sexta-feira, 10 de outubro de 2025

O Brasil dos invisíveis. Por Pablo Ortellado

O Globo

Sob as ruidosas e intolerantes guerras culturais, resiste um substrato majoritário, comedido e independente

No último domingo, O GLOBO publicou uma pesquisa da More in Common que apresenta uma segmentação da população brasileira em seis grupos ideológicos e de valores. Essa segmentação desvela uma estrutura subjacente da opinião que permite olhar a divisão política no Brasil com muito mais nuance e granularidade.

A segmentação usa técnicas estatísticas de aglomeração de padrões de resposta para encontrar grupos ideologicamente coerentes, com um comportamento previsível para mais de 150 perguntas. Esses grupos são chamados de “segmentos”.

Nos extremos do espectro ideológico, temos dois segmentos muito coerentes e engajados com aproximadamente 5% da população cada um. Eles participam de protestos, discutem política com os amigos e compartilham notícias políticas nas redes sociais. Ao segmento que está à esquerda, demos o nome de “Progressistas Militantes”; ao que está mais à direita, de “Patriotas Indignados”.

Esses dois segmentos ativistas pequenos são respaldados por dois segmentos mais numerosos, mas menos engajados e um pouco menos coerentes. Na esquerda, chamamos esse grupo de “Esquerda Tradicional” (14% da população) e, na direita, de “Conservadores Tradicionais” (21%).

Espremida entre esses segmentos, está a maioria da população, repartida em dois segmentos “invisíveis”, com 27% cada um. Eles são invisíveis porque suas posições são abafadas pelo hiperativismo dos segmentos mais polarizados. O primeiro desses segmentos são os “Desengajados”, um grupo que evita falar de política e tende a votar em branco, nulo ou não ir votar. Ao seu lado, estão os “Cautelosos”, um grupo um pouco menos desengajado e um pouco mais conservador.

Os dois têm posições moderadas sobre quase todos os assuntos, muito menos moldada pelas posições firmes e coerentes dos segmentos ideológicos do campo progressista ou conservador. Sua visão de mundo, porém, não é avessa à política — é apenas avessa ao jeito combativo e intolerante de fazer política nos dias de hoje.

Em geral, as pesquisas de opinião sobre temas polarizados apresentam os dados com um recorte separando eleitores de Lula e eleitores de Bolsonaro. Tomemos um exemplo que tiramos da nossa pesquisa. Entre os eleitores de Bolsonaro, 68% acham que pessoas de bem devem ter direito à posse de arma de fogo. Entre os eleitores de Lula, esse apoio é de apenas 34%. A apresentação dos dados nos sugere que o Brasil — dividido em dois grupos de eleitores mais ou menos do mesmo tamanho — tem duas atitudes opostas com relação à posse de arma de fogo. A grande maioria dos eleitores de Bolsonaro seria a favor e a grande maioria dos eleitores de Lula contra.

Mas, quando olhamos para os segmentos, vemos uma distribuição mais precisa. Progressistas e Patriotas têm posições muito firmes e extremas — 9% e 93%, respectivamente, concordam com a posse de armas. Esquerda e Conservadores Tradicionais têm posições um pouco menos extremas, mas ainda bastante marcadas (22% e 81%). Os dois segmentos invisíveis têm posições bastante intermediárias (Desengajados 38%, Cautelosos 55%).

Lido dessa outra maneira, não vemos o Brasil dividido em dois grupos que votaram diferente, mas em três grandes grupos ideológicos: um grupo progressista contrário à posse de arma de fogo, um grupo conservador claramente a favor e uma maioria da população com posições moderadas e independentes. Em outras palavras, quando recortamos a opinião dos brasileiros pelo voto, dissolvemos e “escondemos” a posição independente dos invisíveis sob a orientação mais marcada dos grupos ideológicos. Nas redes sociais e no debate público acontece a mesma coisa: como falam mais e falam mais alto, os grupos polarizados abafam a voz da maioria.

A pesquisa mostra um Brasil suficientemente polarizado para que a opinião de toda a população possa ser estruturada em seis segmentos que se comportam de maneira consistente e previsível. Mas o país não está suficientemente polarizado para que essa dinâmica tenha capturado os segmentos invisíveis que compõem a maior parte da população. Como essas divergências de opinião vêm acompanhadas de muita intolerância política, é um alento descobrir que, sob as ruidosas e intolerantes guerras culturais, resiste um substrato majoritário, comedido e independente.

 

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