Folha de S. Paulo
Operação policial reproduziu velhas práticas
do Estado em meio a novos discursos de teor fascista
Defesa da morte como política pública ganha
destaque e mostra mudança brusca no Brasil
[RESUMO] Operação contra
o Comando
Vermelho nos complexos
do Alemão e da Penha, a mais letal da história do país, com 121
mortos, expõe tanto continuidades (incursões violentas em favelas,
desrespeito a direitos humanos) quanto mudanças no cenário brasileiro, como a
centralidade que o culto à morte passou a ter na esfera pública, tornando
desnecessárias as justificativas para matanças. Em meio a uma direita
radicalizada e uma esquerda com dificuldade a assumir papel relevante neste
debate, não há coalizão capaz de apoiar políticas alternativas de combate ao
crime.
A chacina ocorrida no Complexo do Alemão
expõe evidentes continuidades. Há, por um lado, a renitente violência com
a qual o Estado brasileiro trata regularmente certos grupos sociais. Despontam
ainda permanências mais recentes, como a política de guerra empreendida pelo
estado do Rio de
Janeiro, que ultrapassa os marcos históricos dos regimes políticos, sejam
eles democráticos ou autoritários.
De Carlos
Lacerda a Chagas
Freitas, passando por Marcelo
Alencar e Sérgio
Cabral, as incursões violentas da polícia nas favelas são uma das
principais formas de impor certa ideia de ordem, definida por um uso seletivo
da lei, hábil em limitar os direitos dos moradores.
Por outro lado, em meio às mudanças no
território, há a contínua dominação territorial do crime organizado, um
problema grave não apenas para o Alemão ou a Penha, mas para a implantação de
uma ordem democrática no Brasil.
A ênfase nas permanências ofusca, entretanto, aspectos centrais do evento e mudanças importantes no cenário político do Brasil. Se a ação policial segue um roteiro em vários aspectos semelhante, o discurso público a justificá-la tem elementos novos, ou ao menos relegados às margens nas últimas décadas, e aponta para um lugar diferente da segurança pública.
Menções explícitas ao crime organizado como
ameaças à "soberania nacional" e a definição dos criminosos como
"narcoguerrilheiros" buscam justificar não apenas uma mudança de
governo, a partir de cálculos eleitorais, mas uma ruptura com o atual regime
político, como bem apontou
Gabriel Feltran há alguns dias nas páginas da Folha.
As inspirações internacionais são evidentes.
Um primeiro personagem é Nayib
Bukele, presidente de El Salvador,
que constrói sua popularidade a partir de uma política de segurança pública
declaradamente amparada na violência policial, no encarceramento em massa e no
desrespeito a direitos individuais.
Ainda mais influente é Donald Trump,
que faz da relação entre criminalidade e soberania nacional um dos centros do
seu governo de ultradireita, em argumentação capaz de justificar desde ações
militares em grandes cidades norte-americanas até empreitadas militares
internacionais.
O discurso encontra terreno fértil no Brasil.
Retratar parte da população como criminosa é estratégia frequente na história
nacional, das representações racializadas da vagabundagem à caçada aos
subversivos.
Sem grandes confrontos externos, as Forças
Armadas brasileiras há muito elegem inimigos internos, em regra
tratados como tipos especiais de criminosos, que ameaçam não apenas alguns
indivíduos ou mesmo parte da ordem social, mas colocam em risco os princípios
da coletividade.
Há, todavia, uma mudança qualitativa nas duas
últimas décadas. Parte central da identidade da ultradireita depende da
representação de amplos setores da sociedade não como adversários, que seriam
derrotados eleitoralmente, mas como inimigos a serem combatidos e
preferencialmente exterminados.
Se o movimento apresenta diversas
continuidades, há uma dimensão ostensiva de culto estético à morte, do elogio
do extermínio do inimigo como um fim em si, que destoa dos exemplos históricos
mais frequentes.
Durante a ditadura militar, por exemplo,
massacres de certos grupos sociais eram usualmente tratados como males
necessários, ou efeitos colaterais de medidas imprescindíveis para manter a
ordem. Não é esta, todavia, a retórica atual.
A dança
do ex-governador Wilson Witzel quando de uma execução na Ponte
Rio-Niterói, as reiteradas menções a tortura feitas pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro e as declarações do atual governador do Rio, Cláudio
Castro, sobre o sucesso da operação compartilham de uma mesma representação
da morte dos "criminosos" como algo moralmente positivo em si, sem a
necessidade de uma justificativa maior.
Parte do fenômeno decorre de certo movimento
de espetacularização da política a partir das redes sociais, nas quais
frequentemente se recorre às maiores atrocidades como uma forma de acumular
likes ou mobilizar seguidores.
