segunda-feira, 27 de outubro de 2025

A favela na era IA, por Preto Zezé

O Globo

Se o Brasil quer ser protagonista na nova economia digital, precisa começar pela base

Outro dia, duas visões do Brasil se chocaram na minha cabeça. De um lado, minha mãe, orgulhosa, exibindo seus novos domínios digitais — Instagram, Zapzap, TikTok. Ela me manda áudios de cinco minutos, sabe mais da minha vida pelas redes do que eu mesmo e se acaba de rir com vídeos virais. Detalhe: uma mulher semianalfabeta, mas fluente no toque da tela. Do outro, em Salvador, a formatura dos jovens do projeto CrIAtivos da Favela — parceria da Favela Filmes, Instituto Heineken, Rede Bahia e governo estadual. Dezenas de talentos concluindo uma formação de ponta, com o brilho de quem se sente pronto para o mercado audiovisual.

Ver parentes e amigos celebrando foi emocionante. Eram duas pontas do mesmo país se conectando: minha mãe, que aprendeu a navegar, e aqueles jovens, que agora navegam rumo ao futuro.

Essas cenas me fizeram pensar no que realmente significa inclusão digital. O mundo vive uma revolução sem sirene — nem passeata, nem panelaço —, mas que muda tudo, em silêncio, por meio de códigos e telas que reorganizam o trabalho, a comunicação e o poder. É a revolução da inteligência artificial. E, como toda revolução, ela também escolhe quem participa — e quem fica para trás. No Brasil, essa fronteira tem um nome antigo: o CEP.

Enquanto as máquinas aprendem em velocidade exponencial, muita gente desaprende a sonhar. Discutimos automação de empregos, mas milhões ainda lutam por uma conexão que não caia, um celular que não trave e uma formação que vá além do “arrasta pra cima”. É o retrato de um país que importa chips de ponta, mas exporta gente desinformada. O risco é criar um novo apartheid: a favela digital, onde milhões se tornam invisíveis para os algoritmos que decidem o futuro.

Segundo a pesquisa TIC Domicílios 2023, do Comitê Gestor da Internet, 28 milhões de brasileiros seguem completamente off-line. Entre os conectados, a maioria depende só do celular, o que limita o acesso a cursos, empregos e novas economias digitais. Somos o país da criatividade sem banda larga. A favela transborda ideias, mas o sistema exige login e senha.

A inteligência artificial não é racista nem classista — mas aprende com sociedades que são. E basta isso para reproduzir seus vícios. No Brasil, algoritmos já decidem quem recebe crédito, quem é chamado para entrevista e quem ganha visibilidade nas redes. O pobre e o preto seguem fora do radar. É a nova invisibilidade: você existe, mas o sistema não reconhece.

A favela, no entanto, nunca esperou convite para o futuro. Ela o constrói na marra, transformando carência em invenção e urgência em sabedoria. É a inteligência popular em ação, a criatividade como política de sobrevivência. Iniciativas como o Digital Favela e o Vai na Web mostram que é possível produzir tecnologia de ponta com propósito social. Falta o Estado e o mercado entenderem que investir nisso não é filantropia, é estratégia de desenvolvimento.

Democratizar a IA exige três pilares: conectividade como direito básico; formação tecnológica popular, que ensine a criar e auditar algoritmos; e fomento à inovação comunitária, valorizando quem resolve problemas reais nos territórios.

Se o Brasil quer ser protagonista na nova economia digital, precisa começar pela base. Não adianta sonhar com um Vale do Silício tropical enquanto falta sinal no subúrbio. O futuro não pode ser luxo de importação. Ou o país escreve essa revolução com todas as suas mãos, mentes e sotaques — ou continuará figurante no filme que outros dirigem.

 

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