“A fraqueza clássica, quase congênita, da consciência nacional dos países
subdesenvolvidos não é somente a consequência da mutilação do homem colonizado
pelo regime colonial. É também o resultado da preguiça da burguesia nacional,
de sua indigência, da formação profundamente cosmopolita de seu espírito.”
— Frantz Fanon, Os condenados da terra.
O colonialismo não se manifesta apenas pela sua aparência mais ostensiva ou
grosseira: o poder militar e econômico, uma só unidade, alimentada por polos
imbricados, canais comunicantes. Os marines, as invasões, as conquistas de
territórios, o arsenal atômico, os bloqueios e os tarifaços fazem o
pano de fundo da guerra ideológica — a essencial, a perdurante, glamorosa e
insidiosa como Hollywood, mas igualmente letal: ela se embrenha nos corações e
nas mentes, domina a alma de suas vítimas.
A preeminência estadunidense, como a britânica que nos malsinou no Império, não
é, porém, um determinismo. O mandato dos impérios está subordinado ao que
usualmente chamamos de “ciclos históricos”, que conhecem tanto apogeu quanto
declínio, e entre um tempo e outro, as guerras que montam e desmontam reinos e
fantasias, como o sonho do III Reich.
O perdurante é a dominação ideológica. Vão-se os exércitos de ocupação,
cortam-se os laços da dependência econômica, mas permanece a preeminência
ideológica — de todas as formas de dominação, a mais daninha e a mais difícil
de erradicar, porque reinante na visão de mundo do colonizado.
O “liberto”, embora politicamente livre, permanece colonizado quando não se
desvincula do papel de transmissor do pensamento da matriz. Sua cultura é
subsumida pela que vem de fora, dominante simplesmente porque vem do centro
hegemônico: como importa coisas, bens materiais, bijuterias, bugigangas e
capital, o colonizado importa ideias, assimila conceitos, instituições e,
finalmente, visão de mundo; aprende a reconhecer a superioridade do “outro” —
mais forte, mais belo, mais inteligente, rico e poderoso graças aos seus
próprios méritos, prenda de uma raça superior, por isso mesmo destinada ao
mando.
É, em síntese, a interiorização pelo dominado dos valores e crenças da cultura
dominante, naturalizando a dominação; o colonizado é agente de reprodução da
ordem social que o oprime.
Festejados intérpretes de nossa história, por sua vez reprodutores da
mistificação das teorias da eugenia que dominavam a Europa no século XIX,
procuraram explicar o incômodo atraso do desenvolvimento brasileiro, vis-à-vis aos
EUA, para assim naturalizá-lo, como inarredável decorrência de nossa “pobreza”
racial ou étnica. Pontificaram nessa linha, entre muitos, médicos,
antropólogos, filósofos e historiadores como Silvio Romero, Nina Rodrigues e
Oliveira Vianna: no Norte, uma colonização anglo-saxônica, assim “superiora”,
protestantes voltados ao trabalho e ao lucro, que chegavam com suas famílias e
liam a Bíblia antes de conduzir seus escravos no eito. Aqui, colonização levada
a cabo por portugueses mestiços e católicos, negros deprimidos e índios
indolentes, mal saídos da pedra lascada. Besteirada em que se destacou Vianna
Moog (Bandeirantes e pioneiros).
Os “intérpretes”, eles por seu turno reprodutores da ideologia do colonialismo,
se esquivaram de registrar as implicações da presença do braço negro
escravizado no sucesso da colonização dos EUA. O registro relativo aos
indígenas dá conta de seu massacre, necessário para a grande obra
civilizatória.
Assim opera a hegemonia cultural da classe dominante.
Em 1950, a perda da Copa do Mundo de futebol, que o Brasil fora determinado a
ganhar, explicou-se pela presença dominante e majoritária de negros na final
contra o Uruguai, uma ingrata ex-província do Império brasileiro. Nelson
Rodrigues, sensor da alma brasileira, reagiu ao bestialógico construindo o
conceito de “complexo de vira-lata”, com o qual definiu o sentimento de
inferiorização naturalizado entre nós. Desprovidos de uma visão própria de si e
do mundo, seríamos um povo à míngua de si mesmo; despojados de orgulho
nacional, nos pejamos na idolatria do mais forte. Dela padecemos, e ela é
visível tanto na ação de políticos e partidos de direita — no Brasil,
exemplarmente entreguistas — quanto na apatia de segmentos significativos do
que costumeiramente chamamos de sociedade civil.
