quinta-feira, 30 de outubro de 2025

O que a mídia pensa | Editoriais | Opiniões

Operação policial no Rio foi resultado de planejamento

Por O Globo

Letalidade alta deve ser investigada, mas houve preocupação das autoridades em preservar moradores

As polícias Militar e Civil do Rio correram enorme risco ao entrar no quartel-general do Comando Vermelho durante a megaoperação de terça-feira nos complexos do Alemão e da Penha. Os traficantes demonstraram resistência incomum — a ponto de, pela primeira vez, usarem drones para lançar bombas nos agentes —, matando quatro policiais e ferindo outros 15. Os policiais prenderam 113 suspeitos — entre eles lideranças do CV, não apenas do Rio — e apreenderam mais de cem armas. É revelador que a operação, a mais letal na história do Rio, tenha deixado mais de uma centena de mortos. Mas ela foi resultado de planejamento para tentar preservar os moradores e encurralar os traficantes nas matas, onde ocorreu a maior parte dos confrontos.

O número oficial de mortos chegou a 121 na manhã de ontem. Quando o dia amanheceu, havia dezenas de corpos enfileirados numa praça da Penha, retirados da mata pelos moradores. As autoridades afirmam que todas as vítimas fatais eram vinculadas ao tráfico — além dos quatro policiais, dizem que quatro inocentes foram atingidos.

O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, descreveu o quadro encontrado como “cenário de guerra”. “O que as polícias do Rio enfrentam não é mais questão de segurança pública, é uma guerra irregular, assimétrica, uma questão de defesa e de soberania nacional”, disse. É um argumento que não pode ser desprezado. Ao mesmo tempo, as autoridades não conseguiram prever em seu planejamento a reação feroz dos criminosos, que levou pânico a praticamente todas as regiões do Rio, com sequestros de ônibus e bloqueios de vias, paralisando a cidade.

Será preciso apurar se, nos confrontos, houve excessos da polícia. Eventuais denúncias devem seguir as vias institucionais: corregedorias internas e Ministério Público. Foi um exagero, por isso, o pedido do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), por mais informações ao Estado do Rio. Cabe aos estados desenvolver suas políticas de segurança. “O STF não tem capacidade institucional para lidar com problemas técnicos, complexos e multifatoriais como os que envolvem a segurança pública”, afirma o jurista Gustavo Binenbojm, da Uerj. “Nem legitimidade democrática para fazer escolhas de políticas públicas, que cabem aos governantes eleitos. O papel que o Supremo pode ter é na supervisão e monitoramento das polícias, por intermédio dos órgãos encarregados do controle externo.”

Num primeiro momento, ao analisar a ação conhecida como ADPF das Favelas, o Supremo impôs restrições exageradas que engessaram o trabalho da polícia. Ao julgá-la em abril, acertadamente reduziu as restrições, estabelecendo medidas de monitoramento. Seria importante não haver retrocesso.

O que faltou foi integração com as forças federais, em especial por ser a maior operação já feita contra uma facção no Rio. Esperava-se que todos estivessem juntos numa ação que envolvia riscos evidentes para os moradores das favelas. Infelizmente, o que se viu inicialmente foi a troca de acusações entre Rio e Brasília. Só ontem o governo federal prometeu criar um escritório conjunto para ampliar a cooperação. É fundamental que presidente, ministros, governador e Judiciário consigam, nas próximas iniciativas, transmitir um recado inequívoco de união e ação conjunta capaz de extirpar do Brasil a chaga do crime organizado.

‘Taxa das blusinhas’ prejudicou mais pobres sem gerar renda nem emprego

Por O Globo

Consumidor perdeu acesso a importados, revela estudo. Política deve ser reavaliada à luz dos fatos

A taxação de importações de bens de consumo de até US$ 50, apelidada “taxa das blusinhas”, foi apresentada no ano passado como necessária para proteger segmentos da indústria nacional, de forma a gerar mais empregos e renda. Não fez uma coisa nem outra, de acordo com estudo da LCA Consultores. Ainda prejudicou a população de baixa renda, que não viaja para fora do país e perdeu acesso a produtos importados a preços baixos.

As importações de baixo valor caíram 43%, segundo o sistema da Receita Federal que facilita o desembaraço aduaneiro desses produtos. Para adquirir o mesmo bem, o consumidor passou a pagar mais caro, ficando com menos dinheiro disponível para outras despesas. Na verdade, foi induzido a desistir da compra, comprova pesquisa realizada entre 1.500 consumidores das faixas de renda C, D e E. A proporção dos que desistiram foi de 35% em agosto de 2024, 39% em outubro e 45% em abril deste ano. Os mais prejudicados, segundo o levantamento, foram os mais pobres, 80% dos quais buscavam no comércio eletrônico produtos inexistentes no Brasil. Importados voltaram a ser uma regalia disponível só aos mais abastados, que viajam para o exterior ou têm recursos para pagar a taxa.

