Valor Econômico
Cármen Lúcia compartilhou com a audiência as
razões pelas quais acontecia ali um julgamento histórico
Foi a ministra Cármen Lúcia que sacramentou a
condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, mas a solenidade que revestiu seu
voto não a impediu de compartilhar com a audiência as razões pelas quais
acontecia ali um julgamento histórico. Sem empolação, populismo ou hermenêutica
poética que se finda em si mesma.
A ministra mostrou que o golpismo não é regado apenas pelo ódio mas também pela ignorância. Valeu-se de um humor que não a afastou da Constituição. A reprodução do seu diálogo com uma senhora na farmácia é lapidar. “Ele se queixa de que seria neutralizado, mas a neutralização não é ruim”, teria dito a senhora. “Meu marido fez e ficou bem”. Ao explicar à sua interlocutora que ela confundira harmonização facial com um assassinato, a ministra respondeu-lhe: “Harmonização é para não ter problema de envelhecimento. Com a neutralização você não tem problema de envelhecimento porque morre antes”.
Num voto breve, que só durou duas horas
porque foi aparteada por Moraes e por Flávio Dino, Cármen não precisou se
afastar de sua missão de julgar de acordo com as provas para mostrar que sua
abundância é um sintoma de uma doença social. “As pessoas querem mostrar mais
do que ser. Elas fazem maquete e mostram, dão golpe e vão deixando rastros”,
disse.
As citações de Cármen Lúcia não se prestam a
exibir erudição, mas desmitificar o direito como um campo hermético, restrito
aos detentores de seu domínio. Ao iniciar seu voto, valeu-se de um poema de
Affonso Romano de Sant’Anna, dedicado ao jurista Raymundo Faoro, “Que país é
este”, para resumir o que estava em jogo. No trecho citado, o poeta diz: “Uma
coisa é um país, outra o aviltamento”. Resumiu, assim, nos primeiros cinco
minutos do voto, o crime contra o país sobre o qual se debruçavam.
Mais adiante, chegou em Victor Hugo, escritor
francês que enfrentou o golpismo bonapartista desde a infância. Para definir a
matéria daquele julgamento e o instrumento à disposição, citou um diálogo de
“História de um crime”, de 1877, entre um agente militar e uma autoridade.
Depois de o agente lhe apresentar um decreto, a autoridade reage:
“Mas isso é um golpe de estado"
“Vc acredita nisso?”
(...)
“Nós que somos defensores da Constituição a
afrontaríamos”
“Sim, mas é um golpe para o bem!”
“O mal feito pelo bem -continua sendo mau”
“Mesmo quando tem sucesso?”
“Principalmente! Por que se torna um exemplo
e vai se repetir”
“Mas a razão de Estado existe”
“Não, o que existe é a lei, o Estado de
direito”
Até na hora de conceder apartes, que o fez
com galhardia, para contrastar com o comportamento do ministro Luiz Fux, na
véspera, que falou por 12 horas, sem conceder um único, Cármen o fez com um
humor referenciado. “Que seja rápido porque passamos dois mil anos sem falar”,
disse a Moraes.
Com a apresentação do aparte-vídeo, com o
violento discurso do então presidente Jair Bolsonaro em 7/9/2021 contra Moraes,
o relator passou a desmontar o preâmbulo do voto de Fux, sem citá-lo, o de que
aquele julgamento serviria de paradigma para comarcas em todo o país. O relator
disse que a Corte precisaria proteger juízes contra prefeitos que incitem o
ódio dos munícipes sob a capa da “liberdade de expressão”.
Ainda que pertinente, dado o voto
estapafúrdio de Fux na véspera, a contundência habitual do relator acabaria por
interromper o enlevo da audiência de Cármen. O outro aparteador, Flávio Dino,
deu mais rima. Ao dizer que as provas foram mais abundantes do que aquelas do
golpe de 1964, disse que estas só foram conhecidas mais recentemente porque os
EUA abriram seus arquivos, numa referência velada ao precedente histórico da
intervenção americana.
Não foi a única menção de Dino aos EUA.
Mencionou o assassinato do ativista americano de extrema-direita Charlie Kirk e
o perdão da Casa Branca aos invasores do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 para
argumentar que não é a anistia que garante a pacificação de um país. O
assassinato de Kirk não reavivou o discurso de ódio apenas nos EUA, mas também
no Brasil.
Quando o discreto presidente da Turma,
Cristiano Zanin, começou a votar, não havia mais dúvida sobre a condenação.
Cármen Lúcia havia seguido o relator ao condenar todos os réus por todos os
crimes. Com Zanin a expectativa era em relação à sua análise das preliminares
que trariam à tona a defesa que fez do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Sobre o acesso às provas, ele disse ter trabalhado com até 100 terabytes (as da
trama golpista tiveram 70). E sobre o foro, se limitou a reafirmar seu
entendimento, prévio ao ingresso na Corte, sobre a competência do STF.
A presença do decano, Gilmar Mendes, e do
presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, simbolizou o respaldo da
colegialidade à Primeira Turma, duramente atacada na véspera durante o voto de
Fux. O ministro só voltou a se pronunciar durante a discussão da dosimetria.
Fux não arredou o pé de seu voto, mas se mostrou mais contido num tom muito
abaixo da véspera. Fez questão até de dizer que a ação antidemocrática de
Bolsonaro se deu no ambiente eleitoral, o que pode sinalizar que ele não
aliviará na inelegibilidade decidida pelo TSE e cujo recurso está sob sua
relatoria no Supremo.
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