Não é prudente menosprezar o papel da extrema-direita global, muito menos o que
nos revelam — para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir — as mobilizações
populares da direita e seus associados no Brasil, e o avanço persistente e
crescente, nas duas casas do Congresso, da coalizão neofascista, incansável,
afoita e irresponsável. Ora derrogando, uma a uma, as conquistas logradas com a
Constituição de 1988, ora, como agora, empunhando inédito projeto de anistia
ampla e prévia dos presuntivos condenados e de futuros responsáveis por crimes
ainda não realizados.
Ou seja, um indulto prévio, um salvo-conduto à disposição de celerados,
estimulados pelas pressões do imperialismo, de ação tão ostensiva que não pode
mais ser ignorada nem pelos néscios. Projeto de anistia que agora tem suas
velas enfunadas pela ofensiva política do inefável Fux — o qual, como bem
alerta Conrado Hubner, “não merece ser levado a sério pelo que diz, mas pelo
que representa”. E Fux representa, claro, a inserção do extremismo de direita
na institucionalidade, mas antes disso a média de um Judiciário classista,
sempre pronto para pôr de manifesto sua consciência de classe.
Donald Trump, que acaba de transformar o Departamento de Defesa em Departamento
de Guerra, tem feito tudo o que sabemos, e não devemos perder tempo relembrando
o que não pode ser esquecido. Cabe tão só o registro de que, no passado 9 de
setembro, quando se colhiam os primeiros votos no STF, a Casa Branca voltou a
atacar.
Lê-se na primeira página da edição da Folha de S. Paulo de 10/09/25:
“Questionada se os EUA preveem mais sanções ao Brasil pelo julgamento de Jair
Bolsonaro (PL), a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt, disse que Donald
Trump impôs taxas para proteger a liberdade de expressão e que o país não teme
‘usar o poder econômico e militar’ para defendê-la”.
Na lógica do lobo, “liberdade de expressão” pode ser qualquer coisa — como já
foram as inexistentes armas atômicas de Saddam Hussein. Nada de novo no front
ocidental, pois, e nada diverso se deve esperar do gigante do Norte,
agressivamente atormentado pela sua decadência.
Mas, a propósito, é impossível ignorar, como preparatório do que quer que seja,
o desalentador recado que nos deram no dia 7 de setembro as manifestações da
extrema-direita no Rio de Janeiro e em São Paulo, quando uma multidão calculada
em 42 mil pessoas estendeu na Avenida Paulista uma gigantesca bandeira dos EUA. No
Rio (outros 42 mil bolsonaristas ululantes), eram contadas às centenas as
bandeiras e bandeirolas dos EUA e de Israel. Bonés traziam a inscrição “Make
America Great Again”, enquanto cartazes improvisados saudavam o
presidente dos EUA, numa contingência em que o Brasil é atacado como talvez
jamais o tenha sido em tempos de paz e de relacionamento bilateral de dois
séculos, até aqui tido como amistoso.
Essa subserviência ideológica extrema, essa vexaminosa ausência de brio, esse
divórcio com qualquer sentimento de nacionalidade era, até aqui, desconhecidos
entre nós. Nasce uma direita especiosamente entreguista e antinacional. O que
nos cobra reflexão e, se possível, análise crítica.
A este respeito, importa nos darmos conta, para além dos números, e para não
nos iludirmos, do aspecto qualitativo do apoio popular de que o neofascismo
(que aqui atende pelo nome fantasia de bolsonarismo) ainda desfruta entre nós:
todos sabiam quem era Jair Bolsonaro já em 2018, pois o político fluminense
jamais fez segredo de suas intenções e ideário político, antes pelo contrário —
e ainda assim, ou por isso mesmo, 57,8 milhões de votos o levaram ao Planalto;
em 2022 conhecia-se, ademais, o caráter de sua passagem pela Presidência,
inclusive a criminosa condução do enfrentamento à pandemia, e não obstante
isto, faltou pouco, muito pouco, para o capitão ser reeleito; neste 2025 é
amplamente conhecida a formação de uma quadrilha, por Bolsonaro e seus áulicos,
para retomar o poder perdido nas urnas, derruindo o sistema democrático e
praticando assassinatos. Ainda assim, apesar disso tudo, o extremismo de direita segue
levando milhares de pessoas às ruas e ameaçando o país — embora a classe
dominante, ou parte dela, hoje se mostre indisposta a repetir a aventura.