Os pesquisadores examinaram também o efeito da taxação na geração de empregos na indústria e no comércio. No varejo e na produção de vestuário e acessórios, os postos de trabalho cresceram apenas 0,9%, bem abaixo da média de 3% na economia como um todo.

Seria possível argumentar que os cofres públicos receberam grande receita extra. Mas nem isso aconteceu. A “taxa das blusinhas” rendeu um aumento de R$ 265 milhões por mês à arrecadação federal, ou apenas 0,08%. Só que, como os estados cobram ICMS dessas importações, a retração fez com que perdessem até R$ 258 milhões mensais de arrecadação. O saldo foi uma receita tributária mensal extra de irrisórios R$ 7 milhões. Sem falar no incentivo intrínseco que a taxação adicional traz àqueles que tentam evitá-la por meio do contrabando.

Com o advento do comércio eletrônico, houve uma explosão mundial no acesso a importados de baixo custo para a população de baixa renda. Isso levou vários países a adaptar sua política tributária. União Europeia (UE), Chile, Austrália, Argentina e Tailândia eliminaram a isenção de impostos sobre o consumo desses produtos, mas sem taxar as importações. Era o mesmo sistema que vigorava no Brasil antes da “taxa das blusinhas”: pagava-se ICMS, mas não a tarifa alfandegária. Da forma como está, a taxação no Brasil varia de 40% a 44%, ante 21% na UE e na Argentina, 19% no Chile, 10% na Austrália e 7% na Tailândia. Com a isenção, a alíquota brasileira voltaria a um patamar compatível, já que o ICMS varia entre 17% e 20%. Como toda política pública, a “taxa das blusinhas” deveria ser objeto de reavaliação à luz desses fatos.

Gasto público desordenado afeta acesso a livros didáticos

Por Folha de S. Paulo

MEC pede ao governo acréscimo de cerca de R$ 1,4 bilhão para encomenda integral dos exemplares

Orçamento insustentável sob Lula comprime programa essencial na educação; dados os indicadores pífios no setor, tal falha inaceitável

A expansão desordenada de gastos desde o início do atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não impacta apenas a política monetária, com juros escorchantes para controlar a inflação, mas políticas públicas essenciais.

É o caso do acesso a livros didáticos na rede pública de ensino. Para que as editoras consigam entregar as obras até o início do ano letivo de 2026, as encomendas deveriam ter sido feitas até agosto. Mas, como revelou a Folha, em julho ainda não havia pedido para parcela considerável dos cerca de 240 milhões de exemplares necessários.

Logo após a publicação da reportagem, o Ministério da Educação afirmou ter conseguido a verba para suprir integralmente a demanda. Ao final de agosto, contudo, os livros não haviam sido comprados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão ligado ao MEC responsável pela aquisição.

Agora, faltando apenas dois meses para o fim do ano, o problema continua, e a pasta ainda está em busca de recursos.

Há cerca de R$ 2,3 bilhões reservados aos livros, mas o MEC pede R$ 3,7 bilhões —as obras só para o ensino médio custariam em torno de R$ 1,4 bilhão.

Em ofício entregue à equipe econômica do governo na semana passada, o FNDE afirma que o atraso no repasse "compromete, também, a entrega nacional dos exemplares em tempo hábil para utilização pelos alunos". Ressalte-se que comunicado de teor semelhante já havia sido encaminhado pelo órgão em agosto.

Assim, a pasta foi obrigada a fazer escolhas. Em julho, das cerca de 59 milhões de obras para todas as disciplinas dos anos iniciais do ensino fundamental, foram encomendadas 23 milhões só para português e matemática.

Nenhum dos exemplares do tipo consumível (apostilas) de história, geografia e ciências, do 1º ao 3º ano, e de artes, do 1º ao 5º ano, havia sido adquirido. Para os anos finais dessa etapa (6º ao ao 9º), também só português e matemática foram contemplados.

Considerando os indicadores sofríveis da educação brasileira, tal incompetência é inaceitável. No Estudo Internacional de Tendências em Matemática e Ciências de 2024, o país ficou entre os últimos colocados na avaliação das duas disciplinas no 4º e no 8º ano do ensino fundamental e foi superado pelo vizinho Chile.

