O Globo
Ao se referir à deputada de acordo com seu
sexo biológico, Isabella Cepa não pretendia insultar uma mulher trans
“Vai ser chatíssimo: as lésbicas negras
sadomasoquistas vão disputar direitos com os pais gays brancos protestantes
etc. etc. Marcuse não é nada comparado com o que vem.” A frase, de Jorge
Mautner, descreve o que o compositor e profeta nas horas vagas imaginou que
aconteceria quando a política de esquerda baseada na luta de classes caducasse
e fosse substituída pela luta das minorias — que então passariam a se
engalfinhar.
A fala está no livro “Verdade tropical”, de Caetano Veloso, e, se a memória do baiano não falhou, ele a ouviu de Mautner nos anos 1970. Isso foi cinco décadas antes de a escritora britânica J.K. Rowling inaugurar a briga entre feministas e ativistas trans que a fez ser cancelada e ameaçada de atirarem seus livros à fogueira (para quem passou os últimos cinco anos confinado a alguma bolha, o pecado de Rowling foi ter feito troça da ideia, defendida por ativistas trans, de que mulheres biológicas deveriam ser chamadas de “pessoas que menstruam” para diferenciá-las das mulheres trans, que deveriam ser chamadas de mulheres, que não menstruam por terem nascido com sexo biológico masculino).
No mesmo ano do linchamento da criadora de
Harry Potter, a contenda chegou ao Brasil pelas mãos de Erika Hilton, mulher
trans eleita deputada federal em 2022 pelo PSOL. Ela
decidiu processar, sob acusação de transfobia, a designer gráfica e ativista
feminista Isabella Cepa, que, em 2020, comentando o resultado das eleições para
vereador em São Paulo, lamentou no X que
“mulheres verdadeiramente feministas não foram eleitas” e que “a mulher mais
votada de São Paulo é um homem”.
Isabella é uma feminista de cepa radical. A
corrente teórica a que se filia entende que mulheres trans, por terem nascido
homens, não passaram pelas mesmas experiências de opressão a que foram
submetidas as que vieram ao mundo já nessa condição. Chamá-las de “mulheres”,
crê essa corrente, dilui a luta feminista, além de pôr em risco a segurança de
mulheres biológicas obrigadas a dividir com elas espaços como banheiros ou
presídios. Ao se referir à deputada Erika de acordo com seu sexo biológico,
portanto, Isabella não pretendia insultar uma mulher trans, mas expressar uma
crença alinhada ao feminismo crítico de gênero, grupo em que milita — e que,
até onde se sabe, não foi posto na ilegalidade ainda.
Foi mais ou menos o que entendeu a Justiça ao
arquivar na terça passada a ação contra Isabella. O ministro Gilmar
Mendes, do Supremo, referendou o que já concluíra a primeira instância: o
que a feminista escreveu no X não é discriminatório, porque não tenta cercear
direitos de mulheres trans e, como manifestação de opinião, não ultrapassa os
limites da liberdade de expressão. Comentando a decisão, Erika Hilton disse:
“Mais grave é a narrativa de que está liberada a transfobia no Brasil. Isso tem
aumentado a violência contra mim e a comunidade LGBTQIA+”.
O processo contra Isabella durou cinco anos.
Em julho deste ano, ela recebeu da União Europeia o inédito status de refugiada
política perseguida por posições de gênero. Antes disso, por causa da
repercussão do caso, perdeu oportunidades de emprego no Brasil, viveu sob uma
bateria de xingamentos, recebeu ameaças contra ela e sua família e votos de que
fosse estuprada e morta. O grosso dessas mensagens não partiu de fascistas da
direita. Isabella afirmou em entrevista que a esquerda abandonou as mulheres
como ela.
A esquerda, ou parte dela ao menos, sempre
teve por hábito defender a liberdade de expressão para quem é do seu grupo e
ficar bem quieta quando o alvo da censura é gente de direita. Agora, com o fogo
cruzado no campo das minorias, estende a prática da omissão ao próprio quintal.
Também merece desprezo quem lá não adere ao pensamento único ou ousa contestar
as vacas sagradas do dogma progressista. Para esses, sobra só a patrulha moral
— a vigilância e a punição. Mautner acertou, ficou chatíssimo.
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