E não se pode ignorar que o bolsonarismo conta com o apoio da maioria dos
governadores e prefeitos, a maioria do Congresso e, de quebra, três ministros
no Supremo. Não é pouca coisa para um projeto de poder.
Voltando: foi burocrática, infelizmente apenas burocrática, a resposta do
Itamaraty à insolência da Casa Branca, sinalizando que nosso governo,
inexplicavelmente silente diante da praça de guerra em que os EUA transformaram
o Caribe — na cabeça de nosso continente —, ainda não entendeu o real
significado da crise na qual o labirinto das circunstâncias históricas nos
inseriu.
Nem o governo, nem o que se chama de sociedade organizada, tanto quanto o
movimento social, se deram conta de que independência e soberania nacional não
se conquistam, nem se defendem, nem se conservam com meras — ainda que belas —
palavras de ordem ou discursos patrióticos que, carentes de ação, de imediato
caem no vazio para logo serem esquecidos.
Pois a consciência crítica que não se faz ação perde-se no ar, inúteis e
estéreis são as palavras, palavras e palavras que o bardo pôs na voz
de Hamlet para expressar este vazio.
No caso concreto que nos aflige, não basta torcer pelas condenações com as
quais o STF promete nos acalentar. É preciso cobrá-las com nosso apoio ativo, e
reunir forças para assegurar a execução das possíveis penas.
A defesa da independência e da soberania nacional, tão vexaminosamente
atentadas pelo imperialismo norte-americano (Trump é apenas um agente; não é um
louco nem um desvairado, embora bravateiro), pede ação concreta — e nada de
considerável produzimos até aqui.
Não há democracia e não há soberania sustentáveis se ambas não tiverem, em suas
bases, a consciência e a ação de um povo organizado. O que estamos fazendo para
politizá-lo, dando-lhe consciência do real desafio?
Povo tampouco é mera figura de retórica, e é muito mais do que o ajuntamento de
pessoas, do que um coletivo. Povo só é agente político quando está organizado e
se mobiliza, ou é mobilizado em função de um projeto: um projeto de vida, uma
visão de mundo, uma utopia que seja. A praça só é do povo quando ele a ocupa,
conhecendo seu destino. Não se põe de pé uma democracia falha de povo em sua
base, e o grito de soberania nacional não caminha para além da retórica quando
carece de força para garanti-lo.
Soberania, além de povo disposto a preservá-la por razões afetivas ou
políticas, carece de condições objetivas de defesa e ataque: serviço de
inteligência digno do nome e forças armadas próprias, autonomamente equipadas,
senhoras de autonomia tecnológica, apoiadas em indústria bélica própria,
fornecedora de suas armas, de seus equipamentos, de suas munições, capazes de
defender nosso povo, sua cultura, suas riquezas e a integridade territorial.
Além de tropas bem formadas. Tudo o que nos falta — e nosso governo ainda não
disse à nação qual é seu projeto de defesa nacional.
Na contramão das necessidades objetivas, carecemos ainda de um projeto de
nação, certamente a fonte de todos os nossos problemas. Ainda não nos foi dado
definir que país queremos ser e fazer, nem mesmo sabemos, por isso mesmo, de
que Estado carecemos.
Em plena crise, acossado por tantas e tantas ameaças, com nosso desenvolvimento
econômico coartado, renunciámos à revolução social e às reformas mínimas —
aquelas que podem ser operadas dentro da ordem, como o foram nos países
capitalistas desenvolvidos (desenvolvidos porque as enfrentaram). Reformas que,
nos anos 1960, eram chamadas de “reformas de base” e entusiasmaram o país.
O mundo entra em crise como resultado da inevitável crise de hegemonia que
abala o sistema internacional de dominação. Dessa crise, que ameaça a paz e a
soberania dos Estados, não estamos livres; mas, nela partícipes a contragosto,
seremos condenados ao papel de peão num jogo de xadrez em que se movimentam
mais de um rei na mesma quadra, se não tivermos competência para, compreendo o
cenário da grande disputa, decidir nosso destino.
Mas o país parece tranquilo. As ruas estão desertas de nossa gente; a Universidade,
apaziguada embora pobre de recursos, deixou de inquietar; os sindicatos não
mais assustam.
Por consequência, não há clareza de quem, na ausência do povo organizado,
sustentará as decisões que se esperam do STF.
*Com a colaboração de Pedro Amaral
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