Há, contudo, também a perda de velhos
consensos construídos no pós-1945, que não impediram anteriormente as matanças
estatais, porém tornavam inadequado certo tipo de culto à morte. Perdida certa
memória de repulsa, elementos da linguagem política fascista se tornaram outra
vez centrais na esfera pública.
A defesa da morte como política pública não
está mais nas vozes de parlamentares secundários, mesmo que populares,
como Tenório
Cavalcante, ou personagens bizarros, como Sivuca, mas como um dos
principais discursos de um ex-presidente da República. Bolsonaro defende a
tortura de um modo que líderes autoritários anteriores nunca ousaram.
O retorno do fascismo não passa, entretanto,
pela reconstrução de um regime político pregresso, mas emerge em um cenário bem
distinto e não tem, como outrora, o evidente protagonismo do mundo mais vasto
da ultradireita.
As polícias são, é claro, uma base social
tradicional e fortemente mobilizada pelos traços mais clássicos do
"fascio", como o elogio da violência e da ação em detrimento da
razão, assim como o cultivo de certa ideia de um povo verdadeiro, que deve ser
defendido e revelado por homens em armas.
O olhar para a cena mais ampla revela,
todavia, outros discursos simpáticos à violência e distintos da tradição
fascista, como certo ideal ultraliberal que reivindica o uso de armas e a
autodefesa dos indivíduos. Tal linguagem política mobiliza grupos políticos
distintos e soa mais palatável para parte das elites, de empresários a
políticos da direita tradicional.
Assim como em outros momentos históricos, as
linguagens políticas da ultradireita também tratam de problemas reais. Do mesmo
modo que o fascismo surgiu a partir das mazelas concretas da guerra, o atual
cenário lida com condições sociais e de segurança
pública gravíssimas, o que bem sinalizam o altíssimo número de mortes
violentas no país. Os descalabros e as violências dos grupos armados se voltam
sobretudo contra os moradores dos territórios, situação intolerável em qualquer
ideia de ordem democrática.
Reconhecer a gravidade da situação não
implica, contudo, naturalizar saídas extremas ou violentas. Uma vez que se
descumprem princípios constitucionais, como a garantia à vida, está em xeque a
própria ordem social e jurídica. Não existe, por outro lado, qualquer garantia
de eficácia, como experiências pregressas bem demonstram.
No atual debate, há frequente recurso a uma
suposta natureza
"conservadora" da maior parte da população, que, por isso,
apoiaria a ação no Alemão. O argumento tem mobilizado uma série de pesquisas de
opinião feitas no calor da hora, que foram tomadas, por diversos atores, como
verdades objetivas sobre a visão popular a respeito da operação.
Um elemento básico das pesquisas de opinião é
como elas respondem à conjuntura e são sensíveis ao momento. A conjunção entre
a cobertura pública do massacre e a realização à quente das pesquisas exige
muita cautela na análise dos dados, de modo a matizá-los a partir do momento.
Há, sem dúvida, grande apoio da população a soluções
violentas contra a criminalidade, todavia a ideia de um respaldo irrestrito
e generalizado a um massacre é, no mínimo, precoce.
Não resta dúvida do papel secundário da
esquerda neste debate. Ideias antes rejeitadas na esfera pública são cada vez
mais fortes, sintoma da crescente influência da ultradireita na conformação dos
limites do debate político.
Os diagnósticos sobre as possibilidades de
ação dos atores progressistas parecem, contudo, assumir feição excessivamente
idealista, como se a questão fosse a escassez de propostas ou o pouco
conhecimento da realidade. Em tentativa de emular moderação, parte da imprensa
e da militância das redes sociais apenas reproduz chavões da ultradireita.
A questão, entretanto, está mais no campo da
capacidade de articulação política do que da posse de conhecimento técnico. Não
há uma coalizão capaz de apoiar políticas
alternativas de combate ao crime.
Dado o grande pragmatismo da esquerda nas
mais diversas agendas, não parece crível que tudo se restrinja a um purismo de
todo o campo, como parte das representações parece propor. Se faz necessário
investigar como as lógicas eleitorais e a relação com as bases sociais explicam
parte do fenômeno, cujo diagnóstico por certo ultrapassa um texto com este.
Resta, porém, a certeza de que as saídas não
passam pela adesão a traços da dinâmica fascista, por muitos tratada como
solução realista. Capitular deste modo retira a legitimidade da esquerda como
ator capaz de disputar o tema.
Há, contudo, uma dinâmica ainda mais
perversa. O fascismo se estrutura a partir da ideia de inimigos, sociais e
intelectuais, de modo que, com frequência, a capitulação estimula novos
processos de radicalização. Ao invés da saciedade gerada pela ideia de
"faxina" dos supostos criminosos, virá a exigência de ações cada vez
mais frequentes e intensas, em um cenário que só aprofundará o horror vigente.
*Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

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