O governo Lula 3 promoveu expansão inaudita e insustentável do gasto federal, em especial com aposentadorias e outros benefícios sociais. O resultado é o estrangulamento progressivo de programas de execução não obrigatória no Orçamento, caso do Programa Nacional do Livro Didático, cujos recursos vêm sendo comprimidos desde 2023.

É ilusório imaginar que ampliar despesas com a seguridade será eficaz no combate à pobreza se não houver equilíbrio fiscal. Cedo ou tarde, inflação, juros, baixo crescimento econômico e cortes em serviços públicos incidirão sobre os estratos carentes.

Crise hídrica em SP avança da preocupação para o alerta

Por Folha de S. Paulo

Redução da pressão, prevista para até 16 horas diárias, afeta abastecimento na região metropolitana

Aproveitar água de esgoto tratada para expandir oferta nos mananciais, por ora em estudo, é um exemplo a ilustrar a magnitude do desafio

A sete semanas para o começo do verão, quando o consumo de água cresce invariavelmente, a crise hídrica no estado de São Paulo está longe de arrefecer. Pelo contrário: baixos índices nos reservatórios e ações de contenção já adotadas, ou em planejamento, tornam o cenário cada vez mais incerto.

No interior, cidades como Americana e Amparo decretaram emergência hídrica e buscam fontes alternativas de captação. A estiagem afeta hidrelétricas, como na bacia do Rio Grande, que opera com baixa capacidade.

O sistema Cantareira, que abastece 9 milhões de pessoas na região metropolitana, registrou o menor nível (29,5%) para setembro em dez anos. Se o fantasma do racionamento que assolou a Grande São Paulo em 2014-15 ainda parece distante, especialistas consideram que o botão de alerta deve ser acionado rapidamente.

A redução de pressão por dez horas diárias, das 19h às 5h, virou falta d’água para muitos moradores, principalmente para os que têm baixa ou nenhuma capacidade de armazenamento em casa e vivem em bairros altos e distantes dos centros de distribuição.

Tais medidas de restrição teriam resultado em uma economia recorde, afirma o governo Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em faixas variáveis, a gestão planeja reduzir a pressão da água por até 16 horas como uma das formas de evitar um atemorizante rodízio.

Já a Sabesp, companhia responsável pelo abastecimento no estado, também teria batido um recorde, mas o de retirada de água do sistema, segundo dados oficiais levantados por técnicos do Instituto Água e Saneamento.

Pelo cálculo, a captação superou a média dos últimos oito anos —o que indicaria mais consumo, perdas na distribuição ou uma combinação dos dois. A Sabesp, porém, atribui o crescimento à expansão da população atendida e a ajustes operacionais.

Uma coisa ou outra, o fato é que chuvas mais intensas sobre os reservatórios, o que se espera ainda nesta primavera, serão essenciais para trazer algum alento.

Enquanto isso, a saída imediata segue a mesma: uso consciente da água, com campanhas publicitárias massivas, e redução de pressão equilibrada, que possa ao menos minimizar os transtornos.

Já para os próximos anos, os efeitos da mudança climática exigem trocar as tubulações para evitar desperdícios, fomentar o reúso, proteger os mananciais e integrar as bacias, além de um planejamento urbano corajoso.

Aproveitar a água de esgoto tratada para expandir a oferta, por ora em estudo, é só um exemplo a ilustrar a magnitude do desafio.

Rio é refém do crime e da inépcia

Por O Estado de S. Paulo

Ao validar uma operação policial desarticulada e sangrenta, Cláudio Castro reafirma o fracasso de um modelo de segurança pública que há décadas transforma o Rio em praça de guerra

Exatos 32 anos e 2 meses depois da chacina de Vigário Geral, o País voltou a se chocar com a imagem dantesca de dezenas de corpos enfileirados no meio da rua no Complexo da Penha, conjunto de favelas na zona norte do Rio de Janeiro. Levados até o local pela própria população, os cadáveres são de uma parcela dos mais de cem mortos durante uma operação policial deflagrada para cumprir mandados contra integrantes do Comando Vermelho (CV) – a mais letal da história do Estado. Esse arco temporal, materializado por registros fotográficos tristemente semelhantes, resume o absoluto fracasso de um modelo de segurança pública baseado quase exclusivamente no confronto aberto entre policiais e criminosos.

