuntura
internacional, e, igualmente, pela dependência econômica do Brasil do vizinho
americano. Em plena guerra fria, o conflito na Coreia tinha um viés ideológico,
porque o apoio dos EUA à Coreia do Sul simbolizava o combate à expansão do
comunismo, já que do lado oposto lutavam Coreia do Norte e União Soviética.
Mais de 70 anos depois, o passado invade o
presente nas relações entre EUA e Brasil, quando o presidente Donald Trump
adiciona o viés ideológico às relações comerciais entre ambos. Ele o faz ao condicionar
o fim do “tarifaço” à intervenção do governo brasileiro no Supremo Tribunal
Federal (STF), na ação penal sobre a tentativa de golpe, que tem como um dos
réus o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Nos anos 50, os termos do acordo militar do
governo Getúlio foram considerados excessivamente favoráveis aos americanos. Os
minerais estratégicos que eram objeto do acordo, como as areias monazíticas,
ricas em urânio e terras raras, não poderiam ser negociados pelo Brasil com
outro país, sem o consentimento prévio de Washington. Em paralelo, a
contrapartida americana foi considerada genérica, ao prever assistência ao
Brasil em equipamentos, materiais ou serviços. Em 1977, o presidente Ernesto
Geisel encerrou o acordo, gerando novo foco de tensão entre os dois países.
Em outro capítulo, somente muitos anos depois
veio à luz o envolvimento dos Estados Unidos no golpe militar de 1964. O
historiador Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), revelou que se tropas legalistas resistissem, os EUA posicionariam um
porta-aviões, petroleiros e contratorpedeiros na costa brasileira para reforçar
o contingente empregado na deposição de João Goulart.
Nessa quinta-feira (14), Donald Trump voltou
a atacar o Brasil, que chamou de "péssimo parceiro comercial", além
de qualificar o julgamento de Bolsonaro de “execução política”. As premissas
são falsas, porque os EUA são superavitários nos negócios com os brasileiros,
enquanto o ex-presidente teve direito ao devido processo legal, com ampla defesa
e contraditório.
Lula rebateu Trump, alertando que o Brasil
“não vai ficar de joelhos”. A tensão está literalmente no ar, num momento em
que Trump despachou tropas das forças aéreas e navais americanas para o sul do
Mar do Caribe. No passado, na Segunda Guerra, as bases americanas no Brasil
foram devidamente acordadas entre Getúlio e Roosevelt.
A dependência do Brasil das exportações para
os EUA já foi maior. Em 1989, representava 23,94%, segundo dados do Ministério
do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic), e esse volume caiu para 12%,
no acumulado até junho. Mas Trump já mostrou que a briga é política, e não
comercial.
Um diplomata lamentou que seja a “maior crise
em 201 anos de relação”, e disse à coluna que só muito trabalho de bastidor
para revertê-la, e cientes de que a pressão vai continuar até o julgamento de
Bolsonaro, com a perspectiva de se agravar. A vida injeta o passado no
presente, mas é o futuro que nos aflige.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.