O Globo
A sacola de plástico contendo as roupas do
morto foi jogada numa lixeira. Os restos mortais de Jamal Khashoggi jamais
foram encontrados
Na semana passada o presidente Donald Trump
recebeu o príncipe saudita Mohammed bin Salman (conhecido pelas iniciais MBS)
em grande estilo, com caças F-35 e F-16 sobrevoando a Casa Branca. Nos céus,
tudo azul. Em solo, nem tanto. Como de praxe, a mídia credenciada fora
convocada ao Salão Oval para registrar o momentoso encontro. Mas nada parece
dar muito certo naquele local histórico transformado em assombração kitsch —
folheada a ouro, claro — por Trump.
Mais de sete anos haviam transcorrido desde
que a CIA informara ao mundo considerar MBS responsável por ordenar o
assassinato do jornalista saudita exilado Jamal Khashoggi. Era inevitável,
portanto, que o tema fosse abordado na ocasião.
A repórter Mary Bruce, da emissora ABC News,
dirigiu sua pergunta ao visitante com transmissão ao vivo:
— Vossa Alteza Real, os Estados Unidos concluíram que o senhor orquestrou o assassinato brutal de um jornalista. As famílias das vítimas do atentado do 11 de Setembro estão inconformadas por vê-lo no Salão Oval. Por que os americanos deveriam confiar em Vossa Alteza Real?
Pouco habituado a contrariedades, o príncipe
absolutista inicialmente calou. Foi socorrido pelo anfitrião plebeu:
— Você se refere a uma pessoa [Khashoggi]
extremamente controversa; muita gente não gostava daquele senhor. Se você
gostava ou não gostava dele, coisas acontecem.
Vale relembrar essas “coisas”.
No dia 2 de outubro de 2018, início da tarde,
a pesquisadora turca Hatice Cengiz viu o noivo entrar no casarão bege que sedia
o consulado-geral saudita em Istambul. Aguardaria do lado de fora, na rua
arborizada e coalhada de câmeras de segurança. Quando ele saísse, comprariam
eletrodomésticos para a futura moradia do casal. A data do casamento seria
marcada tão logo o noivo obtivesse o documento oficial que fora buscar no
consulado. Autoexilado nos Estados Unidos para poder apontar as cruezas do
regime não só saudita, como no mundo árabe em geral, Khashoggi havia recebido
abrigo profissional no Washington Post. Estava com o pedido de cidadania
americana encaminhado.
Na semana anterior ao fatídico 2 de outubro,
ele já havia estado no mesmo consulado para solicitar o papel que lhe faltava.
Entrou apreensivo e saiu aliviado por ter sido bem tratado. O documento lhe
seria entregue em alguns dias, garantiram. Por isso estava despreocupado ao
adentrar o casarão bege pela segunda vez. Hatice conta que só entrou em pânico
decorridas três horas de espera. Bateu à porta do casarão e foi informada de que
Khashoggi saíra fazia algum tempo, talvez ela não tivesse percebido. Ademais,
àquela hora, o consulado já fechara para o dia.
Por sorte, a instalação consular de Istambul
estava grampeada pelos serviços de inteligência turca, e o planejamento e a
execução do crime foram gravados. Poucos tiveram acesso a essas fitas, mas a
jornalista e documentarista britânica Jane Corbin, do programa Panorama, da
BBC, entrevistou duas advogadas que ouviram as gravações. Sabe-se assim que,
pouco depois de Khashoggi sair sorridente da primeira visita, houve pelo menos
quatro telefonemas entre o governo em Riad e o cônsul-geral em Istambul.
E “coisas” passaram a acontecer. Na véspera
do crime, três oficiais da Inteligência saudita desembarcaram em Istambul. Nas
primeiras horas do dia D, um jato particular despejou outros nove, incluindo um
médico-legista. Uma das conversas macabras entre o legista e um dos matadores
ocorreu enquanto Khashoggi e a noiva Hatice se dirigiam ao consulado de mãos
dadas:
— Costumo colocar música quando corto os
cadáveres. E às vezes seguro um café e um charuto nas mãos... É a primeira vez
na vida que terei de cortar pedaços no chão. Mesmo se você é um açougueiro,
pendura o animal para fazer isso — diz o médico.
Dá para ouvi-los rindo. Uma sala no primeiro
andar do consulado havia sido preparada para a operação — o chão estava coberto
de plástico. Pelo testemunho da advogada Helena Kennedy à BBC, “há um momento
em que você consegue ouvir Khashoggi deixar de ser um homem confiante e passar
a sentir medo — uma ansiedade, um terror crescentes”.
As testemunhas ouviram 45 minutos de
gravação. O dissidente encurralado ainda pergunta se estava sendo sequestrado,
se lhe seria aplicada uma injeção. Depois, apenas sons que sugerem sufocamento.
Ainda se ouve uma voz dizendo “Deixa ele cortar”, outra que grita “Acabou”, e
ainda outra a completar “Tira isso, tira isso. Coloca isso na cabeça dele e
embrulha”. Menos de duas horas depois da chegada de Khashoggi, imagens mostram
três homens com malas e sacos plásticos entrando em veículos consulares. Por
fim, dois integrantes do grupo de matadores saem do casarão. Um está vestido
com o paletó, camisa e calça do esquartejado. Apenas os sapatos são outros. O
segundo carrega uma sacola branca. Caminham em direção à Mesquita Azul de
Istambul. Quando reaparecem, o homem que vestira as roupas do jornalista havia
se trocado. A sacola de plástico contendo as roupas do morto é jogada numa
lixeira. Os restos mortais de Jamal Khashoggi jamais foram encontrados.
Coisas, de fato, acontecem na Arábia Saudita
de Sua Alteza Real e na Casa Branca de Donald Trump.

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