CartaCapital
Condenação é marco, não ponto final da crise
democrática. A sobrevivência da extrema-direita, articulando estratégias de
impunidade e reedição política, exige vigilância redobrada
O julgamento de Jair Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal ganhou novos contornos com o voto do ministro Luiz Fux, que acolheu preliminares da defesa e se manifestou pela anulação do processo. Embora isolada diante da tendência de responsabilização do ex-presidente e seus aliados por tentativa de golpe de Estado, organização criminosa e ataque às instituições republicanas, a posição de Fux revela a densidade política e jurídica do caso. Ela demonstra que, mesmo em julgamentos de alta voltagem, persiste espaço para leituras divergentes capazes de oferecer fôlego narrativo aos réus e combustível às suas bases de apoio.
É precisamente esse espaço de disputa
simbólica que impede que a responsabilização judicial seja confundida com um
ponto final da emergência democrática. A direita bolsonarista, longe de se
dissolver, reorganiza-se. O Partido Liberal, sob a batuta de Valdemar Costa
Neto, já declarou que “não existe plano B” além de lançar Bolsonaro em 2026,
apesar da inelegibilidade até 2030. O eventual registro de sua candidatura
obrigaria o TSE e o STF a se pronunciarem, numa provocação calculada para
inflamar as bases radicais e alimentar a tese da perseguição política.
A sobrevida da extrema-direita manifesta-se,
sobretudo, no interior das próprias instituições. Ressurge no Congresso a
proposta de anistia ampla aos envolvidos nos atos golpistas. Mais do que gesto
de clemência em busca de pacificação, trata-se de operação política destinada a
reposicionar atores estratégicos. O governador paulista Tarcísio de Freitas,
cuja adesão ao bolsonarismo tornou-se inequívoca, ganha protagonismo imediato,
assim como o grupo do colega paranaense Ratinho Jr., que ensaia aproximação
para preservar a competitividade no campo da direita.
O movimento atualiza essas lideranças no
tempo presente da política, ao mesmo tempo que prepara o terreno para recolocar
Bolsonaro no tempo futuro, por meio da tentativa de anular condenações e
inelegibilidades retroativas desde 2019. Em suma, a anistia não é simples manobra
legislativa, é peça de um esforço coordenado de rearticulação da
extrema-direita, que combina a ascensão de novas lideranças com a preservação
da centralidade simbólica do ex-presidente.
Se prosperar, a proposta abrirá mais um
embate entre o Congresso e o Supremo, empurrando a Corte, novamente, para a
incômoda condição de último bastião institucional da democracia. Ao tribunal
caberia arbitrar os limites da constitucionalidade e conter uma investida
autoritária travestida de legalidade legislativa. Mas tal centralidade cobra um
preço elevado: a sobreexposição fragiliza o STF, alimenta teorias de
protagonismo excessivo e desgasta sua reputação, ao mesmo tempo que desloca
para segundo plano a construção de respostas mais amplas – respostas que
deveriam envolver o Legislativo e a sociedade civil. Persistir nesse arranjo é
perpetuar uma democracia dependente da tutela judicial.
A equação ganha contornos ainda mais
complexos quando se observa o cenário internacional. O alinhamento
bolsonarista-trumpista projeta a extrema-direita para além das fronteiras
nacionais, reforçando o elo entre narrativas de perseguição política e
ofensivas contra instituições democráticas. Condenar Bolsonaro será, sem
dúvida, um passo histórico, inédito e corajoso. Mas a crise não se encerra com
a sentença. A sobrevivência da extrema-direita, articulando estratégias de
impunidade e reedição política, exige vigilância redobrada. Uma democracia só
se fortalece quando não apenas os responsáveis são punidos, mas também quando
as condições que permitiram o autoritarismo são efetivamente enfrentadas e
neutralizadas.
Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital,
em 17 de setembro de 2025.
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