domingo, 28 de dezembro de 2025

As palavras e as coisas. Por Luiz Sérgio Henriques

O Estado de S. Paulo

A paixão desmedida, desregrada mesmo, é a que hoje move tiranos, ou aspirantes a tirano, a destruir conquistas civilizatórias essenciais

Não é simples passatempo a atenção que dispensamos às tais “palavras do ano” escolhidas por tradicionais publicações e instituições lexicográficas. E não é por acaso, pois as palavras nos moldam como sujeitos, estruturam nossa percepção do mundo, das pessoas e das coisas. Vagando tantas vezes pelas redes, sentimos o efeito das rage baits, as “iscas” que provocam uma raiva impotente. Sofremos o impacto do slop, o lixo digital que escorre com o furor das tempestades. Suportamos a carga negativa de imaginárias parasocial interactions, em que o interlocutor não é um ser corpóreo, real, e sim uma celebridade que nos ignora por completo ou mesmo um agente virtual qualquer.

Palavras existem também em estado de poemas que costumam ser mais cortantes e, por isso, capazes de deixar uma marca ainda mais profunda. Lembrada em vários artigos ao longo do ano, A Segunda Vinda, do irlandês William Butler Yeats, uma pequena joia literária de mais de um século atrás, ressoa com vigor inesperado. Espelho da sucessão de crises que se seguiram à Guerra de 1914, serve também como um dos espelhos do presente – um presente de outras tantas crises, múltiplas e sobrepostas, a ponto de trazer, tal como então, os traços de um “interregno”, de uma transição enigmática.

“Tudo se desfaz: o centro não sustém” – adverte o poeta. Desculpamo-nos previamente por uma certa redução política da leitura, ainda que, decerto, para nós o “centro” seja bem menos uma posição partidária, supostamente equidistante dos extremos, e muito mais a ideia de que anda nos faltando sistematicamente um chão mais firme, com um mínimo de referências comuns e de sentidos compartilhados. Estamos girando no universo da “pós-verdade”, em que as mediações – os saberes, as formas pedagógicas, as instituições da democracia – estão sob ataque direto e, em alguns casos, foram praticamente dissolvidas. Uma circunstância inédita, na qual, como em Yeats e talvez de forma ainda mais intensa, os melhores carecem de toda convicção e os piores se enchem de paixão intensa.

Esta paixão desmedida, desregrada mesmo, é a que hoje move tiranos, ou aspirantes a tirano, a destruir conquistas civilizatórias tão essenciais, como a tolerância, o mundo ordenado segundo regras, a necessidade de consenso para alterar estas mesmas regras. Algumas das correntes mais profundas da modernidade, como o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo, anunciaram a seu modo o caminho possível da unificação do gênero humano – por mais tortuoso e contraditório que ele seja.

As filosofias e as religiões, na sua pluralidade irreprimível e na sua vocação universal, também demarcam este mesmo caminho, dimensões inescapáveis do humano que são. E, em termos profanos, as épocas de globalização econômica dão o fundamento prático de tal unificação, expandindo as trocas, materiais e simbólicas, e aproximando os povos e os confins da Terra.

Bem verdade que os refluxos podem ser poderosos, passando a impressão (real) de que muita coisa subitamente desanda e de que o mundo está irrremediavelmente de ponta-cabeça. Globalizamonos economicamente, mas não conseguimos construir minimamente as instituições políticas à altura deste feito econômico.

Entre as elites internacionalizadas e as populações de cada país, especialmente as parcelas que se sentem marginalizadas cultural ou economicamente, abriram-se brechas aparentemente irreparáveis. E por essas brechas penetraram o discurso e a prática das mais variadas vertentes do nacional-populismo, com a proposição da “primazia das nações” e o fetiche das soberanias, acima e além de valores universalistas, como os direitos humanos e a própria democracia.

No nosso canto “ocidental”, o recuo chega a assustar.

O antigo hegemon norte-americano, que bem ou mal se apresentava como o garante de uma constelação de instituições transnacionais, passou a expressar-se na linguagem bruta dos interesses. Internamente, destrói a plurissecular estrutura de checks and balances, rumo à autocracia; externamente, oscila entre isolacionismo, guerras comerciais e incursões militares. A imagem de mundo que propõe é a de um ajuntamento mecânico de soberanias, sustentadas preferencialmente por populações etnicamente homogêneas e temerosas de sofrer um “apagamento civilizacional”. A agressividade que brota deste patriotismo anacrônico prenuncia, ao mesmo tempo, a perseguição de minorias e a imposição do mais forte.

A Segunda Vinda tem um desfecho catastrófico. O colapso do centro é o sinal de um advento desta vez nada salvífico. No mundo degradado pela carnificina da guerra, uma “fera bruta”, na tradução irretocável de Augusto de Campos, “se arrasta rumo a Belém para nascer”. Os totalitarismos do século 20 ainda iriam acontecer, mas Yeats tinha a premonição do desastre. Quanto a nós, pobres mortais, terminamos 2025 assediados por palavras e coisas nada inocentes. Para impedir o pior, só com a recuperação da bússola da democracia e a obstinada determinação de reunir, respeitadas todas as diferenças, homens e mulheres de boa vontade.

 

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