O Globo
Se o Brasil quer ser protagonista na nova economia digital, precisa começar pela base
Outro dia, duas visões do Brasil se chocaram
na minha cabeça. De um lado, minha mãe, orgulhosa, exibindo seus novos domínios
digitais — Instagram,
Zapzap, TikTok.
Ela me manda áudios de cinco minutos, sabe mais da minha vida pelas redes do
que eu mesmo e se acaba de rir com vídeos virais. Detalhe: uma mulher
semianalfabeta, mas fluente no toque da tela. Do outro, em Salvador, a
formatura dos jovens do projeto CrIAtivos da Favela — parceria da Favela
Filmes, Instituto Heineken, Rede Bahia e governo estadual. Dezenas de talentos
concluindo uma formação de ponta, com o brilho de quem se sente pronto para o
mercado audiovisual.
Ver parentes e amigos celebrando foi emocionante. Eram duas pontas do mesmo país se conectando: minha mãe, que aprendeu a navegar, e aqueles jovens, que agora navegam rumo ao futuro.
Essas cenas me fizeram pensar no que
realmente significa inclusão digital. O mundo vive uma revolução sem sirene —
nem passeata, nem panelaço —, mas que muda tudo, em silêncio, por meio de
códigos e telas que reorganizam o trabalho, a comunicação e o poder. É a
revolução da inteligência artificial. E, como toda revolução, ela também
escolhe quem participa — e quem fica para trás. No Brasil, essa fronteira tem
um nome antigo: o CEP.
Enquanto as máquinas aprendem em velocidade
exponencial, muita gente desaprende a sonhar. Discutimos automação de empregos,
mas milhões ainda lutam por uma conexão que não caia, um celular que não trave
e uma formação que vá além do “arrasta pra cima”. É o retrato de um país que
importa chips de ponta, mas exporta gente desinformada. O risco é criar um novo
apartheid: a favela digital, onde milhões se tornam invisíveis para os
algoritmos que decidem o futuro.
Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2023, do
Comitê Gestor da Internet, 28 milhões de brasileiros seguem completamente
off-line. Entre os conectados, a maioria depende só do celular, o que limita o
acesso a cursos, empregos e novas economias digitais. Somos o país da
criatividade sem banda larga. A favela transborda ideias, mas o sistema exige
login e senha.
A inteligência artificial não é racista nem
classista — mas aprende com sociedades que são. E basta isso para reproduzir
seus vícios. No Brasil, algoritmos já decidem quem recebe crédito, quem é
chamado para entrevista e quem ganha visibilidade nas redes. O pobre e o preto
seguem fora do radar. É a nova invisibilidade: você existe, mas o sistema não
reconhece.
A favela, no entanto, nunca esperou convite
para o futuro. Ela o constrói na marra, transformando carência em invenção e
urgência em sabedoria. É a inteligência popular em ação, a criatividade como
política de sobrevivência. Iniciativas como o Digital Favela e o Vai na Web
mostram que é possível produzir tecnologia de ponta com propósito social. Falta
o Estado e o mercado entenderem que investir nisso não é filantropia, é
estratégia de desenvolvimento.
Democratizar a IA exige três pilares:
conectividade como direito básico; formação tecnológica popular, que ensine a
criar e auditar algoritmos; e fomento à inovação comunitária, valorizando quem
resolve problemas reais nos territórios.
Se o Brasil quer ser protagonista na nova
economia digital, precisa começar pela base. Não adianta sonhar com um Vale do
Silício tropical enquanto falta sinal no subúrbio. O futuro não pode ser luxo
de importação. Ou o país escreve essa revolução com todas as suas mãos, mentes
e sotaques — ou continuará figurante no filme que outros dirigem.

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