Os tempos de hoje, herdeiros daquelas conflagrações e da “Guerra Fria” (sua continuidade em novos termos) — e de seu principal fruto, o colapso da URSS, com a reconfiguração do mundo e da visão de mundo que representava a promessa socialista —, não lograram proporcionar o convívio com a paz: guerra da Coreia, invasão do Vietnã, as guerras de libertação nacional espalhadas pelo mundo, a hecatombe que se abateu sobre o chamado Oriente Médio etc. Passamos a lidar com a amarga sensação de viver em intervalos de guerras, pois assim a humanidade atravessou todo o século passado, e assim estamos caminhando nas primeiras décadas deste terceiro milênio, sem sabermos que guerra é esta do nosso tempo, e muito menos para onde ela está nos levando.
Sua raiz é, ainda, a disputa pela hegemonia mundial, e esta não está resolvida — nem jamais estará —, pois as soluções historicamente conhecidas são sempre pro tempore. Assim, podemos dizer que tanto a Primeira quanto a Segunda Guerra Mundial do século passado eram inevitáveis, pois atendiam a necessidades de domínio e poder de que tanto carece o imperialismo, Moloch que mais tem fome quanto mais se alimenta da dieta do dominado.
O fato novo, no quadro de guerra
explícita, terá sido, nos idos do século passado, a “Guerra Fria”: o engenho
político que, ao administrar as disputas, adiou o conflito temido. A polaridade
dos arsenais atômicos, levados a extremos de destruição impensáveis, convenceu
os senhores do mundo do desatino de um conflito que não ensejava a
possibilidade de vencedores.
Em
outros termos, a iminência da destruição absoluta, tornada factualmente
possível, faria da paz um imperativo. O medo, ou o instinto de sobrevivência,
manteve a disputa em níveis de certa razoabilidade, embora o antagonismo entre
as potências produzisse ou amplificasse confrontos mortíferos na periferia do
sistema. É o caráter do cenário internacional de hoje, pontuado por focos de
tensão e de conflitos de toda ordem: é a paz possível, a paz assegurada por
guerras sob o controle das superpotências; guerras que não terminam, que
se sucedem umas às outras, enquanto afastam do horizonte imediato o grande
embate do fim dos tempos.
A
disputa pela hegemonia se mantém de pé, mas a “grande guerra”, agora, opera-se
“pelas beiradas”. A Segunda Guerra Mundial (1939–1945) pôs em cena a dissensão
intercapitalista ao opor o Eixo (Alemanha, Japão, Itália) aos Aliados,
condomínio que reunia, à frente de todos, os EUA e a URSS (invadida pela
Alemanha), cujas respectivas vitórias políticas, militares e territoriais
impuseram a dita Guerra Fria. Vencida a ameaça nazista e superado o exercício
intercapitalista, o conflito dos dois mundos passava a ser o confronto dos
blocos comunista e capitalista. O enredo muda.
Vivemos
uma outra Guerra Fria, coerente com os desafios de hoje: um intermezzo entre
a polaridade comercial, política e militar escancarada (EUA – China) e seu esperável desfecho,
gestado nas entranhas do processo histórico.
No desenho deste cenário em construção, os países da periferia do capitalismo não são arquitetos, mas nos incumbe saber que papel desejamos e podemos desempenhar; que espaço precisamos defender; que projetos de sociedade, nação, país podemos perseguir; é o espaço que as circunstâncias de hoje nos ensejam. É o que ditam nosso tamanho e nossa população, e é o que dita a realidade geopolítica que nos faz, brasileiros, irmãos do México.
O giro conservador que percorre o mundo
como rastilho de pólvora, à beira da naturalização, e com o qual hoje
convivemos — em nosso continente e em casa — não é um determinismo, muito menos
capricho dos deuses. Fenômeno histórico, precisa ser compreendido, pois esta é
a melhor, senão a única forma de conter seu avanço.
O
enfrentamento que nos incumbe é político-ideológico, e só adquire sentido
quando se transforma em ação. Os recuos do passado abriram as sendas que
possibilitaram o quase livre caminhar do fascismo e de suas variações
históricas, todas fundadas na brutalidade devastadora das liberdades,
espancando esperanças, sonhos, projetos de uma civilização minimamente digna.
Daí
a promoção da violência, de mãos dadas com o farsesco clamor pelo seu combate —
este, o novo cantochão da direita, no mundo, e aqui e agora, devolvendo
aos arquivos as prédicas sobre liberdade e democracia. Não se trata da
violência larvar, intrínseca à sociedade de classes (violência que se nega, que
se escamoteia): trata-se da violência dos aparelhos repressores dos Estados,
que caminha da repressão indiscriminada de imigrantes ao genocídio
de palestinos e a destruição de Gaza.
Todos
estamos e devemos estar preocupados com nosso processo eleitoral, mas ele
precisa ser analisado e enfrentado como desdobramento de fenômeno ainda maior,
e mais importante, porque fonte de tudo: o crescimento das ideologias e da ação
concertada da direita, da extrema-direita e dos reacionários de um modo geral,
e sua forte influência sobre as massas populares e, portanto, sobre o
comportamento político de nosso povo, como estamos vendo mais claramente desde
2018, como vimos em 2022 e como poderemos ver em 2026.