O sentimento registrado pelo dramaturgo é a ideologia da classe dominante
brasileira, e pervade hoje nossa sociedade.
Vicente Rao, servindo ao governo títere de Café Filho (agosto de 1954 a
novembro de 1955), declara, sob os aplausos da grande imprensa: “O Brasil está
fadado a ser, por tempo indefinido, um satélite dos EUA”. Nada distinto do que
ouviríamos do general Juraci Magalhães, nosso embaixador em Washington (junho
de 1964): “O que é bom para os EUA é bom para o Brasil”. Mais recentemente
(2001), no discurso de transmissão do cargo de Ministro das Relações Exteriores
ao professor e empresário Celso Lafer — aquele chanceler notabilizado por tirar
os sapatos e as meias para ingressar na “América” —, o diplomata de carreira
Luiz Felipe Lampreia proclamava de peito entufado: “O Brasil não pode querer
ser mais do que é”.
Essas reflexões me ocorreram quando, há poucos dias, assistia à inquirição a
que foi submetido o embaixador Celso Amorim no programa Roda Viva, da TV
Cultura. A bancada de jornalistas, representativa do mainstream da
imprensa brasileira, ciente de seus valores, reclamou explicações para o “pavio
curto” da reação brasileira aos ataques dos EUA e à insistência de Lula nas
críticas a Donald Trump, que, vale recordar, o ofendeu — e a nós — endereçando
ao presidente da República carta pública que, ademais de desrespeitar normas
diplomáticas e de mínima civilidade, impôs as medidas conhecidas que agridem
nossa dignidade e ameaçam a economia nacional. Um delegado do sionismo pôs em
xeque o rigor de nossa denúncia do genocídio contra o povo palestino. Muitos
estranharam estar o presidente Lula a encetar diálogo com presidentes de nações
amigas (como China, nosso maior parceiro comercial, e a Índia, a maior
população do mundo), e o Japão, em busca de novos mercados para nossas
exportações, ao invés de se dedicar a salamaleques com o magnata, como cobra o
empresariado — fingindo ignorar que o Secretário do Tesouro dos EUA acabara de
rejeitar a audiência prometida ao ministro Fernando Haddad; sem considerar que
Trump pressiona os países com os quais cedeu negociar a reduzir as compras de
soja e algodão brasileiros, e que o Departamento de Estado acabara de dar a
público comunicado em que acusa nosso país de suprimir a livre expressão ao
impor limites à ação das plataformas digitais. O mesmo texto aponta, como sinal
de ameaça aos direitos humanos no Brasil, as “perseguições” judiciais ao
capitão Bolsonaro e seus asseclas que invadiram as sedes dos três poderes na
frustrada tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2022.
E por aí seguiu a entrevista, conduzida por uma bancada muito menos qualificada
do que Amorim merece, e a audiência brasileira têm direito de exigir. É a
miséria do jornalismo.
Reagindo ao ataque, o governo federal, para salvar os empresários exportadores
(majoritariamente operadores do agronegócio) da chantagem de Trump, abriu-lhes
um crédito subsidiado de R$ 30 bilhões, adiou o pagamento de impostos, abriu as
portas para compras governamentais do excedente de produção não exportado,
pedindo (isto é, sem condicionar) o único compromisso de manterem os empregos
de seus trabalhadores — o que, a experiência ensina, não será cumprido. Mas o
capital não se satisfaz. Diz, por meio de seus porta-vozes, que “Lula precisa
fazer um gesto e buscar um canal com a Casa Branca” (Malu Gaspar, O Globo,
14/08/2025).
