Folha de S. Paulo
Kleber Mendonça Filho conta histórias
paralelas, como a da Perna Cabeluda, além da trama central do enredo
Filme faz passeio felliniano pela paisagem
humana e urbana do Recife e expõe faceta empresarial na ditadura
Há muito o que falar sobre "O
Agente Secreto", de Kléber Mendonça Filho, melhor diretor no
festival de Cannes —que
também premiou o ator Wagner Moura,
protagonista da história. Falarei um pouco.
O filme não se concentra numa narrativa central, embora ela exista, mas cercada de outras situações e derivas, uma delas marcante, que nos acompanha como uma espécie de filme B dentro filme. É a história, em clima fantástico e popular, da Perna Cabeluda. Isso mesmo, uma perna que aparece na barriga de um tubarão, é cercada de mistério, roubada do Instituto Médico Legal e transformada pelo disse que disse do povo e pela imprensa num ser com vida própria, que faz aparições violentas em horas noturnas na cidade.
A Perna Cabeluda é um desses mitos inflados
por antigos jornais populares sensacionalistas. Em 1975, por exemplo, época do
filme (que se passa em 1977) o Notícias
Populares, de São Paulo, atraía leitores com a história do
Bebê-Diabo.
O jornal diário, aliás, desempenha papel de
destaque em "O Agente
Secreto", não somente pela Perna Cabeluda, mas por servir como
registro noticioso, precário que seja, de acontecimentos diretamente ligados à
trama.
Dos filmes de ficção do diretor, este parece
ser o que mais o aproxima, digamos assim, de um Fellini no
Recife. O longa, a propósito, foi lançado depois de "Retratos
Fantasmas", uma incursão memorialística pelos caminhos da presença
do cinema na
vida de sua cidade natal.
Em "O Agente Secreto" temos um
expressivo passeio pela paisagem humana, social e urbana daquele Recife de
final dos anos 1970 —aspecto essencial ao filme. Mendonça não coloca dentaduras
e tampouco aplica injeções emagrecedoras em seus personagens. Trata-os com um
realismo felliniano, em que se combinam afeto, repulsa, humor e vida.
Sobre as relações com a ditadura, a história
é mais oblíqua, por não tratar diretamente do núcleo militar, ressaltando a
capilaridade do arbítrio policialesco, o ambiente de tensões e o lado
empresarial, privado e estatal, do regime —estávamos sob Geisel, que aparece
lá, no retrato oficial, pendurado na parede.
Kleber
Mendonça Filho chamou a atenção de início com seu ótimo "O Som
ao Redor", de 2012. Depois vieram "Aquarius", em 2016, e
"Bacurau", em 2019. Gosto dos dois, mais de
"Bacurau", que acabou embrulhado pelo clima de polarização da época,
animado pelo fato de o diretor e sua estrela Sonia Braga terem usado ocasiões
públicas proporcionadas pelo filme para divulgar o "Lula livre",
liderado pelo PT.
Atacado por antipetistas e defendido pela
esquerda, "Bacurau" foi predominantemente analisado no contexto de
questões cinemanovistas e da resistência ao imperialismo americano. Para alguns
reavivou o tema, para outros o retomou de maneira anacrônica. Não vejo assim.
Diria que sua fabulação distópica da violência arbitrária evoca o cinema
marginal e se aproxima mais do que vemos em operações policiais em favelas do
Rio ou em situações em Gaza do que do velho imperialismo.
De todo modo, percebo (e gosto) de alguma coisa que me parece coxeante nos filmes de Kleber Mendonça. Talvez por isso tenha ficado siderado pela expressiva sequência de uma longa caminhada do personagem Alexandre (Carlos Francisco) pelas ruas da cidade.

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