O Estado de S. Paulo
A fraude da pejotização não pode ser legitimada pelo Judiciário
O Supremo Tribunal Federal (STF) está
julgando a licitude de contratos de prestação de serviços adotados em
substituição ao contrato de trabalho para cumprimento de atividades-fim da
empresa empregadora.
Diante do elevadíssimo número de processos sobre essa questão, objeto também do Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.532.603/PR, o ministro Gilmar Mendes, relator, determinou a suspensão de todos os feitos, atribuindo, assim, à matéria o caráter de repercussão geral. Logo, a decisão de mérito a ser proferida deverá ser observada por todos os tribunais.
O problema está posto como relativo à
liberdade ou não de, na atividade econômica, submeter essa relação à rigidez da
Consolidação de Leis do Trabalho (CLT) ou adotar “modelo flexibilizado”,
baseado na autonomia privada para que empregado e empregador fixem a forma de
contratação. Essa poderia ser viabilizada por via da criação, pelo empregado,
de uma pessoa jurídica, Microempreendedor Individual (MEI). Essa pessoa
jurídica seria contratada fora do sistema trabalhista, sem o ônus para o
empregador de pagar contribuição do INSS, 13.º salário, férias e FGTS.
Se assim for, a fraude estará caracterizada,
figurando uma contratação entre empresas. Trata-se de mero disfarce, pois o
trabalhador cumprirá, com regularidade e subordinação, a tarefa-fim da empresa,
recebendo salário por via de pessoa jurídica individual, desonerando o
empregador do pagamento dos encargos sociais.
Não se trata apenas de confronto entre
posições ideológicas sobre a admissão, ou não, da plena liberdade de contratar
num mundo globalizado, com novas formas de prestação de serviços, sem horário
ou local de trabalho. Trata-se, sim, de desprezo ao espírito da Constituição,
ao seu cerne: promoção de acesso aos direitos sociais.
Com efeito, não por acaso, no seu preâmbulo,
a Constituição assegura ao cidadão o exercício de seus direitos sociais e
individuais, mencionando, em primeiro lugar, os direitos sociais. Do mesmo
modo, no artigo 3.º, estatui serem objetivos fundamentais da República criar
uma sociedade justa mediante a erradicação da pobreza e a redução das
desigualdades sociais.
Os direitos sociais são considerados fundamentais, assim como os direitos individuais. E com razão, pois de nada adiantaria a pessoa ter liberdade de ir e vir ou de se associar, se não desfrutasse dos direitos elencados no artigo 6.º que impõe a garantia de o Estado prover saúde, alimentação, segurança, educação, previdência social e assistência aos vulneráveis.
A busca por um país solidário e justo
pressupõe tratar a todos como se fossem iguais, programando-se o acesso da
maioria ao bem-estar social e viabilizando a fruição de bens que garantam um
mínimo de vida digna. A universalidade desses direitos é o primeiro caminho na
perseguição à meta da igualdade.
A diferença social, evidentemente, existe e
torna legítimo que os mais bem aquinhoados contribuam para encurtar, a cada
passo, a distância que os separa dos mais vulneráveis.
Na ordem econômica, a Constituição privilegia
o valor social do trabalho que, como no artigo 2.º, é mencionado antes da livre
iniciativa, realçando a importância da labuta diária da maioria do povo
brasileiro. Encontra-se no título VIII da Constituição, ordem social, um
programa, uma direção, para instalar o Estado Social, fundado no princípio da
igualdade, tendo por base o primado do trabalho e por objetivo o bem-estar
geral.
A seguridade social, por meio da
universalidade e da distributividade dos benefícios relativos à saúde,
previdência e assistência social, pretende promover a realização desses
objetivos fundamentais, constituindo promessas das quais se deve incumbir o
Estado e cuja eficácia depende de seu implemento contínuo pelos administradores
dos entes públicos.
E como se financia esse programa
constitucional da busca da igualdade pela viabilização do acesso aos direitos
sociais?
Por via das receitas previstas no artigo 195
da Constituição, sendo a mais importante fonte justamente a contribuição social
do empregador ou da empresa, incidente sobre a folha de salários e a do
trabalhador.
Pela pejotização, o empregador, para não
pagar a contribuição social, em manifesta fraude, contrata pessoa jurídica
individual que é o empregado. Como ressaltado na audiência pública organizada
pelo STF, de 5 milhões e meio de rescisões de contrato de trabalho, 4 milhões e
meio entre 2022 e meados de 2025, se converteram em contratação do mesmo
trabalhador, para o mesmo serviço por via de MEI, em burla ao laço
empregatício.
Prejudicado fica o empregado, sem Fundo de
Garantia, férias, 13.º salário. Também prejudicado fica o País, pois se sonegam
meios para a instalação do Estado Social, em afronta à Constituição no seu
âmago.
De outra parte, se reconhece a necessidade de
regular situações que não devam estar submetidas necessariamente às regras da
CLT. Para tanto, o País carece da previsão legal de formas específicas de
contratação e de contribuição, em proteção ao trabalhador. Mas a fraude da
pejotização não pode ser legitimada pelo Judiciário.

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