segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Dulce/Márcia, por Ivan Alves Filho

Eu a conheci como Márcia, militante aguerrida do Partido Comunista Brasileiro, o velho Partidão. Somente alguns anos depois, apesar de eu viver com sua irmã, Ana Cláudia, é que eu soube seu verdadeiro nome: Dulce Rosa.

Um nome inspirado por alguma canção popular mexicana, dir-se-ia. Um nome bonito demais da conta, como falariam os mineiros. Um nome que ela, devido à luta clandestina, tinha que omitir de quase todo mundo.

Tendo convivido com ninguém menos do que Luiz Carlos Prestes em Moscou, atuou politicamente com Salomão Malina e Givaldo Siqueira, Dulce/Márcia foi ainda amiga pessoal de Gregório Bezerra, cujas memórias datilografava na antiga União Soviética. Dela, pode-se dizer que pautou sua vida pela defesa intransigente da Democracia, tanto no plano político quanto no social. E pagou por isso um preço muito alto, traduzido por clandestinidades e exílios.

Dulce/Márcia atuou no PCB dos companheiros citados acima e também no velho PCI de Gramsci, Togliatti e Berlinguer. Duas poderosas escolas políticas e de vida. Seu livro revela bem isso.

Dulce/Márcia é uma dessas pessoas que nos emocionam pela retidão e inteireza de caráter. Pois a minha eterna cunhada, como eu costumo me referir a ela, se jogou de corpo e alma nas lutas do seu tempo, do movimento estudantil ainda em Belém do Pará às campanhas pela Anistia lá fora, dos embates pela melhoria das condições das mulheres às batalhas ecológicas e em defesa do patrimônio histórico que trava hoje no seu estado natal, o Pará. Decididamente, a luta está na massa do seu sangue.

Houve uma época, na Itália, que fizemos finanças ou caixinha para o PCB. Isso ocorreu, por exemplo, na Festa do Unitá, órgão do Comitê Central do PCI. Vendemos artesanato na barraca da Voz Operária, jornal clandestino do PCB, representado na festa. Eu me recordo que fiz um imenso mapa do Brasil a partir de uma montagem fotográfica estampando araras, papagaios, praias, florestas, cenas do cotidiano e, também, mulheres de corpo para lá de escultural – o sabor dos trópicos cativando a atenção dos italianos. Nem tudo tinha que ser amargura e tristeza na luta contra a ditadura. Nessa festa, eu vi discursar Enrico Berlinguer, o extraordinário líder comunista italiano, um estrategista político do porte do soviético Vladimir Lenin, do búlgaro Georgi Dimitrov e do brasileiro Giocondo Dias.

Vez por outra nós nos encontrávamos, Dulce/Márcia e eu, dentro e fora do Brasil. Certa feita, eu estava no Comitê Central do PCB, no Rio de Janeiro, na época da legalização do Partido, e ela comentou estar impressionada com o fato de Giocondo Dias, então secretário geral, ouvir o meu pai o tempo todo, querendo saber a opinião dele sobre os caminhos que o Partido deveria tomar em relação a essa ou aquela questão. Era um tempo bom e fraterno aquele, a sede do PCB sendo frequentada por companheiros como Dinarco Reis, Geraldo Rodrigues dos Santos, Francisco de Almeida, Sérgio Augusto de Moraes, Salomão Malina, Roberto Freire e Ivan Alves, meu pai. O saudoso Giocondo valorizava como ninguém a opinião dos companheiros, a modéstia sendo uma de suas características mais notáveis. Faz muita falta.

Vez por outra, Dulce/Márcia aparecia lá em casa para um dedo de prosa. Eu me recordo que há cerca de dez anos tivemos o prazer de nos encontrar em uma reunião do Partido Popular Socialista (PPS), realizada no Rio de Janeiro, reunião essa voltada para a elaboração de uma política cultural partidária.

Em 2022, fui lançar em Belém o meu livro Os Nove de 22 sobre a trajetória do PCB na vida nacional, e tive o prazer de debater com ela, Jane Neves e outras militantes históricas do Pará. Encontrar com Dulce/Márcia é uma fonte permanente de alegria para mim.

E eu não poderia de forma alguma deixar de relatar aqui o convívio de dezenas de anos com seu marido, o saudoso Carlo Cioni, um dos mais jovens deputados eleitos pelo Partido Comunista na Itália, mas que não tomou posse por particularidades eleitorais locais. Tendo conhecido sua mulher em Moscou, Carlo se tornou anos depois Presidente da Fundação Gorbatchov. Amigo do líder soviético, Carlo Cioni me relatou certa vez que Mikhail Gorbatchov e o checo Alexander Dubcek eram muito próximos politicamente, uma vez que estudaram juntos nos anos 50, na Escola de Quadros do Partido Comunista da União Soviética. Eu desconhecia totalmente esse fato e essa proximidade. Talvez residam aí as raízes tanto da glasnost e da perestroika de Gorbatchov quanto da chamada Primavera de Praga de Dubcek.

Este relato que o leitor tem diante dos olhos é uma base riquíssima de ensinamentos. Lendo esta obra, aprendi ainda mais a respeito não só da vida da Dulce/Márcia como também da própria trajetória brasileira das últimas seis décadas. Leiam, divulguem e se emocionem com este livro da minha querida camarada, da minha eterna cunhada.

 *Ivan Alves Filho , historiador

 

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