O Estado de S. Paulo
O problema não é apenas ético, achando que os fins justificam os meios. É anterior, é limitação cognitiva
Sabemos produzir chacinas. Foram dois meses
de planejamento, informaram as autoridades do Rio de Janeiro. Sabemos matar,
com espetáculo, integrantes do crime organizado. Mas não sabemos identificar e
interromper suas fontes de financiamento, seus canais de aliciamento, suas
condições de manutenção e de expansão, suas expressões de poder sobre a
população.
Contentamo-nos com pouco, com muito pouco. Mesmo que, por fantasiosa hipótese, todos os assassinatos da chacina da semana passada tenham sido de pessoas ligadas ao Comando Vermelho, a operação policial foi um sucesso? Será este o grande e difícil desafio para alcançar a paz: matar uma centena e meia de criminosos?
As autoridades usam linguagem de guerra, recorrem
ao tom heroico. No entanto, pensam pequeno e de forma contraditória. Se há uma
guerra, qual é o objetivo dela? Qual é o resultado esperado com a vitória nesta
guerra? Matar todos os traficantes e, ato contínuo, surgir uma sociedade
pacífica? Qual futuro sonham construir? Ao qualificarem de sucesso a operação
policial da semana passada, escancararam sua própria torpeza mental.
Se há uma guerra em curso, qual é a
estratégia que norteia a atuação do Estado? É efetiva guerra contra o crime
organizado ou é mera guerra política, na qual o “combate às drogas” é
instrumento para fins eleitorais?
Se há uma guerra em curso, quais são os
movimentos de hoje? E os de amanhã? E os do mês que vem? E os de 2026? Aqui,
não culpo apenas as autoridades. Nós gostamos do teatro sangrento. Aplaudimos
eleitoralmente as escolhas de curto prazo.
Se há uma guerra em curso, é preciso lutar com as armas disponíveis. Uma guerra efetiva impõe realismo. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, a ADPF das Favelas, alterou as armas do Estado do Rio de Janeiro no enfrentamento ao Comando Vermelho. O que o governo estadual fez diante disso? Frente à limitação imposta pelo STF, buscou novos caminhos, novas estratégias? Ou valeu-se da decisão do Supremo para lavar as mãos?
Havendo uma guerra em curso e não podendo
mais realizar operações como costumava fazer, o governo do Rio optou por
investir em trabalho de inteligência? Foi atrás das fontes de financiamento do
crime organizado? Ou, ao contrário, esperou o momento politicamente conveniente
para afrontar a medida da Corte, culpando-a pelo aumento da criminalidade
organizada? É guerra ou é encenação? Sabemos produzir chacinas. Ainda não
entendemos o que significa lei, direitos, cidadania, República, democracia. Mas
as chacinas não se devem apenas ao nosso déficit civilizatório. Elas se devem,
antes, à nossa tacanhice intelectual. O problema não é apenas ético, achando
que os fins justificam os meios. É anterior, é limitação cognitiva. Não sabemos
quais são as ações e políticas públicas aptas a serem meio – caminho – para a
construção da paz, para o fortalecimento da segurança pública. Aplaudimos o que
nos oferecem, aplaudimos o morticínio.
A limitação cognitiva não está restrita a um
campo político. O governo federal definiu, como sua prioridade no campo da
segurança pública, a aprovação de uma Proposta de E menda à Cons t i t u i ç ã
o (PEC). Acredita que novos artigos no texto constitucional irão prover outro
patamar de segurança à população. Haja irrealismo, haja pensamento mágico.
A chacina da semana passada evocou a memória
do massacre do Carandiru, em 1992, com 111 mortos. Nessas três décadas, muita
coisa mudou no País. Todos os índices sociais melhoraram. Mas a criminalidade
organizada piorou enormemente, com a colaboração direta do encarceramento em
massa. Em 1992, havia cerca de 110 mil presos no Brasil. Hoje, são cerca de 900
mil. O que o governo federal tem feito para mudar essa realidade?
Um aspecto muitas vezes relegado é a
competência do Executivo para descriminalizar as substâncias entorpecentes. É o
Legislativo quem cria a Lei das Drogas, mas é o Executivo quem fixa quais são
as substâncias proibidas. O que o governo federal fez com esse poder? Usou-o
para reduzir o encarceramento ou optou pelo caminho, à primeira vista,
eleitoralmente mais fácil?
Não há balas de prata na segurança pública,
mas isso não significa que não existam passos efetivos a serem dados. No início
do ano, escrevi neste espaço: “Diversas cidades e países enfrentaram seu
cenário de criminalidade e foram capazes de instaurar um novo panorama de paz e
tranquilidade. No entanto, para entrar na história, é preciso parar de perder
oportunidades, é preciso trabalhar” ( Insegurança não é fruto do acaso,
Estadão, 1/1, A4).
Por enquanto, as autoridades estão entrando
para a história pelo número de mortos, não pela segurança pública promovida.
Até quando vamos premiar eleitoralmente esse comportamento? Até quando vamos
querer esse comportamento? A barbárie não é só do governador do Rio de Janeiro.
É nossa barbárie. É nossa torpeza. Sejamos honestos. A insegurança na qual
vivemos não é uma maldição do destino. Tem sido uma reiterada escolha da
sociedade brasileira.

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