O Globo
A paz, nos termos de Trump, implodiria o
edifício nacional ucraniano
Na hora da verdade, a União Europeia (UE) só
deu meio passo à frente. No lugar do plano de um multibilionário empréstimo à
Ucrânia baseado nos ativos russos congelados, fechou um empréstimo de € 90
bilhões com recursos próprios. É sua resposta ao intercâmbio diplomático
bilateral Trump-Putin, destinado a traçar o destino da Ucrânia à margem da
Europa — e da própria Ucrânia. Mas, sobretudo, surge como réplica à Estratégia
de Segurança Nacional (NSS, na sigla em inglês) divulgada pela Casa Branca.
A NSS diagnostica um declínio histórico radical da Europa: “apagamento civilizacional”, derivado do abandono de “valores” e da perda de “identidades nacionais”. Sentença de morte da aliança transatlântica? Quase. Segundo a doutrina Trump, uma reversão providencial dependeria da transferência do poder aos “partidos patrióticos europeus”.
Os tais “partidos patrióticos” são correntes
da direita nacionalista e da extrema direita — como Viktor Orbán, da Hungria,
Robert Fico, da Eslováquia, a AfD alemã ou a Reunião Nacional francesa — que
ameaçam a estabilidade das democracias liberais europeias. O Kremlin, que
mantém estreitas relações com tais correntes, descreveu a NSS como “largamente
consistente” com a visão russa sobre a ordem mundial — e, ecoando o documento
da Casa Branca, Putin apontou “total degradação” da Europa.
Na Conferência de Segurança Europeia de
Munique, em fevereiro, J.D. Vance declarou que o perigo rondando a Europa “não
é a Rússia, não é a China”, mas a “ameaça de dentro, o recuo europeu de seus
valores mais fundamentais”. O vice de Trump tinha razão em alguns pontos, como
as restrições à liberdade de expressão de atores políticos pró-russos. Contudo,
como a NSS viria a esclarecer, a principal “ameaça de dentro”, do ponto de
vista da Casa Branca, é a imigração.
A “Europa cristã” dos discursos xenófobos de
Orbán é a Europa ideal do nacionalismo trumpiano. É nessa moldura ideológica
que se inscreve a parceria Trump-Putin. A “Rússia eterna”, tradicional e
reacionária, emerge como modelo para a reinvenção da Europa almejada pelo
governo dos Estados Unidos. Precisamente por esse motivo, a Ucrânia deve
desaparecer como Estado soberano.
Biden fez da defesa da Ucrânia um objetivo estratégico
dos Estados Unidos. Enxergou a invasão russa como primeira guerra internacional
na Europa desde 1945, um evento que testava a estabilidade da Otan. A
preservação da nação invadida coagulava o imperativo de reafirmar a aliança
entre Estados Unidos e Europa — o Ocidente tal como definido na Guerra Fria.
Trump faz da capitulação negociada da Ucrânia
um objetivo estratégico dos Estados Unidos. Do ponto de vista dele, não se
trata de invasão imperial de uma nação soberana, mas de uma guerra civil travada
no interior da “Grande Rússia” pela recuperação das “terras históricas russas”.
A paz em que se engaja deve ser uma rendição adornada por enfeites destinados a
evitar a percepção de humilhante derrota dos Estados Unidos. Nessa linha,
Washington retira a ajuda militar e financeira à Ucrânia, cede às exigências
territoriais maximalistas do Kremlin e promete, de antemão, anular as sanções
econômicas à Rússia.
A Venezuela inteira para mim, meia Ucrânia
para Putin. A paz, nos termos de Trump, implodiria o edifício nacional
ucraniano. Zelensky e a elite política transitariam, aos olhos da população e
dos soldados, da condição de líderes heroicos a traidores. No lugar do sonho da
integração à UE, emergiria o espectro de uma terceira invasão russa. A Ucrânia seria
convertida em presa fácil de magnatas corruptos e demagogos pró-russos —
estrada rumo a uma amarga submissão aos desígnios de Moscou.
— A Europa é fraca — proclamou Trump.
A catástrofe no país que as potências
europeias juraram defender confirmaria o insulto escrito na pedra da NSS. A
sombra da Munique de 1938 desceria sobre um Velho Mundo desmoralizado, abrindo
as portas do poder aos “partidos patrióticos europeus”. Os governantes
europeus, que sabem disso, puseram em marcha um Plano B decente. A desesperada
resistência militar no front do Donbass ganhou fôlego temporário. Lá, joga-se o
futuro político da Europa.

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