Correio Braziliense
O semipresidencialismo
informal, no qual o Executivo é empurrado para a irrelevância operacional,
tenta transformar o presidente da República em rainha da Inglaterra
Richard Dawkins, em O Gene Egoísta (Companhia das
Letras) — ao qual recorri ao falar sobre a “sombra de futuro” dos
presidenciáveis no domingo passado —, apresenta uma metáfora poderosa para
entender a dinâmica da cooperação política: a fábula dos pássaros infestados
por um parasita perigoso. Sozinhos, eles conseguem limpar parte de suas penas,
mas há regiões inacessíveis ao próprio bico, de modo que a sobrevivência da
espécie depende de um pacto tácito de cooperação: um pássaro dedica tempo a
remover o piolho do outro, esperando ser ajudado depois.
No entanto, em toda comunidade, sempre existe a tentação de trapacear: receber o favor sem retribuir. A comunidade prospera quando a reciprocidade funciona; entra em colapso quando o número de trapaceiros supera o de cooperadores. Esse dilema, que Dawkins utiliza para explicar a evolução do comportamento social, aplica-se com precisão ao funcionamento do sistema político brasileiro, em que coalizões, lideranças partidárias e o Executivo operam segundo um delicado equilíbrio entre benefício mútuo e oportunismo. Na fábula darwinista, o sistema só funciona quando existe um terceiro grupo de pássaros, que promove uma cooperação seletiva: não catam piolhos dos trapaceiros.
O governo Lula, em sua terceira gestão, vive
justamente um momento em que o ecossistema da cooperação começa a ser
tensionado pelo avanço dos “pássaros trapaceiros”. A indicação de Jorge Messias
para o Supremo Tribunal Federal, contrariando o presidente do Senado, Davi
Alcolumbre, rompeu uma expectativa de reciprocidade construída ao longo de
meses. Na lógica do Congresso, em que cada gesto tem conteúdo acumulativo, a
recusa a um acordo é interpretada como convite ao aumento do custo da
cooperação.
Alcolumbre e parte do Senado reagiram
elevando o preço político do alinhamento, enquanto a Câmara dos Deputados,
liderada por Hugo Motta, aproveitou a fragilidade momentânea do Planalto para
ampliar sua agenda própria, especialmente no campo da segurança pública, que se
tornou o principal eixo de disputa com o Executivo. Essa é uma forma de atuação
bem conhecida do Centrão, que contingencia a sustentação política do governo ao
trocar apoio por mais e mais cargos, por mais e mais emendas, por mais e mais
benesses.
É uma regra de jogo de alto risco para a
democracia, no contexto da radicalização política e de aproximação das eleições
de 2026. O fato é que a prisão de Jair Bolsonaro, comemorada pelos governistas,
mudou abruptamente o ambiente político, numa tensa contraposição entre a
oposição mobilizada emocionalmente e um governo obrigado a reagir com cautela
para evitar a narrativa de perseguição.
Semipresidencialismo
O Planalto não é o responsável direto pela
condenação e prisão do ex-presidente da República, bem como dos demais réus no
julgamento da tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, entre os
quais três generais de quatro estrelas e um almirante de esquadra. Entretanto,
a oposição tenta capitalizar o fato para impor suas pautas ao Congresso, pressionar
os parlamentares do Centrão e reabrir discussões como a proposta de anistia e
projetos que limitam a atuação da Polícia Federal.
Diante da vulnerabilidade do Executivo, o
Congresso é seduzido por comportamentos de trapaça estratégica, com atores que
querem receber benefícios institucionais sem oferecer estabilidade política e
que passam a impor derrotas simbólicas como forma de testar os limites do
governo.
Essa dinâmica não é inédita na história
brasileira. Remete-nos à crise vivida pelo governo João Goulart entre 1962 e
1964. Jango perdeu o Congresso antes de perder o poder, e esse é o aspecto mais
instrutivo para compreender o momento atual. Desde a redemocratização, dois
presidentes perderam sustentação política e foram apeados do poder pelo
Congresso: Fernando Collor e Dilma Rousseff.
No governo Jango, havia um ambiente altamente
polarizado, dividido entre forças conservadoras, setores reformistas, grupos
militares e interesses econômicos em choque. À medida que o governo avançava
suas propostas de reformas de base, o Congresso se fragmentava, aumentando
custos para o Executivo e promovendo obstruções sistemáticas. A erosão da
governabilidade não começou com tanques nas ruas, mas com a progressiva recusa
parlamentar em cooperar, mesmo em temas de funcionamento mínimo do Estado.
O ambiente de 1964 era radicalizado, com
tensões militares, crise econômica, disputa ideológica global (a guerra fria) e
mobilização social crescente, mas a lição institucional permanece: quando o
Congresso percebe que o Executivo perdeu capacidade de disciplinar sua base, o
sistema migra para o comportamento oportunista. No caso de hoje, não há um
cenário de ruptura militar clássica, muito pelo contrário, nem há consenso
internacional para desestabilização, mas existe um risco sutil: o
semipresidencialismo informal empurra o Executivo para a irrelevância decisória
e tenta transformar o presidente da República em rainha da Inglaterra, ao
controlar sua agenda e seu orçamento.
Disputas pela bandeira da segurança, tensões
em torno do STF, ofensivas sobre o orçamento, CPIs ameaçadoras e mobilizações
da oposição fazem parte da democracia, porém têm também o poder de
desestabilizar a governabilidade, a partir de uma crise disruptiva entre
Executivo e Congresso. Essa erosão se dá sem tanques, mas com regras
regimentais, bloqueios políticos, aumento de custos de barganha, tentativas de
impor pautas-bombas e de instalar o caos.

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