O Estado de S. Paulo
Com todos os progressos que possam ser feitos no caminho do multilateralismo, ainda assim é importante reatar o diálogo com os EUA
Empresários brasileiros que foram aos EUA discutir a questão das tarifas foram informados que o principal problema entre os dois países é político. Mais ainda: nesse campo, os canais estão totalmente bloqueados. Talvez seja essa a maior crise na história das relações diplomáticas. Já houve outras. Na verdade, no século 19, os dois países se aproximaram por causa de uma crise entre o Brasil e o Reino Unido. Foi um momento difícil: havia uma tensão por causa do tráfico de escravos, condenado pelos ingleses. Mas o estopim mesmo foi a prisão de alguns oficiais daquele país que se embebedaram e causaram confusão no Rio. O embaixador William Christie exigiu indenização e a Marinha britânica apreendeu navios mercantes brasileiros na Baía de Guanabara. O caso foi resolvido com arbitragem internacional, mas o Brasil rompeu com o Reino Unido. Foi por aí que entrou a América do Norte.
No período Vargas, houve um certo
estranhamento porque o presidente brasileiro negociava vantagens com a Alemanha
nazista e com os EUA. Em 1942, definiu o apoio aos aliados, assunto encerrado.
Ou quase: a instalação de bases militares americanas no Nordeste do Brasil
exigia compensações, das quais nasceram grandes empresas: CSN e Vale do Rio
Doce.
Durante a guerra fria, o episódio mais importante
foi a queda de Goulart, apoiada pelos americanos. Eles criticavam a limitação
na remessa de lucros e o apoio a Cuba. Enfim, num mundo dividido, queriam o
Brasil sob controle.
Apesar do apoio à ditadura militar, houve
tensões quando o Brasil firmou o Acordo Nuclear com a Alemanha, em 1975. E
atritos com o governo Carter, que exigia respeito aos direitos humanos.
Em 2013, uma nova crise a partir das
revelações de Edward Snowden: Dilma Rousseff e outras autoridades brasileiras
foram alvo de espionagem. Dilma fez um forte discurso na ONU contra a
vigilância cibernética. Sempre houve alguma tensão também na questão ambiental,
sobretudo na defesa da floresta amazônica.
A crise de agora tem outras características.
Donald Trump não só impôs a maior tarifa ao Brasil, como também quis evitar o
que acaba de acontecer: a condenação de Jair Bolsonaro.
Em alguns momentos, ele reclama da posição do
Brasil no Brics e condena qualquer busca por alternativa ao dólar. Nas últimas
falas, defende a tese de que o governo brasileiro foi muito para a esquerda e
se alinhou com adversários dos EUA. Interessante nessa crise é o fato de que
Trump, embora com decisões que nos prejudicam, tem algum apoio popular. A
indicação da simpatia foi a grande bandeira americana que desfilou no 7 de
Setembro na Avenida Paulista. Isso certamente vai fortalecer seu ego narcísico
e dar o argumento de que sua tentativa de interferir no Brasil está projetando
positivamente a imagem dos EUA.
Apesar de não haver indícios de uma saída
para a crise, a verdade é que algum diálogo entre
Trump e Lula precisa acontecer. Se observamos
bem, todos os líderes do Brics falam com Trump. O critério de não falar com a
esquerda também não vale. Ninguém está mais à esquerda do que o líder
norte-coreano Kim Jong-un. No entanto, Trump fala com ele.
O momento da condenação de Bolsonaro não é o
melhor. O Brasil tem estabelecido contato com muitos países dentro e fora do
Brics. Existe uma boa perspectiva de firmar o acordo Mercosul-União Europeia.
Com todos os progressos que possam ser feitos no caminho do multilateralismo,
ainda assim é importante reatar o diálogo com os EUA. É uma relação de mais de
200 anos e, na verdade, com um nível de dependência tecnológica ainda grande.
Passada a longa fase de discussão sobre
tentativa de golpe com a condenação dos acusados, possivelmente a anistia será
colocada na agenda. O debate não impede que se olhe para a frente, para a
retomada de uma certa normalidade, que no caso Brasil-EUA não significa ter
posições idênticas. Essa tarefa de aproximação não é só de um presidente, mas
das forças políticas, movimentos culturais e até clubes esportivos. Mesmo com a
resistência de Trump, vitorioso nas eleições, isso não permite generalizações
sobre um país complexo e rico do qual nunca se esteve tão afastado nesses dois
séculos de relação.
Uma análise do chamado tarifaço mostra que
houve inúmeras exceções e que foram trabalhadas nos EUA por quem negocia com o
Brasil e se interessa em manter esse fluxo de trocas.
Nas exceções, estão espelhadas as necessidades
econômicas. Mas há também outras necessidades ou pelo menos outras visões na
sociedade americana que pendem para uma relação com o Brasil. De um ponto de
vista exclusivamente político, Trump gostaria de ver no País um governo
alinhado com os EUA. Isso pode não acontecer de novo em 2026. E os EUA terão de
enfrentar a realidade que não pode mais ser moldada por eles.
Uma aceitação da realidade, de parte a parte,
pode garantir o prolongamento de uma amizade sem muitos traumas. Importante que
entre os políticos dentro e fora do governo se constitua um grupo para desenhar
a reaproximação. E por via das dúvidas, um outro grupo para planejar um nível
de autonomia tecnológica para os próximos anos. Parecem iniciativas
contraditórias, mas o bom senso mostra que são complementares.
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