Valor Econômico
No novo contexto global, o Brasil deixou de ser um ator discreto. Suas posições passaram a ser não apenas notadas, mas questionadas e, por vezes, combatidas
Num jogo de Fla-Flu, há pouco espaço para a neutralidade, e essa foi, durante muitos anos, a política internacional bem-sucedida perseguida pelo Brasil. Ao longo de décadas, a diplomacia brasileira cultivou uma imagem de mediador confiável, defensor de valores e princípios como o multilateralismo, a defesa dos direitos humanos, a segurança internacional, a não intervenção em assuntos internos de outros países e a proteção do meio ambiente. Essa postura buscava equilibrar relações, mantendo portas abertas com diferentes polos de poder.
Entretanto, o mundo mudou de forma radical e
em um curto espaço de tempo. A geopolítica, antes pano de fundo, tornou-se
protagonista na ordem global. O multilateralismo está em retração, o intervencionismo
em temas internos é agora explícito e, mais do que nunca, decisões econômicas,
comerciais e de investimento incorporam fatores políticos e estratégicos, algo
que não se via com tal intensidade em períodos sem guerra mundial.
Paralelamente, a crise climática e ambiental está redesenhando o tabuleiro do
poder, tornando temas como segurança energética, segurança alimentar e
descarbonização prioridades absolutas.
Nesse novo cenário, países com recursos e
capacidade de responder àquelas demandas ocupam posições privilegiadas. E o
Brasil, com sua abundância de capital natural e potencial produtivo, é um
desses casos excepcionais. Afinal, tem a maior reserva de água doce do planeta,
a maior biodiversidade, vastas reservas de minerais críticos, posição de
destaque na produção mundial de alimentos e uma matriz elétrica
majoritariamente renovável, com amplo espaço para expansão. Tem, também, um dos
maiores potenciais globais em mercado de carbono e serviços ecossistêmicos, e a
maior floresta tropical, essencial para a estabilidade climática global. Além
disso, figura como grande produtor de petróleo e como segundo maior produtor de
biocombustíveis, com potencial de ser líder global.
Essas vantagens não se limitam à natureza. O
Brasil é um dos maiores países em território e população, e a maior economia da
América Latina, com influência direta ou indireta sobre os seus vizinhos. Em um
mundo onde geopolítica e clima se entrelaçam, tais atributos tornam-se ativos
estratégicos de primeira ordem e, não por acaso, são crescentemente
valorizados.
O Brasil já é um destino importante de
investimento estrangeiro direto e deverá ampliar esse protagonismo. As vantagens
comparativas do país favorecem a industrialização verde e o powershoring,
ferramentas capazes de financiar e promover um projeto de desenvolvimento
sofisticado e em prazos relativamente curtos. No entanto, os mesmos atributos
que criam oportunidades também despertam preocupações.
No novo contexto global, o Brasil deixou de
ser um ator discreto. Suas posições passaram a ser não apenas notadas, mas,
também, questionadas e, por vezes, combatidas. Isso porque a lógica dominante
hoje é de jogo de soma zero: ganhos de um lado são percebidos como perdas do
outro. Nesse ambiente, qualquer movimento estratégico do Brasil pode ser
interpretado como ameaça ou reposicionamento de poder.
O problema é que o país ainda parece pouco
preparado para essa dinâmica. Falta, no governo, no setor privado e mesmo na
academia, uma infraestrutura robusta de conhecimento estratégico para embasar
decisões e antecipar movimentos no tabuleiro global. Um exemplo recente foi o
choque com tarifas comerciais impostas pelos Estados Unidos. A reação oficial
foi de surpresa, mas, na realidade, esse era um risco previsível. O Brasil,
pelas suas características e potencial, naturalmente se torna alvo de disputas
geopolíticas, independentemente de quem ocupa a Presidência. Mas, claro, ter um
“aliado” no poder no Brasil pode fazer diferença.
Nesse sentido, talvez haja uma superestimação
do peso dos Brics na equação. Embora o bloco seja relevante, seus membros têm
interesses próprios e, muitas vezes, até divergentes. A resolução de questões
econômicas e internacionais tende a ser buscada de forma bilateral, e não por
uma agenda comum sólida. Assim, propostas como moeda para comércio ou
estratégias de enfrentamento conjunto ainda parecem distantes.
O mundo mudou de forma radical. A
geopolítica, antes pano de fundo, tornou-se protagonista na ordem global
A principal preocupação externa com o Brasil
não está no seu papel como parceiro de blocos, mas, sim, na sua importância
intrínseca: seus recursos, sua posição estratégica e sua capacidade de
influenciar temas vitais para o século XXI. Mas o próprio Brasil parece não ter
consciência dessa condição. Jogar nesse nível exige consistência e visão de
longo prazo, predicados que, historicamente, o país não cultivou de forma
contínua.
O episódio com os Estados Unidos foi, nesse
sentido, um choque de realidade. Mostrou que o mundo enxerga o Brasil como um
ator que não pode ser ignorado e que qualquer descompasso estratégico terá
custos. No entanto, tanto o governo quanto o setor privado ainda demonstram
atraso em compreender essa nova realidade. Muitos sequer internalizaram que o
cenário global mudou, e continuará mudando em ritmo acelerado.
Essa mudança exige decisões difíceis: definir
prioridades, alinhar interesses nacionais de longo prazo, fortalecer
capacidades de defesa e negociação e, acima de tudo, agir com planejamento. Não
se trata apenas de aproveitar oportunidades econômicas, mas, também, de assumir
um papel coerente no apoio à economia global, contribuindo com soluções, ao
tempo em que defende valores e princípios.
O desafio é enorme. O Brasil precisa acordar
para a nova fase em que já está inserido. O setor privado deve agir de forma
proativa, buscando incorporar inteligência estratégica e capacidade de
antecipação e, com isto, identificar riscos e se proteger. O governo, por sua
vez, precisa estabelecer, com a sociedade, políticas de Estado que sobrevivam a
ciclos eleitorais. E ao Congresso cabe trabalhar com o governo para definir
políticas de Estado e marcos regulatórios claros e estáveis.
O país “cresceu” no cenário internacional e
não percebeu plenamente as responsabilidades e vulnerabilidades que isso traz.
Agora, já não é mais possível entrar discretamente na “festa”. O Brasil está no
centro do salão, sob luz intensa, e precisa aprender a dançar conforme a
música, com passos firmes, conscientes e estratégicos. O mundo não perdoa
ingenuidades e improvisações.
O tempo para se preparar está se esgotando.
Se o país não agir, os custos futuros serão ainda maiores, e as oportunidades,
mais difíceis de recuperar. O momento exige coragem política, clareza de
propósito e compromisso com as próximas gerações. Afinal, o Brasil incomoda e,
no jogo atual, isso pode ser tanto uma ameaça quanto uma vantagem competitiva
decisiva.
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