O Globo
Foi o episódio mais letal da História do
país, num território tragicamente acostumado a contar óbitos às dezenas
Quem vive, circula pelos bairros, acompanha a
(in)segurança pública no Rio de Janeiro já se acostumou a superlativos. No
estado, faz tempo, perdeu-se a conta dos inimigos públicos número um;
apreensões de fuzis batem recordes sucessivos; confrontos armados multiplicam
cadáveres. O que aconteceu nesta semana nos complexos do Alemão e da Penha,
contudo, foi além dos padrões do ambiente hiperviolento da metrópole. Uma única
operação contra o Comando Vermelho, a facção majoritária no estado, deixou
mortos quatro policiais e 117 suspeitos. Foi o episódio mais letal da História
do país, num território tragicamente acostumado a contar óbitos às dezenas.
Das cinco ações policiais de maior letalidade já registradas no Rio, segundo o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (Geni/UFF), quatro ocorreram sob a gestão de Cláudio Castro, governador reeleito em 2022. Até a última terça-feira, o número máximo de mortes fora na operação da Polícia Civil no Jacarezinho, em maio de 2021, quando morreram um policial e 27 civis. O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) costumava classificar como chacina as ocorrências com três ou mais mortes. Nos últimos anos, a mudança de escala fez o Geni batizar de megachacinas os episódios com pelo menos oito óbitos. Não há nome para o que aconteceu no Alemão e na Penha nesta semana.
As forças policiais do Rio foram às
comunidades da Zona Norte carioca para cumprir uma centena de mandados de
prisão e 180 de busca e apreensão. Destes, todos foram cumpridos, informou o
secretário estadual de Segurança Pública, Victor Santos. Nenhum dos mortos
identificados estava na lista de mandados expedidos pela Justiça do Rio (69) e
do Pará (30). O secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, relatou que, dos 109
com identificação, 78 tinham anotações criminais graves, 43 estavam com prisão
decretada, 54 eram de outros estados (AM, PA, BA, CE, PB, GO, MT, SP e ES).
Foram presos 113 homens, 54 dos quais com antecedentes e 33 de fora do Rio.
Curi apontou entre os mortos oito chefes do CV em outras unidades da Federação.
Edgar Alves de Andrade, o Doca, chefe do CV e principal alvo da operação, segue
foragido.
Cerca de 2.500 agentes participaram da ação
que o governo do Rio celebrou como sucesso. Apesar das duas centenas de mortes
e prisões, 24 horas depois, homens armados continuavam circulando na Penha e no
Alemão. A população local não se livrou do jugo da facção criminosa que a
oprime. O secretário de Segurança disse que o estado tem a intenção de retomar,
mas não de ocupar territórios, como no período das Unidades de Política
Pacificadora (UPPs). Tanto o governador Castro quanto o secretário de Polícia
deixaram claro que a política anterior espalhou o tráfico de drogas para
municípios da Baixada Fluminense, Região dos Lagos, Costa Verde e Região
Serrana. E as restrições da ADPF das Favelas provocaram, nas palavras de Curi,
“a metástase nacional” do CV. As autoridades sabem que o Alemão distribui para
outras comunidades da Região Metropolitana drogas e armas. Por mês, segundo
Curi, chegam ali 10 toneladas de drogas e 70 a 80 fuzis. Mas, em vez de impedir
a entrada de maconha, cocaína e armas, a política de segurança prioriza
confrontos que põem vidas em risco, produzem luto, traumas e prejuízos
econômico-financeiros.
O Rio de Janeiro praticamente parou na
terça-feira — e ainda se apruma. A operação no Alemão e na Penha detonou
retaliação do grupo criminoso em outras áreas das zonas Norte, Oeste e
Sudoeste. Mais de 70 ônibus foram sequestrados para formar barricadas; 204
linhas foram afetadas. Aulas foram suspensas; atividades, interrompidas;
consultas, desmarcadas; eventos, cancelados. As escolas de samba não ensaiaram.
Mais de 40 unidades da rede municipal de ensino não abriram, desde terça, no
Alemão e na Penha. Até 15 mil alunos foram afetados.
A democracia, sabemos, não é plena para
pretos, pobres, favelados. O estado, que planejou e executou a operação, deixou
para trás a cena do confronto. Não houve perícia local. Quem fez o resgate dos
cadáveres — não houve feridos na mata — foram moradores e familiares. Na
quarta-feira, a Praça São Lucas amanheceu com seis dezenas de corpos postos em
via pública, numa das mais impressionantes cenas que a violência do
Rio já produziu. Expressão de dignidade restituída a quem tomba na rua, não
houve lençóis em número suficiente para cobrir todos os mortos. A solidariedade
se fez presente por meio de ativistas, organizações da sociedade civil e de
assistência, religiosos. Fiéis de uma igreja evangélica distribuíram copos
d’água numa banca montada no cenário de desolação, pavor e desespero, sobretudo
de mães.
Sem que nada tenha mudado, estabeleceu-se um
novo patamar.

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