Não há dúvida de que as polícias, como forças do Estado detentor do monopólio da violência, têm o dever de enfrentar o crime, inclusive com emprego de força letal quando indispensável. Tampouco há controvérsia quanto à necessidade de se cumprir ordens judiciais. O busílis é que o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), não tem um projeto de segurança pública – ele apenas repete, com trágicos resultados, a velha fórmula das incursões episódicas. Basta examinar o saldo da operação de anteontem: mais de uma centena de mortos, entre os quais quatro policiais; dezenas de feridos; a população do Rio, literalmente, paralisada pelo pânico; economia fechada; vias bloqueadas por criminosos; e, para coroar a inépcia, o principal alvo da operação, Edgard Alves de Andrade, vulgo “Doca”, foragido. Considerar isso um sucesso é uma afronta à razão.

A falta de coordenação foi gritante. A prefeitura do Rio nem sequer foi informada de que uma ação policial daquela magnitude seria deflagrada. O caos que se seguiu expôs a irresponsabilidade do governo estadual. À luz dos fatos, é inegável que a operação foi mais do que um fracasso: foi a reafirmação de que o governo do Rio não controla o próprio território do Estado e, é forçoso dizer, nem as forças de segurança sob seu comando, que deveriam se pautar pela legalidade em suas intervenções. São inúmeros os indícios que sugerem que houve execuções sumárias de suspeitos.

Em entrevista coletiva, o sr. Castro afirmou ter “muita tranquilidade” para elogiar o resultado da operação, garantindo, sem qualquer comprovação, que, “de vítima ontem (dia 28 passado), só tivemos esses policiais”. A declaração, além de leviana, ofende a inteligência da sociedade. É inaceitável que o chefe do Executivo fluminense valide, sem perícia e sem identificação das vítimas, uma operação que produziu dezenas de mortos em circunstâncias ainda obscuras. A polícia, em vez de preservar as cenas dos supostos confrontos, permitiu o desaparecimento de provas fundamentais para a elucidação dos fatos. Isso não é prática de Estado decente, comprometido com o império da lei.

O que se viu é um Rio refém não apenas do crime organizado, como também de um governo incompetente, incapaz de conceber uma única ideia nova para enfrentar o mais velho – e grave – problema do Estado. Castro, sabe Deus por quais razões, dobrou a aposta em uma política de segurança comprovadamente fracassada há pelo menos três décadas, sustentada que está em incursões policiais que produzem cadáveres aos borbotões, inclusive de policiais, sem que isso traga paz duradoura para os cidadãos fluminenses. Operações policiais pontuais servem ao cumprimento de mandados ou ao combate a criminosos em flagrante delito. A retomada de territórios dominados pelo crime organizado, isso, sim, urgente e necessário, exige inteligência, estratégia, cooperação e espírito público. O atual governo do Rio não demonstra possuir nenhum desses atributos.

Há caminhos alternativos que podem ser bem-sucedidos. A Operação Carbono Oculto, que atingiu as finanças do PCC em São Paulo, é exemplo de como o Estado pode enfraquecer o crime organizado com inteligência e articulação institucional entre entes federativos. O governador, porém, preferiu explorar politicamente a barbárie, atribuindo ao governo federal responsabilidades que, à luz da Constituição, são dele. A divergência entre Castro e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pode até atender a seus interesses eleitorais. Mas quem precisa ser atendida é a população aterrorizada que esse senhor supostamente governa.

A tempestade da desigualdade climática

Por O Estado de S. Paulo

Relatório da ONU e da Universidade de Oxford mostra que pobreza não é um problema socioeconômico isolado, mas conectado a pressões e instabilidades planetárias – como as mudanças do clima

Em todo o mundo, há cerca de 1,1 bilhão de pessoas vivendo em condições de “pobreza multidimensional aguda” – aquela que define a pobreza não só pela falta de renda, mas por um conjunto de privações, como saúde, educação, habitação, saneamento básico, energia elétrica, água potável e acesso à informação. Desse número gigantesco, quase 900 milhões de pessoas, ou cerca de 80%, estão diretamente expostas a riscos climáticos, por viverem em regiões mais suscetíveis ao impacto, por exemplo, do calor extremo, inundações, seca ou poluição do ar. Esse cruzamento entre índices de pobreza e risco climático, feito de maneira inédita, é um dos méritos de um relatório divulgado pela ONU e pela Iniciativa Pobreza e Desenvolvimento Humano de Oxford, da Universidade de Oxford.

