CartaCapital
O mundo volta a encarar a ameaça de um conflito global
O mundo parece estar enlouquecendo.
A melhor forma de colocar essa questão é comparar o tempo atual com o da Primeira Guerra Mundial. O que a deflagrou foi um pequeno estopim: um tiro disparado por um jovem doentio, matando o herdeiro do Império Austro-Húngaro em Sarajevo, na Bósnia então ocupada pelos austro-húngaros e disputada pelos sérvios. Isso levou a Áustria-Hungria a dirigir um ultimato à Sérvia, aliada da Rússia, que por sua vez tinha uma aliança com a França, aliada também da Inglaterra. Daí houve todo um conjunto de alianças que levou à guerra, com os alemães e os turcos otomanos dando apoio à Áustria-Hungria. Rapidamente, em pouco mais de um mês, a Europa estava conflagrada. Gente que tinha saído para as férias de verão subitamente se viu privada de voltar, detida em território inimigo. Amigos e parentes estavam uns em guerra contra os outros. (Quem quiser, veja o lindo filme Jules e Jim, de François Truffaut.)
O resultado foi o conflito que mais matou
seres humanos até então e que representou também a industrialização do
morticínio bélico. Foi chamado de Grande Guerra e mais tarde, com a guerra de
1939–1945, passou a se denominar Primeira Guerra Mundial.
De lá para cá, como sustentei em um artigo
publicado em meu livro O Valor Volta à Política (Sesc São Paulo e
Ed. Unifesp, 2023), houve um avanço grande da diplomacia no sentido de evitar
tais automatismos bélicos. Embora continuem a existir alianças no mundo, elas
evitam ser tão letais como foram aquelas da Primeira Guerra Mundial e as que
até então existiam. Toda a arte diplomática consiste em impedir, justamente,
que um pequeno acontecimento, por grave que seja, arraste inúmeros países para
um conflito amplo e mortífero.
Nesse plano, há uma nação em especial da qual
podemos nos orgulhar, o Brasil. Nosso país evita qualquer aventura chamada de
intervenção externa. Lembro-me de quando começou a guerra civil na Síria, e um
jornalista de qualidade, o falecido Clóvis Rossi, reclamou de que o Brasil não
interviesse, não apoiasse o povo sírio, massacrado por seu ditador, Assad. Mas
Rossi errou, porque justamente os países que intervieram na Síria – como
intervieram na Somália, na Líbia ou no Afeganistão – só pioraram a situação.
Nossos diplomatas são sábios e têm o cuidado de não agravar o status quo. Devem
conhecer o ditado de que “para todo problema complexo há uma solução simples –
e errada” (Mencken). A chave da boa diplomacia é, assim, em vez de alastrar o
problema, delimitá-lo, confiná-lo e, se não for possível resolvê-lo por
completo, ao menos reduzir sua dimensão e os danos que cause.
No presente, há, porém, dois conflitos que
podem generalizar-se. A Rússia invadiu a Ucrânia, no que a meu ver é totalmente
injustificado, embora se possa compreender que Moscou não deseje ter mísseis
norte-americanos às suas fronteiras – assim como os estadunidenses não toleram
sequer a existência de uma Cuba independente perto de seu território. Desse
conflito tivemos uma adesão automática de toda a Otan no apoio a Kiev, embora o
atual governo dos Estados Unidos tenha reduzido esse apoio. Na verdade, o
presidente anterior, Joe Biden, cometeu um grande erro ao misturar o conflito
com a Rússia, decorrente da guerra ucraniana, com um conflito desnecessário,
naquele momento, com a China. Sabemos que a China constitui hoje o principal
desafio à hegemonia norte-americana no mundo, e que Trump 1 foi o primeiro a
elevar o discurso contra ela, mas Biden fez Washington brigar ao mesmo tempo
com as duas grandes potências ex-comunistas, Rússia e China, o que não foi nada
sensato.
O armamentismo fortalece o nacionalismo mais
tosco
Ao mesmo tempo, a guerra no Oriente Médio
também pode se expandir, se houver aliados se colocando de um lado ou de outro.
Isso tudo gera a possibilidade de um conflito mais amplo. Há poucas semanas, o
chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da França disse que os franceses têm
que se acostumar a ver seus jovens morrerem em batalha, o que chocou muitos.
Isso porque a ideia da juventude morrendo em guerra foi esquecida na Europa ao
longo dos últimos 80 anos, em que o Velho Mundo, pela primeira vez na sua
história, não foi atravessado por guerras – exceção assim feita, na sua
periferia, à guerra na extinta Iugoslávia e, agora, ao conflito bélico no
território ucraniano.
Ao mesmo tempo, por parte daqueles que se
indignam com a agressão russa, temos a fantasia de que as tropas moscovitas
poderão chegar a Varsóvia, Berlim ou mesmo Lisboa. Isso não parece nada
provável, dado que os russos não foram capazes sequer de conquistar a Ucrânia
em quase quatro anos de guerra, não ocupando nem mesmo 20% do território.
Há assim, agora, um grande risco de guerra
generalizada, que, além disso, cobra um preço elevado das sociedades europeias,
desviando dinheiro de programas sociais para o armamento. Pior ainda: além de
espalhar miséria, o armamentismo fortalece o nacionalismo mais tosco e a
xenofobia. Vivemos o risco de um enorme retrocesso civilizacional.
É preciso lembrar que, embora Trump, apesar
de todas as suas políticas extremamente reacionárias e contrárias aos direitos
humanos, seja favorável à paz, ou ao menos ao fim das guerras, e proponha
soluções (com o único mérito de deterem o morticínio, embora não resolvam suas
causas), existe o risco de que em troca de sua leniência com Putin ele obtenha
sinal verde deste para atacar a Venezuela, que hoje vive sob uma ditadura que
não quis publicar os resultados verdadeiros da eleição do ano passado. Isso
traria a guerra para a única parte do mundo, o subcontinente latino-americano,
que hoje não vive, e já faz bastante tempo, guerras.
Última inquietação: as regiões do mundo onde
é mais forte a democracia, a União Europeia e a América Latina, correm também o
risco de se desentender e, até, de ficar em lados opostos se guerra houver. A
esquerda latino-americana, por razões que a razão desconhece, se sente mais
próxima de Putin, enquanto a europeia o repudia.
A situação é, portanto, muito preocupante.
*Foi ministro da Educação e presidente da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital,
em 31 de dezembro de 2025.

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