Este
é o fato, concreto e contundente; mas não encerra a história toda: o dever da
interpretação sociológica, superando a aparência do fenômeno, é identificar sua
essência, os condicionantes da formação do pensamento de direita no Brasil, sua
gênese e o desenvolvimento que vem alcançando nas últimas décadas, quando a
leitura do processo social que antecedeu o fim da ditadura — nomeadamente a
partir de 2002, com a ascensão de governos de centro-esquerda — sugeria o
reencontro do projeto nacional-democrático, com justificadas aspirações de
justiça social.
A
reversão de expectativas não foi abrupta — raramente é. Em todo o mundo, a
social-democracia vinha se revelando inepta para enfrentar os desafios impostos
pelo mundo real. Cessada a “ameaça comunista”, o novo fantasma era a crise
social (uma vez mais o desemprego, agora acicatado pela crise do trabalho; a
brutal e crescente concentração de renda), quando mais alto era o
desenvolvimento econômico, científico e tecnológico.
Cresceram as disparidades entre as nações e, dentro
delas, entre seus povos.
No
Brasil, os sinais de desarranjo — ou desencanto das massas — já poderiam ser
vistos a partir dos idos de 2013. O desenho retrata o avanço do pensamento e da
ação da direita, com suas vinculações internacionais, palmilhando o
fracasso do neoliberalismo. Ela salta das ruas, muitas vezes seguindo as regras
do jogo dito democrático-representativo burguês, para conquistar a
centralidade do poder no mundo que o capitalismo globaliza para melhor
governar.
Refiro-me,
evidentemente, à hegemonia dos EUA e, neles, à ascensão do trumpismo, o novo
farol do pensamento e da ação articulada da direita, da direita tout
court e da direita belicosa no mundo.
No Brasil, o registro óbvio e inevitável é o da
ascensão da extrema-direita, hegemonizada pelo bolsonarismo. Trata-se de fato
objetivo, nada obstante o insucesso desse campo na eleição presidencial de 2022
e a frustração do golpe de 8 de janeiro de 2023, após maquinação de mais de
quatro anos e comprometimento dos altos escalões das Forças Armadas. Maquinação
que permanece na ordem do dia, pois não contou, até aqui, com ampla rejeição da
sociedade.
Assim,
põe-se de manifesto a complexidade do fenômeno, que não é uma contingência
nossa, e não é fenômeno apenas político, mas igualmente econômico, social e
cultural; e, em todas as hipóteses, interfere na qualidade do poder e na
estabilidade da ordem internacional, quando, em todo o mundo — e em particular
entre nós —, cresce (embora ainda livre do acirramento merecido) o conflito
inerente à sociedade de classes, que o sistema, ainda quando governado pela
centro-esquerda (em condomínio com a direita dita civilizada), cuida de
naturalizar.
Trata-se
de processo, repito, que insinua configuração global. Mas, sem ignorar que
nenhum país é uma autarquia política, cuidemos, pois, nossa história e do
presente que nos aflige, para podermos modificá-lo conscientes de nossa
contingência de país no qual o processo de mudanças se converte na conservação
do statu quo, e o mantra da ordem nos manda evitar qualquer risco
de ruptura. É a ideologia reacionária da conciliação, servidora da Ordem, mãe
do atraso.
***
Fogo
no parque oligárquico — Em país que se desindustrializa, o horizonte da
burguesia residente é a especulação financeira: Daniel Vorcaro, preso quando
tentava fugir do país, é a contrafação do Barão de Mauá que a Faria
Lima e o estamento puderam produzir. O estouro do Banco Master é apenas mais um
episódio de uma série: Banco Nacional, Bamerindus, Banco Santos, Banco Rural,
Banco Halles, Banco Econômico... Para Maria Cristina Fernandes, colunista de
mão cheia do Valor, a “prisão de Vorcaro assusta mais a política
que a de Bolsonaro”. Quem mais, além dos governadores de RJ e DF, tem culpa
nesse cartório e muita explicação a oferecer à Justiça e à sociedade? A punção
do tumor se deveu a investigações da PF, cujos recursos a direita, na Câmara,
precatadamente forceja por reduzir.
Palestina
abandonada — A ONU produziu uma das páginas
mais lamentáveis de sua história na última segunda-feira (17/11), quando o
Conselho de Segurança acatou o plano neocolonial da autocracia estadunidense
para consolidar a tomada de Gaza. Rússia e China, que poderiam e deveriam ter
vetado a ignomínia, escolheram se abster. Países árabes e Autoridade Palestina,
que tinham a obrigação — inclusive moral — de se opor à espoliação, não o
fizeram. É solitário morrer em Gaza.
País
no espelho – De acordo com o MDS, das 95
milhões de pessoas inscritas no CadÚnico, que abriga a parcela mais vulnerável
da população brasileira, mais de 60 milhões se declaram negras. Dentre elas,
mais de 37 milhões são mulheres pretas e pardas. Muito além de um feriado
nacional, o Dia da Consciência Negra (20/11) é uma data para reflexão
do país como um todo.
*Com a colaboração de Pedro Amaral

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