sábado, 1 de novembro de 2025

Pejotização é inconstitucional, por Miguel Reale Junior

O Estado de S. Paulo

A fraude da pejotização não pode ser legitimada pelo Judiciário

O Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando a licitude de contratos de prestação de serviços adotados em substituição ao contrato de trabalho para cumprimento de atividades-fim da empresa empregadora.

Diante do elevadíssimo número de processos sobre essa questão, objeto também do Recurso Extraordinário com Agravo n.º 1.532.603/PR, o ministro Gilmar Mendes, relator, determinou a suspensão de todos os feitos, atribuindo, assim, à matéria o caráter de repercussão geral. Logo, a decisão de mérito a ser proferida deverá ser observada por todos os tribunais.

O problema está posto como relativo à liberdade ou não de, na atividade econômica, submeter essa relação à rigidez da Consolidação de Leis do Trabalho (CLT) ou adotar “modelo flexibilizado”, baseado na autonomia privada para que empregado e empregador fixem a forma de contratação. Essa poderia ser viabilizada por via da criação, pelo empregado, de uma pessoa jurídica, Microempreendedor Individual (MEI). Essa pessoa jurídica seria contratada fora do sistema trabalhista, sem o ônus para o empregador de pagar contribuição do INSS, 13.º salário, férias e FGTS.

Se assim for, a fraude estará caracterizada, figurando uma contratação entre empresas. Trata-se de mero disfarce, pois o trabalhador cumprirá, com regularidade e subordinação, a tarefa-fim da empresa, recebendo salário por via de pessoa jurídica individual, desonerando o empregador do pagamento dos encargos sociais.

Não se trata apenas de confronto entre posições ideológicas sobre a admissão, ou não, da plena liberdade de contratar num mundo globalizado, com novas formas de prestação de serviços, sem horário ou local de trabalho. Trata-se, sim, de desprezo ao espírito da Constituição, ao seu cerne: promoção de acesso aos direitos sociais.

Com efeito, não por acaso, no seu preâmbulo, a Constituição assegura ao cidadão o exercício de seus direitos sociais e individuais, mencionando, em primeiro lugar, os direitos sociais. Do mesmo modo, no artigo 3.º, estatui serem objetivos fundamentais da República criar uma sociedade justa mediante a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais.

Os direitos sociais são considerados fundamentais, assim como os direitos individuais. E com razão, pois de nada adiantaria a pessoa ter liberdade de ir e vir ou de se associar, se não desfrutasse dos direitos elencados no artigo 6.º que impõe a garantia de o Estado prover saúde, alimentação, segurança, educação, previdência social e assistência aos vulneráveis.

A busca por um país solidário e justo pressupõe tratar a todos como se fossem iguais, programando-se o acesso da maioria ao bem-estar social e viabilizando a fruição de bens que garantam um mínimo de vida digna. A universalidade desses direitos é o primeiro caminho na perseguição à meta da igualdade.

A diferença social, evidentemente, existe e torna legítimo que os mais bem aquinhoados contribuam para encurtar, a cada passo, a distância que os separa dos mais vulneráveis.

Na ordem econômica, a Constituição privilegia o valor social do trabalho que, como no artigo 2.º, é mencionado antes da livre iniciativa, realçando a importância da labuta diária da maioria do povo brasileiro. Encontra-se no título VIII da Constituição, ordem social, um programa, uma direção, para instalar o Estado Social, fundado no princípio da igualdade, tendo por base o primado do trabalho e por objetivo o bem-estar geral.

A seguridade social, por meio da universalidade e da distributividade dos benefícios relativos à saúde, previdência e assistência social, pretende promover a realização desses objetivos fundamentais, constituindo promessas das quais se deve incumbir o Estado e cuja eficácia depende de seu implemento contínuo pelos administradores dos entes públicos.

E como se financia esse programa constitucional da busca da igualdade pela viabilização do acesso aos direitos sociais?

Por via das receitas previstas no artigo 195 da Constituição, sendo a mais importante fonte justamente a contribuição social do empregador ou da empresa, incidente sobre a folha de salários e a do trabalhador.

Pela pejotização, o empregador, para não pagar a contribuição social, em manifesta fraude, contrata pessoa jurídica individual que é o empregado. Como ressaltado na audiência pública organizada pelo STF, de 5 milhões e meio de rescisões de contrato de trabalho, 4 milhões e meio entre 2022 e meados de 2025, se converteram em contratação do mesmo trabalhador, para o mesmo serviço por via de MEI, em burla ao laço empregatício.

Prejudicado fica o empregado, sem Fundo de Garantia, férias, 13.º salário. Também prejudicado fica o País, pois se sonegam meios para a instalação do Estado Social, em afronta à Constituição no seu âmago.

De outra parte, se reconhece a necessidade de regular situações que não devam estar submetidas necessariamente às regras da CLT. Para tanto, o País carece da previsão legal de formas específicas de contratação e de contribuição, em proteção ao trabalhador. Mas a fraude da pejotização não pode ser legitimada pelo Judiciário. 

 

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