Correio Braziliense
Na véspera da aposentadoria, ministro votou a
favor da descriminalização do aborto voluntário até 3 meses de gestação. O caso
estava parado desde 2023; liminar que autorizava enfermeiros realizarem abortos
foi derrubada
Prêmio Nobel de Literatura de 2022, recebido
aos 82 anos, a escritora francesa Annie Ernaux tinha 23 anos, em 1963, quando
engravidou de um relacionamento sem expectativas. Jovem universitária, sua vida
virou de ponta-cabeça. Sem contar para a família, que vivia no interior da França,
tomou a dramática decisão de fazer um aborto. Seu livro O Acontecimento
(Fósforo Editora), relata sua difícil e solitária trajetória em busca de um
aborto, que era ilegal na França.
Annie Ernaux levou 30 anos para relatar essa história. “Faz uma semana que comecei esta narrativa, sem nenhuma certeza de continuá-la. Só queria testar meu desejo de escrever sobre isso”, registrou em seu diário. “Se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”. Houve violência médica e julgamento moral por sua decisão.
A questão do aborto não é fácil para ninguém,
seja como drama humano, seja como matéria jurídico-política. Ex-presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), às vésperas de deixar a Corte, o ministro Luís
Roberto Barroso levou dois anos para solicitar o julgamento extraordinário de
uma ação do PSol de 2017, que pede a descriminalização do aborto com até 12
semanas de gravidez. O julgamento foi iniciado em 2023, com o voto favorável da
ministra Rosa Weber, no seu último dia na presidência da Corte.
Barroso pedira destaque para a votação, o que
paralisou o julgamento, somente retomado na sexta-feira, quando solicitou ao
presidente do Supremo, ministro Edson Fachin, que voltasse a plenário virtual.
Foram 104 semanas de espera: “A interrupção da gestação deve ser tratada como
uma questão de saúde pública, não de direito penal”, afirmou Barroso, ao
acompanhar o voto de Weber.
“A discussão real não está em ser contra ou a
favor do aborto. É definir se a mulher que passa por esse infortúnio deve ser
presa”, disse. Logo após o voto de Barroso, Gilmar Mendes pediu destaque ao
julgamento virtual. Com isso, a discussão será retomada nas sessões
presenciais. Por ora, está 2 x 0.
Na mesma sessão, a maioria do STF derrubou
liminar de Barroso que autorizava enfermeiros atuarem em aborto legal. Gilmar
Mendes abriu divergência e os ministros consideram que não havia urgência para
decisão individual, em meio a discussões sobre descriminalização do aborto. O
julgamento teve origem em ação protocolada pelo PSOL, em 2017, que questionava
a criminalização com base nos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940.
Segredo de família
O julgamento combina saúde pública,
legislação restritiva e divisão de opiniões na sociedade. É rara a família que
não tenha passado por esse trauma. O aborto substituiu a virgindade como tabu
no ideário familiar cristão, mas, mesmo assim, é praticado quando necessário e
mantido em segredo. O Código Penal de 1940 considera o aborto um crime, com
exceção das seguintes situações: gravidez resultante de estupro, risco de morte
para a gestante e anencefalia fetal.
Entretanto, o acesso ao aborto legal é
dificultado por fatores religiosos e falhas na rede de apoio. E há risco de
retrocessos na legislação, por causa da composição conservadora do Congresso. O
Projeto de Lei 1.904/24, em tramitação na Câmara, por exemplo, propôs equiparar
o aborto após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo em casos de
estupro. Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa proibir o aborto em
qualquer situação, incluindo as atualmente permitidas, foi aprovada na Comissão
de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, em 2024.
É um descolamento da vida real. Apesar da
criminalização, o aborto inseguro é uma realidade no Brasil e um problema de
saúde pública, sendo um dos maiores causadores de mortes maternas. O número de
abortos legais realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) aumentou 71%, entre
2018 e 2023, com o crescimento do acesso em casos de estupro. Em maio de 2025,
porém, apenas 1,1% das meninas-mães tiveram acesso aos serviços de aborto legal
para vítimas de violência.
A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), de 2021,
mostrou que uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez
pelo menos um aborto no Brasil. O levantamento foi realizado em novembro de
2021, ouviu 2 mil mulheres em 125 municípios. Mais da metade (52%) do total de
mulheres que abortaram tinha 19 anos de idade ou menos, quando fez seu primeiro
aborto.
Desse contingente (abaixo de 19 anos), 46%
eram adolescentes entre 16 e 19 anos, e 6% meninas entre 12 e 14 anos. Pela
legislação, praticar sexo ou atos libidinosos com menor de 14 anos é
considerado crime de estupro de vulnerável, mesmo havendo consentimento da
criança, sob pena de prisão de oito a 15 anos.
Em 2021, 21% das mulheres que abortaram
realizaram um segundo procedimento, chamado aborto de repetição. Entre elas,
estão predominantemente as mulheres negras. Parte das entrevistadas (39%) usou
medicamento para interromper a gestação; 43% das mulheres foram hospitalizadas
para finalizar o aborto. O uso de misoprostal, cuja venda é restrita, reduziu
os casos de mortalidade nos abortos induzidos.
A opinião pública brasileira sobre o aborto é dividida e complexa. Pesquisas de 2023 e 2025 mostraram que a maioria dos brasileiros é contra a legalização do aborto de forma geral, mas favorável nas situações previstas em lei, como estupro. Pesquisa da Quaest, de dezembro de 2023, indicou que, embora a maioria seja contra a legalização, 84% dos brasileiros não desejam que mulheres que abortam sejam presas.
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