terça-feira, 14 de outubro de 2025

No tempo em que Cartola vendia seus sambas a cantores do rádio, por Alvaro Costa e Silva

Folha de S. Paulo

Livro do pesquisador Carlos Didier mapeia o surgimento do gênero no Rio

Mario de Andrade não apreciava a revolução dos jovens pretos de classe baixa

Expoente da alta sociedade carioca, o cantor Mario Reis tinha medo de subir o morro de Mangueira. Mas precisava falar com o pedreiro Cartola, queria lhe comprar um samba. Contratou um intermediário, o guarda municipal Clóvis, que se dizia primo do compositor.

"E eu vou vender música, rapaz? Música se vende? Esse sujeito tá maluco e você é outro", disse Cartola. Conversa vai, conversa vem, acabou cedendo: "Vou pedir 50 mil réis". "Pede 300 mil que ele dá", garantiu o falso parente. Por não se adaptar à voz de Mario Reis, "Que Infeliz Sorte" foi gravado em 1929 por Francisco Alves, outro exímio negociador de sucessos.

Essa é uma das histórias contadas no livro recém-lançado "Canção do Chão do Brasil", com o qual Carlos Didier, biógrafo de Noel Rosa e Orestes Barbosa, dá prosseguimento à tarefa de mapear o surgimento do samba batucado, em meados dos anos 1920, primeiro no Estácio e logo em Mangueira, responsável por formatar o gênero como o conhecemos até hoje. Uma revolução de jovens pretos da classe baixa que, registre-se, não teria sido possível sem a participação dos canários Mario Reis e Francisco Alves.

Didier ouviu fontes primárias, pesquisou gravações e partituras originais, cartas, depoimentos, reportagens de época e processos criminais. Os compositores, ritmistas e pastoras de Mangueira, revela ele, eram tratados como bandidos pela polícia, não raras vezes conduzidos à delegacia e enquadrados em "crime de samba".

O autor avança no tempo com as trajetórias de Geraldo Pereira e Ataulfo Alves, entre outros, até chegar à parceria de Vinicius de Moraes com Baden Powell, na década de 1960. Dedica boas páginas a Mario de Andrade e sua conflituosa relação com a música urbana carioca. Tendo ouvidos de lata para Cartola e Noel Rosa, o modernista de São Paulo criticava "a carne para alimento de rádios e discos, elemento de namoro e interesse comercial". Para ele, a maior parte da produção carnavalesca era "chata, plagiária, falsa como as canções americanas de cinema".

 

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