O Estado de S. Paulo
A paixão desmedida, desregrada mesmo, é a que hoje move tiranos, ou aspirantes a tirano, a destruir conquistas civilizatórias essenciais
Não é simples passatempo a atenção que dispensamos às tais “palavras do ano” escolhidas por tradicionais publicações e instituições lexicográficas. E não é por acaso, pois as palavras nos moldam como sujeitos, estruturam nossa percepção do mundo, das pessoas e das coisas. Vagando tantas vezes pelas redes, sentimos o efeito das rage baits, as “iscas” que provocam uma raiva impotente. Sofremos o impacto do slop, o lixo digital que escorre com o furor das tempestades. Suportamos a carga negativa de imaginárias parasocial interactions, em que o interlocutor não é um ser corpóreo, real, e sim uma celebridade que nos ignora por completo ou mesmo um agente virtual qualquer.
Palavras existem também em estado de poemas
que costumam ser mais cortantes e, por isso, capazes de deixar uma marca ainda
mais profunda. Lembrada em vários artigos ao longo do ano, A Segunda Vinda, do
irlandês William Butler Yeats, uma pequena joia literária de mais de um século
atrás, ressoa com vigor inesperado. Espelho da sucessão de crises que se
seguiram à Guerra de 1914, serve também como um dos espelhos do presente – um
presente de outras tantas crises, múltiplas e sobrepostas, a ponto de trazer,
tal como então, os traços de um “interregno”, de uma transição enigmática.
“Tudo se desfaz: o centro não sustém” –
adverte o poeta. Desculpamo-nos previamente por uma certa redução política da
leitura, ainda que, decerto, para nós o “centro” seja bem menos uma posição
partidária, supostamente equidistante dos extremos, e muito mais a ideia de que
anda nos faltando sistematicamente um chão mais firme, com um mínimo de
referências comuns e de sentidos compartilhados. Estamos girando no universo da
“pós-verdade”, em que as mediações – os saberes, as formas pedagógicas, as
instituições da democracia – estão sob ataque direto e, em alguns casos, foram
praticamente dissolvidas. Uma circunstância inédita, na qual, como em Yeats e
talvez de forma ainda mais intensa, os melhores carecem de toda convicção e os
piores se enchem de paixão intensa.
Esta paixão desmedida, desregrada mesmo, é a que hoje move tiranos, ou aspirantes a tirano, a destruir conquistas civilizatórias tão essenciais, como a tolerância, o mundo ordenado segundo regras, a necessidade de consenso para alterar estas mesmas regras. Algumas das correntes mais profundas da modernidade, como o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo, anunciaram a seu modo o caminho possível da unificação do gênero humano – por mais tortuoso e contraditório que ele seja.
As filosofias e as religiões, na sua
pluralidade irreprimível e na sua vocação universal, também demarcam este mesmo
caminho, dimensões inescapáveis do humano que são. E, em termos profanos, as
épocas de globalização econômica dão o fundamento prático de tal unificação,
expandindo as trocas, materiais e simbólicas, e aproximando os povos e os
confins da Terra.
Bem verdade que os refluxos podem ser
poderosos, passando a impressão (real) de que muita coisa subitamente desanda e
de que o mundo está irrremediavelmente de ponta-cabeça. Globalizamonos
economicamente, mas não conseguimos construir minimamente as instituições
políticas à altura deste feito econômico.
Entre as elites internacionalizadas e as
populações de cada país, especialmente as parcelas que se sentem marginalizadas
cultural ou economicamente, abriram-se brechas aparentemente irreparáveis. E
por essas brechas penetraram o discurso e a prática das mais variadas vertentes
do nacional-populismo, com a proposição da “primazia das nações” e o fetiche das
soberanias, acima e além de valores universalistas, como os direitos humanos e
a própria democracia.
No nosso canto “ocidental”, o recuo chega a
assustar.
O antigo hegemon norte-americano, que bem ou
mal se apresentava como o garante de uma constelação de instituições
transnacionais, passou a expressar-se na linguagem bruta dos interesses.
Internamente, destrói a plurissecular estrutura de checks and balances, rumo à
autocracia; externamente, oscila entre isolacionismo, guerras comerciais e
incursões militares. A imagem de mundo que propõe é a de um ajuntamento
mecânico de soberanias, sustentadas preferencialmente por populações
etnicamente homogêneas e temerosas de sofrer um “apagamento civilizacional”. A
agressividade que brota deste patriotismo anacrônico prenuncia, ao mesmo tempo,
a perseguição de minorias e a imposição do mais forte.
A Segunda Vinda tem um desfecho catastrófico.
O colapso do centro é o sinal de um advento desta vez nada salvífico. No mundo
degradado pela carnificina da guerra, uma “fera bruta”, na tradução irretocável
de Augusto de Campos, “se arrasta rumo a Belém para nascer”. Os totalitarismos
do século 20 ainda iriam acontecer, mas Yeats tinha a premonição do desastre.
Quanto a nós, pobres mortais, terminamos 2025 assediados por palavras e coisas
nada inocentes. Para impedir o pior, só com a recuperação da bússola da
democracia e a obstinada determinação de reunir, respeitadas todas as
diferenças, homens e mulheres de boa vontade.

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