CartaCapital
Claudia Sheinbaum, do México, é o mais
recente alvo da guerra híbrida da extrema-direita
O roteiro é conhecido. Milhares de
manifestantes, convocados majoritariamente em redes sociais, saem às ruas em
fúria, exigindo a derrubada de governos eleitos. Aparentemente sem lideranças
definidas, a massa concentra-se em locais públicos, brandindo difusas pautas
contra a corrupção, a insegurança, os partidos tradicionais e a própria
democracia. Logo aparecem grupos de provocadores, munidos de marretas, barras
de ferro e serras elétricas, que partem para a depredação de edifícios
públicos.
Foi o que se viu, no sábado 15, no Zócalo, principal praça da Cidade do México, em frente ao Palácio Nacional, sede do governo. Planejados como eventos simultâneos em várias localidades, os protestos fracassaram na maior parte delas. Calcula-se, no entanto, que 17 mil mexicanos tenham marchado na capital, estabelecendo um confronto que resultou em cerca de uma centena de policiais e 20 manifestantes feridos. A promessa é de que a ação se repita nas próximas semanas.
A mídia tradicional logo definiu o movimento
como uma rebelião da geração Z, aquela nascida entre 1995 e 2010. A
classificação busca estabelecer conexões com mobilizações semelhantes no Nepal,
Bangladesh, Sri Lanka, Marrocos e Peru. Pesquisas de opinião mostram a
fragilidade do rótulo, ao constatar que 71% dos jovens entre 18 e 25 anos
aprovam o governo de Claudia Sheinbaum.
Uma investigação da Infodemia, órgão público
voltado à análise da internet, revela que a marcha foi “impulsionada
artificialmente” por “uma rede digital de contas (…) promovida por políticos,
comentaristas e até mesmo ex-presidentes do México”. O ponto de partida, de
acordo com a instituição, deu-se em 3 de outubro, por meio de reportagem da TV
Azteca que ligava o descontentamento dos jovens mexicanos a um suposto
“movimento global”. A partir daí, 179 contas de TikTok e 359 comunidades do
Facebook começaram a difundir a organização de uma passeata contra o governo,
com farto uso de imagens geradas por Inteligência Artificial. A elas se juntou
a Atlas Network, rede de comunicação internacional acusada de realizar
campanhas de denúncias contra administrações progressistas, como aquelas de
Lula, no Brasil, Cristina Kirchner, na Argentina, Evo Morales, na Bolívia, e
Pedro Castillo, no Peru. Cerca de 5 milhões de dólares foram gastos na empreitada,
relata a Infodemia.
A figura mais notável a incentivar os
protestos atende pelo nome de Ricardo Salinas Pliego, com forte influência
entre o grande empresariado. Dono da já citada TV Azteca, do Banco Azteca, da
Seguradora Azteca e do Grupo Elektra, rede varejista presente no México,
Guatemala, Honduras e Panamá, entre outros empreendimentos, Pliego detém a
quinta maior fortuna do país. Ex-aliado de Andrés Manuel López Obrador,
correligionário e antecessor da atual presidenta, afastou-se do governo e
passou a atacar Sheinbaum, movido por uma causa pouco nobre: evitar por todos
os meios pagar 4 bilhões de dólares em impostos sonegados por anos a fio. Sua
ira explodiu quando a presidente rejeitou publicamente perdoar a dívida, no
início do ano. Desde então, o empresário não mede palavras para acusar uma
trama “do regime narcotraficante”, criminoso, corrupto e comunista do Morena,
partido do governo.
Os ânimos se radicalizaram em 1º de novembro,
quando foi assassinado Carlos Manzo, prefeito de Uruapan, cidade de 240 mil
habitantes no estado de Michoacán, um dos mais violentos da federação. Manzo
defendia uma linha-dura contra o crime organizado e ganhara o apelido de
“Bukele mexicano”, em referência ao presidente de El Salvador, que estabeleceu
uma espécie de estado de sítio permanente em seu país. Desde o início do ano,
outros seis prefeitos foram mortos de forma violenta.
Sheinbaum herdou uma realidade calamitosa que
remonta a mais de meio século de desmonte social e concentração de renda.
Acusada de nada fazer para deter as facções do crime organizado, que dominam
vastas partes do território e da institucionalidade, a presidente tem se
colocado de maneira firme na defesa de direitos das maiorias empobrecidas. Se
na década passada o mote central da direita era denunciar redes de corrupção
incrustadas em governos progressistas, a pauta mudou, a partir de Washington,
que coloca o “narcoterrorismo” como alvo principal na América Latina.
Apesar disso, a insuspeita The Economist
constatou: “O México tornou-se um lugar menos perigoso sob a liderança de
Claudia Sheinbaum”. Uma reportagem de duas páginas aponta que em 14 meses de
governo, a atual mandatária reduziu a taxa de mortes violentas em 14%. “Contar
apenas os homicídios ignora uma parte importante do problema: os milhares de
pessoas que desaparecem todos os anos, muitas assassinadas e enterradas em
covas sem identificação”, afirma a publicação. Dois terços dessas mortes estão
associadas ao crime organizado.
Desafiada internamente pela extrema-direita,
Sheinbaum é também atacada por Donald Trump, a quem critica duramente. “Não
estou feliz com o México”, declarou o magnata na segunda-feira 17. Citando sua
provocação militar contra a Venezuela, o ocupante da Casa Branca afirmou que
teria “orgulho” de atacar barcos de narcotráfico do país vizinho, de onde se
origina a maior parte do fentanil em circulação nos EUA. Em 3 de novembro, a
NBC News noticiara que o governo republicano traça planos para deslocar forças
de segurança para o interior do México.
A presidente mexicana comanda uma
administração progressista num continente marcado pelo avanço da
extrema-direita, mantendo altos índices de aprovação. Os números oscilam entre
70% (El Financiero) e 78% (Enkoll). Sua gestão conta com mais de dois terços de
apoio nas duas casas Legislativas. Em junho último, o México tornou-se a
primeira nação do mundo a eleger juízes, dos tribunais locais à Suprema Corte,
num total de quase 3 mil cargos. É possível que tais iniciativas dificultem o
surgimento de lideranças nacionais neofascistas no país.
Segunda maior economia da América Latina e
fortemente dependente dos Estados Unidos, seu principal parceiro comercial, o
México, a exemplo da maioria dos países do continente, adota políticas
monetária e fiscal restritivas. Oscila há quatro décadas na média de 2% de
crescimento ao ano (em 2020, auge da pandemia, o PIB despencou 8,4%). A
inflação deve fechar o ano em 3%, de acordo com projeções do FMI. Embora
apresente baixíssima taxa de desemprego (2,4%), a informalidade alcança 53,7%
da população. Os governos do Morena exaltam o feito de retirarem 8,3 milhões de
compatriotas da linha de pobreza, entre 2022 e 2024.
No mundo das realidades paralelas nada disso
importa. Como em Assim É (Se lhe Parece), clássico da dramaturgia escrito por
Luigi Pirandello, que transitou do fascismo ao antifascismo, a realidade
objetiva seria uma impossibilidade lógica. A extrema-direita atual leva a
máxima do escritor italiano ao paroxismo em sua ação política.
*Professor de Relações Internacionais da
UFABC.
Publicado na edição n° 1389 de CartaCapital,
em 26 de novembro de 2025.

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