Na mesma toada, o governador-presidenciável de São Paulo e seu colega
governador do DF escrevem ao presidente dos EUA. Este, sob o pretexto de
explicar a violência na capital da República, acusa o governo brasileiro “de
não acreditar no diálogo” e pede crédito por haver promovido reunião de
governadores para defender a abertura de diálogo entre Brasil e EUA — diálogo
que não tive a dignidade (pode-se esperar dignidade de Sua Excelência?) de
registrar haver sido rompido por Trump.
O Congresso, ativamente reacionário, dirigido politicamente pela
extrema-direita brasileira, por sua vez guiada pela extrema-direita dos EUA,
governante a partir da Casa Branca, promove a revisão dos principais direitos
conquistados pela Constituinte de 1987-88. Avança um golpe de Estado que, desta
feita, ainda dispensa o concurso da caserna.
E a sociedade silencia; as ruas estão quietas e vazias, o país em relativa
calmaria; não se registram incômodos cívicos. A Academia rumina em paz
celestial: as bolsas de pesquisa (de valores irrisórios) em dia, os
restaurantes universitários funcionando e os salários (amesquinhados) dos
professores pagos. Os sindicatos, esvaziados em sua capacidade de mobilização
por razões consabidas, mal conseguem cuidar dos reajustes salariais de suas
categorias. O movimento vem da extrema-direita arruaceira tomando de assalto o
Congresso e desmoralizando suas mesas diretoras, na tentativa de, açulada por
Trump, impor a impunidade dos golpistas.
A falência de um sentimento coletivo pode ser o fim da aspiração de um povo que
já pretendeu ser algo distinto de uma simples aglomeração populacional.
Talvez seja esta a mais grave crise desde 1964. Trata-se de crise da política,
que arrasta a institucionalidade, mas vai além dela. É preciso reagir já, sem
cairmos na ilusão de que tudo se resume à disputa eleitoral e de que ocupar o
Planalto é o mesmo que deter o poder.
***
Cavalaria inimiga — “Um grupo de oficiais da reserva ligado ao governo de
Jair Bolsonaro tentou escalar a crise política, levando-a para dentro dos
quartéis. Foram neutralizados, sem a necessidade de nenhuma conversa no Forte
de Caxias para lhes impor aquilo que diziam defender quando estavam na ativa:
disciplina. [...] O radicalismo é assim. Parece ombrear com os que
defendem o Brasil, mas, ao fim e ao cabo, são autores de crimes, massacres,
conspurcações e badernas” (Marcelo Godoy, Estadão, 12/08/2025).
Michel Misse foi para Maracangalha — “Eu vou pra Maracangalha / Eu vou,
cantávamos na saída e chegada do nosso bloco de carnaval, ano após ano, aqui do
lado, na Cobal do Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro. Michel, além de
fundador, era o puxador de samba e um mestre de cerimônia. Braços abertos para
cada um que chegava para se somar à vontade de vida. Elegância na voz,
delicadeza nos movimentos, cortesia no trato e alegria com arte, entre a música
e as ciências sociais, como quem costura ritmos e ideias num mesmo tecido
colorido. [...] Michel foi hoje para Maracangalha. Mas não foi só. Sigo aqui em
seu cortejo vivo, com palavra, gesto e voz, com poesia e afeto na resistência
por uma segurança pública democrática, para todos nós. Bata bumbo, chora
cavaquinho, pausa na voz, silêncio na sociologia para o Michel passar. Confetes
e serpentinas para o diplomata das ciências sociais seguir fazendo da nossa
saudade um desejo ainda mais forte pelo amanhã!” (Jacqueline Muniz). À poesia
de Jacqueline junto minha saudade do amigo que partiu.
American Way — Scott Bessent, o Secretário do Tesouro dos EUA que
recentemente cancelou de última hora uma reunião virtual com o ministro Haddad
(pelo que consta, após interferência espúria de um golpista foragido), afirma
que a China é a economia mais desequilibrada da história moderna — isto,
segundo ele, por estar voltada para a busca do emprego e não da lucratividade.
Decerto melhor modelo é o dos EUA, onde cerca de 42 milhões de pessoas (12% da
população) sobrevivem à base de food stamps e 46 milhões não
conseguem sequer acessar serviços de saúde...
* Com a colaboração de Pedro Amaral
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