Intitulado Global Multidimensional Poverty Index 2025 (“Índice de Pobreza Multidimensional Global de 2025 – Dificuldades sobrepostas: pobreza e riscos climáticos”), o documento não só reafirma o quanto a pobreza está longe de ser um problema socioeconômico isolado, como reforça o que a ciência vem alertando, isto é, sua conexão direta com instabilidades planetárias. Afinal, efeitos climáticos extremos são parte da rotina dos mais vulneráveis e integram o conjunto de alertas de especialistas para tentar tornar mais ambiciosos os compromissos em negociação durante a COP-30, em Belém. “Ninguém está imune aos efeitos das mudanças climáticas”, afirmou Haoliang Xu, porta-voz do estudo. “Mas são os mais pobres entre nós que enfrentam o impacto mais severo.”

A constatação reforça uma verdade incômoda: o aquecimento global é também um problema de desigualdade. A pobreza e o clima formam um círculo perverso, pois a escassez de recursos obriga milhões a depender de atividades frágeis, como a agricultura de subsistência e o trabalho informal, justamente as mais afetadas por eventos extremos. Quando secas e enchentes se alternam com frequência, tanto comprometem o sustento quanto destroem o pouco que resta. O relatório mostra a África Subsaariana e o sul da Ásia como regiões especialmente críticas. Mas o Brasil também faz parte desse retrato. Enchentes no Rio Grande do Sul, deslizamentos em Petrópolis e no litoral paulista, estiagens no Nordeste e queimadas na Amazônia revelam um mesmo padrão: são os mais pobres que mais perdem.

Reconhecer essa conexão contribui também para qualificar o debate, reduzindo o peso de teorias exóticas como a do “racismo ambiental”, segundo a qual pessoas negras estão mais expostas às mudanças climáticas, como se estivessem um grau acima na escala de vitimizações por causa da sua cor. Ora, negros são, em média, mais pobres do que brancos; logo, qualquer problema social que tem a ver com pobreza ou desigualdade os afetará desproporcionalmente. Por exemplo, se a grande maioria de moradores de favelas e áreas de risco se declara preta ou parda, é natural (ainda que perverso) que enchentes atinjam em maior grau pessoas negras.

O despreparo das cidades agrava esse quadro. A maioria dos municípios carece de planos de adaptação às mudanças climáticas, sistemas de drenagem eficientes e políticas de habitação que evitem a ocupação irregular de encostas e margens de rios. Embora, nos fóruns globais, o Brasil defenda metas ambiciosas de descarbonização e desenvolvimento sustentável, internamente a distância entre intenção e prática ainda é profunda. Poucos municípios atualizaram a necessária integração da pauta climática aos planos diretores urbanos. A ausência de saneamento básico – ainda uma realidade para mais de 90 milhões que não têm coleta de esgoto e 34 milhões sem acesso a água potável – amplifica o impacto das enchentes e da contaminação. A falta de áreas verdes amplifica o calor nas grandes metrópoles.

A COP-30 será um teste de coerência. Para o Brasil, que tem o dever de tornar realidade as promessas do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de “liderar pelo exemplo”; e para os demais líderes mundiais, que terão diante de si uma encruzilhada: continuar tratando o aquecimento global como uma agenda para o futuro, ou encará-lo como o que ele realmente é – uma emergência que ameaça a justiça social e a própria sobrevivência coletiva. A redução da pobreza e a adaptação ao clima são faces desse mesmo desafio.

Nas asas da demagogia

Por O Estado de S. Paulo

Populismo da Câmara ao proibir cobrança por malas em voos vai custar caro para os passageiros

Nada mais sintomático sobre o quão perdido está o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), do que a aprovação do projeto de lei que restabelece a gratuidade para o transporte de bagagens em voos. Demagógica, a proposta nada agrega ao setor aéreo e só contribuirá para aumentar os preços das passagens, o oposto do que os deputados pretendiam.

Desta vez, o pretexto foi o anúncio da Gol de que passaria a ofertar um bilhete mais barato para voos internacionais, no qual o passageiro teria direito de levar apenas uma bolsa ou mochila a ser acomodada abaixo do assento à frente, sem utilizar o bagageiro superior – como, aliás, já existe na Latam.

Se para a imensa maioria dos passageiros viajar para o exterior portando apenas uma bolsa ou mochila não é interessante ou mesmo viável, levar malas tampouco está proibido. Basta adquirir uma passagem na qual o serviço esteja incluído ou pagar por ele em separado. Fato é que o motivo original da polêmica – a cobrança por bagagens de mão em voos para o exterior – ficou fora do projeto de lei aprovado pela Câmara.

