segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

A Europa joga seu futuro na Ucrânia. Por Demétrio Magnoli

O Globo

A paz, nos termos de Trump, implodiria o edifício nacional ucraniano

Na hora da verdade, a União Europeia (UE) só deu meio passo à frente. No lugar do plano de um multibilionário empréstimo à Ucrânia baseado nos ativos russos congelados, fechou um empréstimo de € 90 bilhões com recursos próprios. É sua resposta ao intercâmbio diplomático bilateral Trump-Putin, destinado a traçar o destino da Ucrânia à margem da Europa — e da própria Ucrânia. Mas, sobretudo, surge como réplica à Estratégia de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) divulgada pela Casa Branca.

A NSS diagnostica um declínio histórico radical da Europa: “apagamento civilizacional”, derivado do abandono de “valores” e da perda de “identidades nacionais”. Sentença de morte da aliança transatlântica? Quase. Segundo a doutrina Trump, uma reversão providencial dependeria da transferência do poder aos “partidos patrióticos europeus”.

Os tais “partidos patrióticos” são correntes da direita nacionalista e da extrema direita — como Viktor Orbán, da Hungria, Robert Fico, da Eslováquia, a AfD alemã ou a Reunião Nacional francesa — que ameaçam a estabilidade das democracias liberais europeias. O Kremlin, que mantém estreitas relações com tais correntes, descreveu a NSS como “largamente consistente” com a visão russa sobre a ordem mundial — e, ecoando o documento da Casa Branca, Putin apontou “total degradação” da Europa.

Na Conferência de Segurança Europeia de Munique, em fevereiro, J.D. Vance declarou que o perigo rondando a Europa “não é a Rússia, não é a China”, mas a “ameaça de dentro, o recuo europeu de seus valores mais fundamentais”. O vice de Trump tinha razão em alguns pontos, como as restrições à liberdade de expressão de atores políticos pró-russos. Contudo, como a NSS viria a esclarecer, a principal “ameaça de dentro”, do ponto de vista da Casa Branca, é a imigração.

A “Europa cristã” dos discursos xenófobos de Orbán é a Europa ideal do nacionalismo trumpiano. É nessa moldura ideológica que se inscreve a parceria Trump-Putin. A “Rússia eterna”, tradicional e reacionária, emerge como modelo para a reinvenção da Europa almejada pelo governo dos Estados Unidos. Precisamente por esse motivo, a Ucrânia deve desaparecer como Estado soberano.

Biden fez da defesa da Ucrânia um objetivo estratégico dos Estados Unidos. Enxergou a invasão russa como primeira guerra internacional na Europa desde 1945, um evento que testava a estabilidade da Otan. A preservação da nação invadida coagulava o imperativo de reafirmar a aliança entre Estados Unidos e Europa — o Ocidente tal como definido na Guerra Fria.

Trump faz da capitulação negociada da Ucrânia um objetivo estratégico dos Estados Unidos. Do ponto de vista dele, não se trata de invasão imperial de uma nação soberana, mas de uma guerra civil travada no interior da “Grande Rússia” pela recuperação das “terras históricas russas”. A paz em que se engaja deve ser uma rendição adornada por enfeites destinados a evitar a percepção de humilhante derrota dos Estados Unidos. Nessa linha, Washington retira a ajuda militar e financeira à Ucrânia, cede às exigências territoriais maximalistas do Kremlin e promete, de antemão, anular as sanções econômicas à Rússia.

A Venezuela inteira para mim, meia Ucrânia para Putin. A paz, nos termos de Trump, implodiria o edifício nacional ucraniano. Zelensky e a elite política transitariam, aos olhos da população e dos soldados, da condição de líderes heroicos a traidores. No lugar do sonho da integração à UE, emergiria o espectro de uma terceira invasão russa. A Ucrânia seria convertida em presa fácil de magnatas corruptos e demagogos pró-russos — estrada rumo a uma amarga submissão aos desígnios de Moscou.

— A Europa é fraca — proclamou Trump.

A catástrofe no país que as potências europeias juraram defender confirmaria o insulto escrito na pedra da NSS. A sombra da Munique de 1938 desceria sobre um Velho Mundo desmoralizado, abrindo as portas do poder aos “partidos patrióticos europeus”. Os governantes europeus, que sabem disso, puseram em marcha um Plano B decente. A desesperada resistência militar no front do Donbass ganhou fôlego temporário. Lá, joga-se o futuro político da Europa.

 

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