O Globo
A história da aprovação da PEC da Blindagem
na Câmara dos
Deputados na noite de terça-feira, a toque de caixa, com 344
votos de quase todos os partidos, equivale a uma espécie de manual de como
opera a política no Brasil.
Antes de mais nada, é a prova de que, quando os nobres parlamentares querem, não há o que impeça nem o mais rematado dos absurdos. Há pelo menos quatro anos a ideia de dificultar ou impedir investigações contra parlamentares circula em diferentes formatos. A primeira versão, apresentada em 2021 na gestão de Arthur Lira (PP-AL), já previa que nenhum processo contra deputado ou senador poderia ser aberto sem autorização do próprio Congresso.
Teve como gatilho a prisão de Daniel
Silveira por Alexandre de
Moraes, porque o deputado atacou ministros do Supremo Tribunal
Federal (STF)
nas redes sociais e defendeu o fechamento da Corte. Com a ideia de que o texto
servia para proteger a liberdade de expressão dos parlamentares, ganhou o
beneplácito de Bolsonaro e petistas traumatizados com a Operação
Lava-Jato, que se diziam contra a “criminalização da política”. Já
era um projeto ecumênico — evidência de que, quando se trata de proteger a
própria pele, as fronteiras ideológicas desaparecem.
A forte reação da sociedade fez com que os
extremos, de olho na eleição de 2022, percebessem que acabariam pagando a
fatura para entregar os benefícios ao Centrão — a massa de parlamentares que já
se via acossada por investigações sobre desvios de recursos de emendas. Sem
votos para passar a boiada inteira, o pessoal da blindagem foi comendo pelas
beiradas, enfraquecendo as leis de controle de corrupção aqui e ali, enquanto
esperavam a melhor hora para voltar à carga.
O momento parecia ter chegado no início de agosto,
com a prisão domiciliar de Jair
Bolsonaro e o sequestro da cadeira do novo presidente da
Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB).
Percebendo o apetite do bolsonarismo para se vingar do Supremo, Lira, tutor de
Motta, embalou a PEC com a anistia aos golpistas do 8 de Janeiro e empurrou
goela abaixo do discípulo em troca do final do motim. Bateu na trave de novo,
derrotado pela mobilização da sociedade, preocupada com a possibilidade de o
Congresso virar reduto do PCC ou do Comando Vermelho.
Motta até tentou dizer que não tinha nada a
ver com o projeto. Mas os acontecimentos desta semana mostraram que, em Brasília,
toda criatura, por mais poder que tenha, deve fidelidade ao criador. Assim que
foi decretada a condenação de Bolsonaro, ele saiu costurando um grande pacto
nacional, com Supremo com tudo, para entregar algo aos deputados. Passou o
final de semana em conversas com ministros do STF, foi a São Paulo encontrar o
governador e colega de partido Tarcísio de Freitas e almoçou com Lula.
Ao Supremo, disse que a única forma de barrar
a anistia seria aprovar a blindagem —mas prometeu incluir no texto um
dispositivo dizendo que, se o Congresso não votasse sobre os processos num
prazo determinado, as investigações estariam liberadas.
A Lula, afirmou que, sem a PEC, o Centrão não
votaria as prioridades do governo, como a Medida Provisória que amplia a
isenção na conta de luz para a baixa renda e a isenção do Imposto de Renda para
quem ganha até R$ 5 mil. Uma vez resolvida a PEC, prometeu, cuidaria de
postergar a anistia. Os bolsonaristas, Motta convenceu de que, sem a PEC da
Blindagem, o Centrão não aprovaria a anistia. De todos, exigiu que não vazassem
à imprensa detalhes do que era discutido. Do contrário, não teriam clima para
aprovar blindagem alguma. Mais uma lição do manual: quanto menos transparência,
mais fácil enganar os eleitores.
O resultado se viu nesta semana. Em poucas
horas, a PEC de 2021 voltou à pauta, ganhou novo relator, recebeu uns ajustes e
foi a plenário. Lula lavou as mãos. Mandou dizer a seu pessoal que era contra,
mas os liberou para fazer o que quisessem — isso rendeu à blindagem 12 votos.
O PL entregou
à PEC quase todos os votos de que dispunha. O STF assistiu a tudo em silêncio.
No dia seguinte, a isenção na conta de luz
foi aprovada, e a votação da urgência para a anistia foi pautada. Mas continuam
todos à espreita, esperando que Motta termine de cumprir os acordos que fez.
Ministros do Supremo, que pelo jeito não endossaram o pacto, começaram a
avançar com as investigações sobre parlamentares já abertas.
Só o Centrão tem o que queria. O que leva à
última e definitiva lição desse episódio: em Brasília, a polarização é para os
trouxas. Não importa o que aconteça, o Centrão sempre sai ganhando.

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