O estrago final, no entanto, foi bem maior. Os deputados retomaram a gratuidade no despacho de bagagens de até 23 quilos tanto em voos domésticos quanto internacionais e proibiram a cobrança por marcação de assento padrão. Vetaram, também, a cobrança por pertences de mão em voos nacionais, algo que nenhuma empresa aérea faz.

Diferentemente do projeto de lei pautado, discutido e aprovado em menos de um mês pela Câmara, a regra atualmente em vigor foi debatida em consulta pública realizada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) por meses. A norma foi aprovada em 2016, e a cobrança pelo despacho de bagagens se iniciou no ano seguinte.

Pagar pelo despacho da bagagem não é nenhuma jabuticaba: é assim que funciona na maioria dos países do mundo. A medida tende a favorecer o consumidor, especialmente aqueles que viajam somente com pertences de mão.

Há, basicamente, apenas três grandes empresas aéreas em operação no Brasil, e a baixa concorrência é uma das razões pelas quais os preços das passagens são elevados. A depender da maioria dos deputados, não haverá nenhuma outra, muito menos no modelo low cost.

Mas não há como culpar as low cost por não quererem entrar no País. Quem já voou com esse tipo de companhia no exterior sabe que as passagens aéreas são muito baratas, mas todo o serviço acessório é cobrado à parte e custa caro, inclusive a água.

O tema volta de tempos em tempos, geralmente quando o Legislativo está nas cordas. Em 2019 e em 2022, o despacho de bagagens só não voltou a ser gratuito por vetos do então presidente Jair Bolsonaro. Como manter um negócio como esse quando o Legislativo age de maneira paternalista e muda as regras de um setor regulado de um dia para o outro?

A gratuidade das bagagens é mera cortina de fumaça para uma discussão bem mais complexa sobre os custos de operação do setor, na qual a Câmara não pretende entrar. O grande prejudicado é o consumidor, que terá de pagar mais para ajudar a custear a bagagem dos outros. Espera-se que o Senado tenha mais juízo e enterre a proposta.

Deter crime organizado é dever solidário de União e Estados

Por Valor Econômico

A “Operação Contenção” no Rio mostrou que o uso da força não é o caminho para enfrentar grupos armados e bem financiados

Se mais um sinal faltava para demonstrar o poder das organizações criminosas no território nacional, a operação das forças de segurança fluminenses, com um saldo ainda provisório de mais de 120 mortos, pode ter sido o definitivo. A polícia cercou membros do Comando Vermelho (CV) nos complexos da Penha e do Alemão. A resposta do CV foi forte — conseguiu paralisar e espalhar o caos na segunda maior cidade do país, de 6,2 milhões de habitantes.

Castro considerou a investida um sucesso. De acordo com a polícia, a estratégia, resultado de planejamento, foi acuar bandidos nas matas, longe dos moradores, para preservar vidas inocentes. A polícia afirma que os outros mortos — além dos quatro policiais — são todos “suspeitos” e que quem se entregou no cerco foi preso. Há mais de cem detidos. Ainda não há conhecimento dos nomes da lista nem das circunstâncias das mortes, e será preciso apurar se houve excesso policial, com eventuais denúncias seguindo os trâmites oficiais de investigação.

A “Operação Contenção” foi um triste marco na história do Rio de Janeiro. Aconteceu um mês depois de outra operação da qual se podem extrair aprendizados. A “Carbono Oculto” desferiu um golpe certeiro nas finanças do Primeiro Comando da Capital (PCC), interrompendo um fluxo de recursos que movimentou R$ 46 bilhões em cinco anos. Sem alarde, 1.400 agentes — pouco mais da metade dos 2.500 que foram à Penha e ao Alemão — portavam 200 mandatos de prisão contra 350 pessoas físicas em 10 Estados. Uma vasta cadeia de negócios, de rede de importação de combustíveis a postos de abastecimento, fintechs, comércio de brinquedos e motéis, foi interrompida, legando ainda pistas valiosas para rastrear outros negócios legais ou ilegais do crime organizado.

Mais uma vez golpeado, o CV tem mostrado grande capacidade de recuperação e domínio crescente de territórios no Rio. Não está sozinho em uma geografia dominada pelas armas e pelo medo. Em 16 anos a área sob controle do crime organizado dobrou para 18% do território do Grande Rio, segundo levantamento do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudo dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense. Outro levantamento, da Polícia Militar fluminense, constatou que havia 1.645 áreas no Estado com presença de grupos armados, com prevalência do Comando Vermelho em 62% delas, além do avanço das milícias, que dominavam 12,5% desses territórios.

