Folha de S. Paulo
Assassinato político pode ser pretexto para
virada repressiva
Há quem divida a ética entre deontologia e
consequencialismo —coisas que são moralmente erradas por princípio e coisas que
são moralmente erradas porque as suas consequências são más. Para mim, a violência política,
e em particular o assassinato de adversários políticos, é moralmente errada por
ambas as razões e deve ser publicamente denunciada.
Não me desvio deste ponto de partida, mesmo se discordo e me causam repugnância as opiniões da vítima do assassinato. Diria mais: sobretudo nessas situações. A pedagogia de cada um de nós é mais necessária e eficaz junto da nossa família política e quando a vítima é da família política a que nos opomos.
Isto é o que eu diria antes do assassinato
de Charlie Kirk, um influenciador de extrema direita próximo
de Donald Trump.
E é o que digo depois, sem tirar nem pôr. Quem é contra a pena de morte quando
exercida em nome do Estado tem de continuar a ser contra a pena de morte quando
exercida por qualquer indivíduo agindo em nome de quaisquer convicções ou
motivações, que não mudam em nada o que fica dito atrás.
Tal como não muda em nada o fato de Charlie
Kirk relativizar a violência armada, incluindo as mortes em massacres,
considerando-as um preço aceitável a pagar pelo direito a portar armas. Acho
essa opinião aberrante. Ainda assim, ninguém merece morrer por uma opinião —e
isso significa ninguém.
Esse é o argumentário deontológico sobre o
assassinato de Charlie Kirk e poderia ter sido escrito um segundo após o
sucedido. Em bom rigor, poderia até ter sido escrito antes, pois a sua validade
é universal.
Quanto ao argumentário consequencialista
—bem, estamos a ver o desenrolar dele dia após dia, e não surpreende ninguém.
Desde que um esquerdista descompensado, Marinus van der Lubbe, incendiou o
Reichstag em 1933, dando a Hitler a justificativa para iniciar a vaga
repressiva que levaria à sua concentração totalitária de poder, sabemos como
esses eventos abrem a porta à aceleração e endurecimento de regimes em
transição para o autoritarismo.
Nos EUA, as reações não vêm só, nem sequer
principalmente, da massa de apoio a Trump, mas do próprio presidente e dos mais
altos responsáveis da sua administração. Donald Trump não esperou por qualquer
informação fidedigna sobre as motivações do assassino para responsabilizar
a esquerda política, de forma geral, pelo sucedido —mesmo quando
todos os líderes relevantes da esquerda norte-americana, de Bernie
Sanders a Zohran
Mamdani, passando pelos líderes democratas no Senado e na Câmara do
Congresso dos EUA, condenaram o assassinato em termos impecáveis.
O vice-presidente J. D. Vance apelou
a empresas que despeçam funcionários que tenham sido "insensíveis"
com a morte de Kirk. Stephen Miller, conselheiro dos mais próximos do
presidente, declarou que o Partido
Democrata é "uma organização extremista doméstica".
No meio da confusão, o jornal The New York Times foi processado
por Trump em US$ 15 bilhões, o suficiente para fechar o jornal pela
simples razão de se opor a Trump.
O assassinato de Kirk corre o risco de
representar algo como a morte da liberdade de expressão nos EUA. Ambos os
campos poderão reivindicá-lo, de maneira oposta. E ambos terão razão.
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