Um nome inspirado por alguma canção popular
mexicana, dir-se-ia. Um nome bonito demais da conta, como falariam os mineiros.
Um nome que ela, devido à luta clandestina, tinha que omitir de quase todo
mundo.
Tendo convivido com ninguém menos do que Luiz Carlos Prestes em Moscou, atuou politicamente com Salomão Malina e Givaldo Siqueira, Dulce/Márcia foi ainda amiga pessoal de Gregório Bezerra, cujas memórias datilografava na antiga União Soviética. Dela, pode-se dizer que pautou sua vida pela defesa intransigente da Democracia, tanto no plano político quanto no social. E pagou por isso um preço muito alto, traduzido por clandestinidades e exílios.
Dulce/Márcia atuou no PCB dos companheiros
citados acima e também no velho PCI de Gramsci, Togliatti e Berlinguer. Duas
poderosas escolas políticas e de vida. Seu livro revela bem isso.
Dulce/Márcia é uma dessas pessoas que nos
emocionam pela retidão e inteireza de caráter. Pois a minha eterna cunhada,
como eu costumo me referir a ela, se jogou de corpo e alma nas lutas do seu
tempo, do movimento estudantil ainda em Belém do Pará às campanhas pela Anistia
lá fora, dos embates pela melhoria das condições das mulheres às batalhas
ecológicas e em defesa do patrimônio histórico que trava hoje no seu estado
natal, o Pará. Decididamente, a luta está na massa do seu sangue.
Houve uma época, na Itália, que fizemos
finanças ou caixinha para o PCB. Isso ocorreu, por exemplo, na Festa do Unitá,
órgão do Comitê Central do PCI. Vendemos artesanato na barraca da Voz
Operária, jornal clandestino do PCB, representado na festa. Eu me recordo que
fiz um imenso mapa do Brasil a partir de uma montagem fotográfica estampando
araras, papagaios, praias, florestas, cenas do cotidiano e, também, mulheres de
corpo para lá de escultural – o sabor dos trópicos cativando a atenção dos italianos.
Nem tudo tinha que ser amargura e tristeza na luta contra a ditadura. Nessa
festa, eu vi discursar Enrico Berlinguer, o extraordinário líder comunista
italiano, um estrategista político do porte do soviético Vladimir Lenin, do
búlgaro Georgi Dimitrov e do brasileiro Giocondo Dias.
Vez por outra nós nos encontrávamos,
Dulce/Márcia e eu, dentro e fora do Brasil. Certa feita, eu estava no Comitê
Central do PCB, no Rio de Janeiro, na época da legalização do Partido, e ela
comentou estar impressionada com o fato de Giocondo Dias, então secretário
geral, ouvir o meu pai o tempo todo, querendo saber a opinião dele sobre os
caminhos que o Partido deveria tomar em relação a essa ou aquela questão. Era
um tempo bom e fraterno aquele, a sede do PCB sendo frequentada por
companheiros como Dinarco Reis, Geraldo Rodrigues dos Santos, Francisco de
Almeida, Sérgio Augusto de Moraes, Salomão Malina, Roberto Freire e Ivan Alves,
meu pai. O saudoso Giocondo valorizava como ninguém a opinião dos companheiros,
a modéstia sendo uma de suas características mais notáveis. Faz muita falta.
Vez por outra, Dulce/Márcia aparecia lá em
casa para um dedo de prosa. Eu me recordo que há cerca de dez anos tivemos o
prazer de nos encontrar em uma reunião do Partido Popular Socialista (PPS),
realizada no Rio de Janeiro, reunião essa voltada para a elaboração de uma
política cultural partidária.
Em 2022, fui lançar em Belém o meu
livro Os Nove de 22 sobre a trajetória do PCB na vida nacional, e
tive o prazer de debater com ela, Jane Neves e outras militantes históricas do
Pará. Encontrar com Dulce/Márcia é uma fonte permanente de alegria para mim.
E eu não poderia de forma alguma deixar de
relatar aqui o convívio de dezenas de anos com seu marido, o saudoso Carlo
Cioni, um dos mais jovens deputados eleitos pelo Partido Comunista na Itália,
mas que não tomou posse por particularidades eleitorais locais. Tendo conhecido
sua mulher em Moscou, Carlo se tornou anos depois Presidente da Fundação
Gorbatchov. Amigo do líder soviético, Carlo Cioni me relatou certa vez que
Mikhail Gorbatchov e o checo Alexander Dubcek eram muito próximos
politicamente, uma vez que estudaram juntos nos anos 50, na Escola de Quadros
do Partido Comunista da União Soviética. Eu desconhecia totalmente esse fato e
essa proximidade. Talvez residam aí as raízes tanto da glasnost e da
perestroika de Gorbatchov quanto da chamada Primavera de Praga de Dubcek.
Este relato que o leitor tem diante dos olhos
é uma base riquíssima de ensinamentos. Lendo esta obra, aprendi ainda mais a
respeito não só da vida da Dulce/Márcia como também da própria trajetória
brasileira das últimas seis décadas. Leiam, divulguem e se emocionem com este
livro da minha querida camarada, da minha eterna cunhada.
*Ivan Alves Filho , historiador

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