CartaCapital
A Constituição não admite perdão a quem
atenta contra o Estado Democrático de Direito
Definidas as condenações aos integrantes do “núcleo central” da trama golpista, os bolsonaristas procuram acelerar a tramitação de um projeto de impunidade no Congresso Nacional. A palavra “anistia” vem do grego “amnestia”, aparentada da palavra “amnesia”, que significa esquecimento, perda de memória. Em termos políticos, significa o perdão por parte do Estado a determinados crimes. Esse perdão significa também um apagamento dos delitos, como se o autor nunca os tivesse praticado. Nisto, a anistia se distingue do indulto. O indulto não extingue os efeitos da condenação: suspende a pena, mas não implica esquecimento dos ilícitos.
Juridicamente, a indulto é concedido pelo
Executivo e a anistia é definida por um Projeto de Lei aprovado pelo
Legislativo. A tese da anistia aos crimes cometidos por aqueles que planejaram
e tentaram o golpe de Estado após a derrota de Bolsonaro nas
urnas em 2022 está inserida numa controvérsia acerca da sua
constitucionalidade. No artigo 5º da Constituição, inciso XLIII, está definido
que são “insuscetíveis de graça, anistia ou perdão a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas, o terrorismo e os definidos como
crimes hediondos”. Já no inciso XLIV se lê que “constitui crime inafiançável e
imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
constitucional e o Estado de Direito”.
Na letra da Constituição, não há vedação à
anistia para crimes políticos. No entanto, juristas e ministros do STF têm
reiterado que não cabe anistia aos condenados pela tentativa de golpe. Os
argumentos são variados. Um dos principais diz respeito ao fato de que todos os
condenados foram julgados pelo devido processo legal, de forma transparente e
pública. Nesse sentido, não há caracterização de perseguição política, ao
contrário da anistia aprovada no fim da ditadura. Naquele processo, houve um
pacto geral entre as partes. Agora, a anistia, se aprovada no Congresso, seria
um ato unilateral de um grupo político que conspirou contra o Estado
Democrático de Direito.
Um segundo argumento refere-se ao fato de que
crimes contra o Estado Democrático de Direito violam cláusulas pétreas da
Constituição, que não podem ser modificadas por emendas. Trata-se de uma
proteção absoluta da democracia e, por isso, não comporta anistia aos que
atentaram contra ela.
A tese de que a anistia não se aplica a esse
tipo de crime adota como fundamento o espírito da Constituição, o seu sentido
manifesto. Ou seja, nada que vise suprimir ou atentar contra o Estado Democrático
de Direito, a separação dos poderes, a organização federativa, o voto
universal, direto e secreto, e contra os direitos e garantias individuais pode
ser objeto de anistia.
Assim, seria necessário considerar dois
fundamentos: o sentido manifesto da Constituição, que garante proteção absoluta
ao Estado Democrático de Direito, protegido por cláusulas pétreas, e a
imprescritibilidade dos crimes cometidos contra a ordem constitucional e o
Estado Democrático, como define o inciso XLIV. O plenário do Supremo já
estabeleceu jurisprudência de que nem o indulto individual nem a anistia
coletiva podem ser concedidos a crimes cometidos contra a ordem democrática.
Caso o Congresso aprove a anistia aos condenados pelos atos golpistas, ela
seria declarada inconstitucional pela Corte.
Esse assentamento não resolve, porém, o
problema da luta política em torno da anistia. Ao não aceitar a condenação dos
golpistas, os bolsonaristas e outros deputados de direita atentam contra a
Constituição, o que representa uma continuidade do golpe. Quer dizer: não
aceitam as decisões da ordem jurídica democrática e querem colocar-se acima e
contra a lei.
Anistiar os criminosos que atentaram contra a
democracia representaria dar-lhes salvo-conduto para que continuem atacando o
Estado Democrático de Direito. A anistia, dessa forma, não significa
pacificação, e sim continuidade do golpe e convite para futuras rupturas
democráticas.
A principal batalha política a ser travada
consiste em derrotar o projeto da anistia no Congresso. O governo e a base
governista precisam mostrar que são capazes de resolver os desafios e os
embates políticos na arena política, que é o Legislativo. A disputa não pode
continuar sendo terceirizada para o STF, como vem ocorrendo nos últimos anos.
O Brasil precisa fechar, de forma categórica,
as portas para futuros golpes. Elas só serão cerradas se for fincado esse marco
histórico que sacramenta a punição para aqueles que atentam contra a ordem
democrática. Não os punir significa um estímulo e um incentivo a novos golpes.
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Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
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