quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Por que o Brasil incomoda?, por Jorge Arbache

Valor Econômico

No novo contexto global, o Brasil deixou de ser um ator discreto. Suas posições passaram a ser não apenas notadas, mas questionadas e, por vezes, combatidas

Num jogo de Fla-Flu, há pouco espaço para a neutralidade, e essa foi, durante muitos anos, a política internacional bem-sucedida perseguida pelo Brasil. Ao longo de décadas, a diplomacia brasileira cultivou uma imagem de mediador confiável, defensor de valores e princípios como o multilateralismo, a defesa dos direitos humanos, a segurança internacional, a não intervenção em assuntos internos de outros países e a proteção do meio ambiente. Essa postura buscava equilibrar relações, mantendo portas abertas com diferentes polos de poder.

Entretanto, o mundo mudou de forma radical e em um curto espaço de tempo. A geopolítica, antes pano de fundo, tornou-se protagonista na ordem global. O multilateralismo está em retração, o intervencionismo em temas internos é agora explícito e, mais do que nunca, decisões econômicas, comerciais e de investimento incorporam fatores políticos e estratégicos, algo que não se via com tal intensidade em períodos sem guerra mundial. Paralelamente, a crise climática e ambiental está redesenhando o tabuleiro do poder, tornando temas como segurança energética, segurança alimentar e descarbonização prioridades absolutas.

Nesse novo cenário, países com recursos e capacidade de responder àquelas demandas ocupam posições privilegiadas. E o Brasil, com sua abundância de capital natural e potencial produtivo, é um desses casos excepcionais. Afinal, tem a maior reserva de água doce do planeta, a maior biodiversidade, vastas reservas de minerais críticos, posição de destaque na produção mundial de alimentos e uma matriz elétrica majoritariamente renovável, com amplo espaço para expansão. Tem, também, um dos maiores potenciais globais em mercado de carbono e serviços ecossistêmicos, e a maior floresta tropical, essencial para a estabilidade climática global. Além disso, figura como grande produtor de petróleo e como segundo maior produtor de biocombustíveis, com potencial de ser líder global.

Essas vantagens não se limitam à natureza. O Brasil é um dos maiores países em território e população, e a maior economia da América Latina, com influência direta ou indireta sobre os seus vizinhos. Em um mundo onde geopolítica e clima se entrelaçam, tais atributos tornam-se ativos estratégicos de primeira ordem e, não por acaso, são crescentemente valorizados.

O Brasil já é um destino importante de investimento estrangeiro direto e deverá ampliar esse protagonismo. As vantagens comparativas do país favorecem a industrialização verde e o powershoring, ferramentas capazes de financiar e promover um projeto de desenvolvimento sofisticado e em prazos relativamente curtos. No entanto, os mesmos atributos que criam oportunidades também despertam preocupações.

No novo contexto global, o Brasil deixou de ser um ator discreto. Suas posições passaram a ser não apenas notadas, mas, também, questionadas e, por vezes, combatidas. Isso porque a lógica dominante hoje é de jogo de soma zero: ganhos de um lado são percebidos como perdas do outro. Nesse ambiente, qualquer movimento estratégico do Brasil pode ser interpretado como ameaça ou reposicionamento de poder.

O problema é que o país ainda parece pouco preparado para essa dinâmica. Falta, no governo, no setor privado e mesmo na academia, uma infraestrutura robusta de conhecimento estratégico para embasar decisões e antecipar movimentos no tabuleiro global. Um exemplo recente foi o choque com tarifas comerciais impostas pelos Estados Unidos. A reação oficial foi de surpresa, mas, na realidade, esse era um risco previsível. O Brasil, pelas suas características e potencial, naturalmente se torna alvo de disputas geopolíticas, independentemente de quem ocupa a Presidência. Mas, claro, ter um “aliado” no poder no Brasil pode fazer diferença.

Nesse sentido, talvez haja uma superestimação do peso dos Brics na equação. Embora o bloco seja relevante, seus membros têm interesses próprios e, muitas vezes, até divergentes. A resolução de questões econômicas e internacionais tende a ser buscada de forma bilateral, e não por uma agenda comum sólida. Assim, propostas como moeda para comércio ou estratégias de enfrentamento conjunto ainda parecem distantes.

O mundo mudou de forma radical. A geopolítica, antes pano de fundo, tornou-se protagonista na ordem global

A principal preocupação externa com o Brasil não está no seu papel como parceiro de blocos, mas, sim, na sua importância intrínseca: seus recursos, sua posição estratégica e sua capacidade de influenciar temas vitais para o século XXI. Mas o próprio Brasil parece não ter consciência dessa condição. Jogar nesse nível exige consistência e visão de longo prazo, predicados que, historicamente, o país não cultivou de forma contínua.

O episódio com os Estados Unidos foi, nesse sentido, um choque de realidade. Mostrou que o mundo enxerga o Brasil como um ator que não pode ser ignorado e que qualquer descompasso estratégico terá custos. No entanto, tanto o governo quanto o setor privado ainda demonstram atraso em compreender essa nova realidade. Muitos sequer internalizaram que o cenário global mudou, e continuará mudando em ritmo acelerado.

Essa mudança exige decisões difíceis: definir prioridades, alinhar interesses nacionais de longo prazo, fortalecer capacidades de defesa e negociação e, acima de tudo, agir com planejamento. Não se trata apenas de aproveitar oportunidades econômicas, mas, também, de assumir um papel coerente no apoio à economia global, contribuindo com soluções, ao tempo em que defende valores e princípios.

O desafio é enorme. O Brasil precisa acordar para a nova fase em que já está inserido. O setor privado deve agir de forma proativa, buscando incorporar inteligência estratégica e capacidade de antecipação e, com isto, identificar riscos e se proteger. O governo, por sua vez, precisa estabelecer, com a sociedade, políticas de Estado que sobrevivam a ciclos eleitorais. E ao Congresso cabe trabalhar com o governo para definir políticas de Estado e marcos regulatórios claros e estáveis.

O país “cresceu” no cenário internacional e não percebeu plenamente as responsabilidades e vulnerabilidades que isso traz. Agora, já não é mais possível entrar discretamente na “festa”. O Brasil está no centro do salão, sob luz intensa, e precisa aprender a dançar conforme a música, com passos firmes, conscientes e estratégicos. O mundo não perdoa ingenuidades e improvisações.

O tempo para se preparar está se esgotando. Se o país não agir, os custos futuros serão ainda maiores, e as oportunidades, mais difíceis de recuperar. O momento exige coragem política, clareza de propósito e compromisso com as próximas gerações. Afinal, o Brasil incomoda e, no jogo atual, isso pode ser tanto uma ameaça quanto uma vantagem competitiva decisiva.

 

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