Já a “Carbono Oculto” foi a maior ação coordenada com Receita Federal, Banco Central, Polícia Federal e polícias estaduais já feita no país, e representou um modelo bem-sucedido que deverá ser replicado e ampliado nas próximas investidas contra o crime organizado. Como as organizações criminosas espalharam-se por todo o país, inclusive na Amazônia, o confronto armado ostensivo e direto é visto como pouco eficaz e anacrônico.

Enfrentar o PCC, o CV e mais algumas dezenas de satélites do crime não pode ser feito sem coordenação e um paciente serviço de inteligência, que ataque as veias financeiras do tráfico de drogas e armas, assim como localize seus membros dirigentes.

Após a troca de acusações entre o governo fluminense e o governo federal sobre pedidos ou não de ajuda na segurança, ontem Castro e o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, anunciaram uma parceria relevante. “Tivemos um diálogo importante. Se o problema é nacional, o Rio de Janeiro é um dos principais focos. Daqui saiu uma proposta concreta: a criação de um Escritório Emergencial de Enfrentamento ao Crime Organizado”, anunciou o governador.

A frente legislativa também tem papel crucial. Os Estados precisam apoiar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança, que institucionaliza a colaboração legal da União com os entes federados. Outra proposta que tem de sair do papel é o projeto antifacções. E a esquerda precisa olhar além de sua cartilha habitual de soluções, diante de uma violência que já passou do ponto.

O caos no Rio mostrou que essa união de esforços é primordial, e que o uso da força, se é inevitável em situações pontuais, não é o caminho definitivo para enfrentar grupos que podem se medir de igual para igual em poder bélico e que contam com formidáveis recursos financeiros. Nem o Rio de Janeiro nem outros Estados têm capacidade de enfrentar sozinhos a ousadia e as ramificações do crime organizado.

O Rio merece atenção especial. A degradação social provocada pelo crime organizado e as milícias causa prejuízo a comerciantes e outros trabalhadores, afasta investimentos do Estado e afugenta turistas. O cenário reduziu ao longo do tempo a criação de empregos e fez da capital fluminense a segunda cidade que mais perdeu habitantes entre 2010 e 2022, segundo os censos do IBGE. E, com o Rio como cartão-postal do Brasil, cenas como a desta semana têm efeito-cascata na imagem do país.

Combate falido ao crime organizado

Por Correio Braziliense

Espera-se que uma investigação isenta dê respostas à sociedade sobre a polêmica contenção, possibilitando punir culpados e reparar vítimas

Transformada, na manhã de ontem, em um necrotério a céu aberto, a Praça São Lucas, no Complexo da Penha, Zona Oeste do Rio de Janeiro, é prova cabal de que está falida a forma como o Estado combate o crime organizado. O Brasil dormiu, na terça-feira, apreensivo com os registros da anunciada mais letal empreitada das forças de segurança em comunidades fluminenses — até então, eram 64 mortos em mais de 12 horas de confronto. Acordou na quarta-feira estarrecido com imagens irrefutáveis de guerra. Cadáveres enfileirados no asfalto — carregados por familiares que denunciam práticas de execução e tortura — revelaram que a chamada Operação Contenção é, na verdade, a mais letal do país, evidenciando que as urgências das ruas precisam se sobrepor aos embates políticos de palácios e escritórios. 

Espera-se que uma investigação isenta dê respostas à sociedade sobre a polêmica contenção, possibilitando punir culpados e reparar vítimas. Para agora, o Estado avançaria se abrisse mão de picuinhas eleitorais e mergulhasse, de fato, em uma ofensiva estratégica de resgate da segurança pública. Nesse sentido, o governador Cláudio Castro acerta ao reconhecer que o Rio é epicentro de um problema nacional, mas segue preso à lógica simplista do nós contra eles para lidar com a questão. 

Senão, o que dizer da postura de delimitar as verdadeiras vítimas da operação? Uma cidade sitiada em plena luz do dia, com escolas e empresas fechadas e pessoas em pânico tentando voltar para casa, também padece com a insegurança. Apostar em pirotecnias declaratórias e desconsiderar perspectivas de outros especialistas, como fez Castro e sua equipe, parece não favorecer a estratégia de "foco em integração" defendida por eles. 

Da mesma forma, a decisão da Polícia Federal de descartar a participação na operação precisa ser melhor explicada, e aliados do presidente Lula também devem descer do palanque e se dedicar a medidas que combinem inteligência e eficácia às necessárias ações ostensivas. O PL Antifacção, por exemplo, ainda não foi enviado ao Congresso. 

