O Globo
Parte da esquerda bem gostaria de trocar de
povo, mas, dado que essa não é uma opção, limita-se a escandalizar-se
Em julho, o Grok — chatbot de inteligência artificial da xAI — postou elogios a Hitler e frases antissemitas no X, obrigando a empresa de Elon Musk a remover as mensagens e prometer “melhorar” seu treinamento. Constrangimento igual já havia sofrido a Microsoft quando, em 2016, Tay, robô criada para interagir com meninas adolescentes no Twitter, saiu disparando atrocidades nazistas e insultos sexistas na plataforma. Foi tirada de circulação 16 horas depois do lançamento. Na origem dos desastres de marketing de Grok e Tay está o fato de os “robôs de conversa”, em grande medida, refletirem o que encontram no ambiente em que são treinados ou interagem — e isso inclui os padrões, vieses e preconceitos dos usuários das redes.
Jair Bolsonaro é um chatbot. A exemplo de
Benito Mussolini — que dizia não ter inventado o fascismo, mas extraído a
ideologia do inconsciente italiano —, o ex-presidente condenado nesta semana
por tentativa de golpe de Estado não inventou a direita brasileira. Antes,
encarnou-a. Essa direita que ainda enxerga em Bolsonaro seu intérprete
representa, segundo as últimas pesquisas, entre 15% e 20% do eleitorado — nem
todo ele formado por extremistas, golpistas e gente que jura que Lula tem cinco
clones. Na direita que Bolsonaro incorporou, estão também pequenos empresários
das periferias que condenam os escândalos pregressos do PT;
religiosos incomodados com a ascensão dos direitos LGBTQIA+; médios e grandes
produtores rurais desgostosos da pecha de vilões ambientais; militares e
policiais indignados com o rótulo de golpistas e fascistas; servidores
públicos, profissionais liberais e donas de casa inconformados com a ideia de
que criminosos presos merecem ir para casa no Natal. Bolsonaro não inventou
essas pessoas nem esses ressentimentos. Sua retirada de circulação por justa
causa, tal e qual um chatbot problema, não fará desaparecer nem um nem outro.
Populistas de direita, como o ex-presidente,
brotam nas brechas deixadas pela representação política, diz o pesquisador
Laurenz Guenther, da Universidade Bocconi. Ao analisar o tema em 27 países da
Europa, ele concluiu que os eleitores são mais conservadores do que os
parlamentares que os representam em praticamente todos os assuntos da pauta
cultural — de imigração a criminalidade e questões de gênero. O fato de
eleitores estarem à direita de seus representantes, e não encontrarem quem
expresse suas posições, abre uma lacuna que, afirma Guenther, tem sido
preenchida pelo extremismo.
O exemplo da Alemanha é
didático. Em 2013, a maioria dos alemães era favorável à restrição da
imigração. Apesar disso, parlamentares dos quatro principais partidos defendiam
o contrário, a facilitação. Em 2014, Angela Merkel, com sua política de portas
abertas, fez entrar no país quase 2 milhões de imigrantes. No ano seguinte,
veio a crise dos refugiados e, dois anos depois, o impensável. Pela primeira
vez desde 1945, a Alemanha viu cair sobre seu Parlamento a sombra sinistra de
um partido de extrema direita, o Alternativa para a Alemanha (AfD) — não por
acaso, o único a defender a redução da imigração no país.
No Brasil, os evangélicos estão entre os 49%
dos eleitores identificados como altamente conservadores pela pesquisa
Ipsos-Ipec. Se boa parte deles apoiou Bolsonaro, é tanto por terem visto alguns
de seus valores refletidos no discurso do ex-capitão quanto por terem sido por
anos rechaçados por setores do PT que os viam como “atrasados”, “alienados” —
vítimas bovinas de “mercadores da fé”.
Parte da esquerda bem gostaria de trocar de
povo, mas, dado que essa não é uma opção, limita-se a escandalizar-se a cada
vez que os bárbaros do outro lado abrem a boca. Ignorar esses eleitores não os
fará desaparecer. Apenas aumentará as chances de, cedo ou tarde, outro
populista de direita vir a lhes dar voz.
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