O Povo (CE)
Não podemos jamais confundir os desacordos
salutares, próprios da pluralidade com que se faz o Direito, da absoluta falta
de coerência de um determinado intérprete em circunstâncias muito semelhantes
de avaliação
Juristas costumam colecionar defeitos. A
vaidade, a soberba, a habilidade de complicar. O mais imperdoável deles é a
incoerência, porque mina aquele que é o alicerce de qualquer ordem jurídica: a
confiabilidade. No julgamento mais importante das últimas décadas, um dos
ministros do STF abusou da licença para divergir: como explicar as reviravoltas
argumentativas do voto de Luiz Fux sem desacreditar do próprio Direito?
Esse é um ponto delicado de explicar: por que há divergência quando se trata de interpretar as leis? Por que, em um mesmo tribunal, um juiz pode decidir de modo distinto do outro? A resposta é sempre difícil, mas honesta: interpretar o Direito (assim como as ações e motivações humanas) não é um trabalho exato, é uma operação de linguagem em que várias subjetividades concorrem na tentativa de construir um resultado objetivo.
Essa abertura interpretativa que o
Direito oferece não pode ser confundida, contudo, com um voluntarismo abusivo,
quando um mesmo intérprete se posiciona de forma diversa conforme as
circunstâncias do seu interesse.
Não podemos jamais confundir os desacordos
salutares, próprios da pluralidade com que se faz o Direito, da
absoluta falta de coerência de um determinado intérprete em circunstâncias
muito semelhantes de avaliação. O que foi atentado à democracia para as centenas
de condenados por Fux há meses não pode deixar de ser para Jair Bolsonaro
e Braga Neto.
Pior ainda: não se pode absolver Bolsonaro ao
mesmo tempo em que se condena o ajudante de ordens do presidente. É
desrespeitoso com a nossa inteligência. Não precisa de experiência
jurídica para perceber o quão insustentáveis são as decisões quando tomadas no
conjunto de posicionamentos de um mesmo juiz.
É lamentável que tenhamos observado essa
demonstração de seletividade justamente no julgamento que envolve a cúpula
envolvida na articulação dos atos que culminaram no 8 de janeiro. Esse
voto já cumpriu seu papel de fomentar um discurso entre os setores mais
radicalizados, que vocifera pela ilegitimidade da decisão do colegiado e segue
na busca de uma anistia.
A crítica não afirma que uma decisão
colegiada só é forte e válida quando unânime: nem toda divergência é
perniciosa. Que o diga Ruth Bader Ginzburg, a lendária juíza da
Suprema Corte americana, que, se mantendo fiel e coerente com suas convicções e
interpretações do Direito, ficou conhecida pelos votos memoráveis em que ela
foi a voz divergente.
A integridade de sua coerência ao longo da
vida deu peso aos seus votos e os manteve úteis para o debate necessário sobre
a correta interpretação do Direito. O STF cumpriu seu papel, mas
expôs, para nossa tristeza, os piores defeitos de alguns de nossos juízes.
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