Enquanto políticos e autoridades batem cabeça e narrativas, facções criminosas arquitetam um poderio sem limites. Tratam-se de grupos com tentáculos em diversos setores da economia, com articulações, inclusive, no exterior, e que têm no tráfico de drogas apenas um campo de atuação, como revelou recentemente a bem-sucedida Operação Carbono Oculto — focada na asfixia financeira dessas indústrias do crime.

Em manifesto conjunto, a Fiocruz e dezenas de instituições públicas e entidades civis e comunitárias — entre elas, Instituto Fogo Cruzado, Universidade Federal do Rio de Janeiro e o Movimento Popular de Favelas — criticaram o que classificam como um "fenômeno multidimensional que há muito adoece nossa cidade, cancela o sonho de estudantes, impede o tratamento de doentes, rouba a tranquilidade das famílias, tira o sustento dos trabalhadores". A realidade se repete pelo país — levantamento recente do Fórum de Segurança Pública indica que dois em cada 10 brasileiros vivem em áreas com atuação de facções criminosas e milícias — e exige fórmulas atualizadas de enfrentamento. 

Há quase 15 anos, ganhou o noticiário internacional a imagem de traficantes na mata fugindo de blindados da Marinha e agentes de segurança que adentravam também no Complexo da Penha para tomar a comunidade. O Estado não se manteve; o crime ganhou corpo, território, poder bélico e, sobretudo, empresarial. Não se pode tentar contê-lo agora com o que já não funcionou quando as facções pareciam menos profissionalizadas.

O que ensina a tragédia do Rio?

Por O Povo (CE)

É preciso fazer o crime recuar, mas isso somente será possível com atividades conjuntas entre o governo federal, estados e municípios — e com inteligência e planejamento

O governo do Rio de Janeiro desencadeou na terça-feira, nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, uma operação considerada a mais letal da história do Estado. Segundo informações oficiais, o confronto deixou 60 "suspeitos" e quatro policiais mortos. Mas a contagem macabra ainda não havia terminado, pois moradores resgataram cerca de 60 corpos em matas que circundam as comunidades.

A operação, que mobilizou 2.500 policiais civis e militares, tinha o objetivo de conter o avanço territorial da facção criminosa Comando Vermelho (CV) nas comunidades, além de cumprir mandados de prisão contra líderes criminosos.

O conflito praticamente paralisou a cidade do Rio, que viveu um clima típico de uma guerra, com tiroteios, helicópteros sobrevoando as comunidades e drones, pilotados por criminosos, usados para lançar bombas sobre os policiais, que também atingiam moradores.

Essa "megaoperação", como vem sendo chamada, lembra outra, desencadeada 15 anos atrás, que prometia livrar o Complexo do Alemão do controle dos traficantes de drogas. O mesmo já havia acontecido, em 2021, quando 27 civis foram mortos no Jacarezinho. A lista de confrontos, que nada resolvem, poderia seguir, quase que indefinidamente.

Portanto, já devia ser de conhecimento das autoridades que ações isoladas, sem o acompanhamento de medidas complementares para oferecer um mínimo de cidadania às comunidades, pouco resolvem, além de provocar mais sofrimento aos habitantes que não têm sossego em suas vidas. Ou estão submetidos ao controle dos bandidos, ou viram alvos da polícia e de "balas perdidas".

Segundo avaliou o governador do Rio, Cláudio Castro, a operação foi "extremamente planejada", resultado de investigações de mais de um ano, e discutida com autoridades do Estado durante 60 dias. Ora, mas como pode ser considerada bem planejada uma ação que resulta em confronto com mais de uma centena de mortos, incluindo policiais — e uma cidade inteira aterrorizada?

Esse resultado catastrófico deveria, ao menos, levar o governador a assumir a responsabilidade pelo erro cometido e levá-lo à reflexão. Qualquer pessoa razoável haverá de entender que somente pode ser considerada positiva uma ação que termina como os suspeitos presos e com os policiais voltando vivos para as casas e suas famílias.

Depois dessa tragédia é de se esperar que os governadores renitentes atendam ao chamado do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, que propugna por uma ação conjunta entre governo federal e os entes federativos, de forma a encontrar formas conjuntas de enfrentar a criminalidade.

O momento é grave o suficiente para que quaisquer divergências políticas sejam postas em segundo plano para tornar possível a adoção de propostas que levem ao desmantelamento dessas organizações criminosas, que hoje tem sob sua influência cerca de 26% da população brasileira. É preciso fazer o crime recuar, mas isso somente será possível com inteligência e planejamento.

 


 

 

 

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