Por Bolívar Torres / O Globo
Nunca publicado em livro, texto pedia que cariocas curtissem a ‘mais trepidante das estações’
Janeiro de 1978.
No artigo 1º de seu “Ato Institucional do Verão Carioca”, Carlos Drummond de Andrade decreta: “Todos os
moradores da cidade do Rio de Janeiro, ricos ou pobres, de qualquer raça,
religião, profissão ou falta de profissão, convicção ou ausência de convicção
política, têm igual direito a curtir as excelências do verão, também chamada
estação calmosa, embora seja a mais trepidante das estações”.
Publicada na
revista masculina Status naquele mesmo mês e ano, a crônica do poeta mineiro
reúne 20 artigos que ironizam as regras de convivência, os abismos sociais e as
estratégias de sobrevivência diante do caos urbano e do calor. Também satiriza
os decretos da ditadura militar, que vivia o último suspiro do Ato
Institucional nº 5 (AI-5) e ensaiava uma abertura lenta e gradual.
Como inúmeras
outras colaborações de Drummond para a imprensa, este “Ato Institucional do
Verão Carioca” permanece inédito em livro, e é obscuro até mesmo entre
especialistas da obra do autor. Merece ser resgatado quase 50 anos depois,
neste 21 de dezembro em que começa a mais carioca das estações.
— É um texto que
destoa da obra do Drummond pela forma paródica do discurso oficial, no caso
plena de absurdos e arbitrariedades — observa o crítico e poeta Antonio Carlos
Secchin, que desconhecia a crônica. — Essa divisão em artigos de lei,
numerados, não é usual.
Chopinho gelado
Responsável por
encontrar diversos poemas inéditos de Drummond em 2009 e autor de “Papéis de
poesia: Drummond & mais (2014)”, o imortal da Academia Brasileira de Letras
destaca o lado satírico da crônica, que “atira em vários alvos”.
Drummond mira regras sociais, estruturas de poder, a ganância que inflaciona o chope e os refrescos, os privilégios que definem a experiência estival. Como um burocrata tentando domar o lirismo da vida, trata o calor como política pública, o bom humor como obrigação cívica e a praia como “praça do povo”.
Aos indivíduos não
habilitados às delícias do verão, o ato impõe que o suportem “com uma
combinação de heroísmo e espírito filosófico, abstendo-se de promover agitação
que perturbe o exercício pacífico dos demais cidadãos”. Naquela altura da vida,
o próprio Drummond já havia desistido de um contato mais intenso com o verão,
contentando-se com a contemplação. Segundo seu neto, Pedro Drummond, o avô
parou de frequentar a praia e o mar pelos idos dos anos 1960. Continuava ligado
à orla, mas raramente se aventurava pela areia. Daí a imagem do poeta sentado
no banco admirando o seu entorno, consagrada pela estátua no calçadão de
Copacabana.
— Ele apreciava a
estação pelo clima e pela descontração das pessoas, gostava de um chopinho
gelado, mas não era um “praticante” — lembra Pedro. — Como ele mesmo dizia, era
um “homem de gabinete”.
Verão de janeiro a dezembro
Na crônica, o
verão carioca ganha uma dimensão simbólica. Sua duração real seria de janeiro a
dezembro, “com breves intervalos para reciclagem”. O cronista não reconhece o
solstício do 21 de dezembro como o início da estação, mas a entrada em “uma
faixa especial, mais badalada”, que vai até 20 de março.
O verão de 1978
parece ter um significado especial. Após uma década em vigor, o AI-5 seria
revogado em dezembro daquele ano. O novo ato drummondiano marcaria o fim de uma
era — e o início de uma nova esperança. Em 1979, o país entraria no processo de
abertura política, com a Lei da Anistia e o retorno ao pluripartidarismo.
O subtexto
político fica ainda mais claro quando se percebe que a crônica começa na página
68 da revista, uma referência nada casual ao ano em que o mais duro instrumento
de repressão da ditadura foi instituído. Um engajamento incomum na produção de
Drummond do período, nota o escritor e jornalista Humberto Werneck, que há nove
anos escreve uma biografia do poeta.
Após receber o
golpe de 1964 com mais conformismo do que aprovação, Drummond foi assumindo uma
posição cada vez mais contrária à medida que a censura e a violência contra as
instituições se intensificavam. Ainda assim, nunca usou seu espaço na imprensa
para escrever manifestos inflamados contra a ditadura. Sua produção cronística
foi reunida em 10 livros, mas muitos textos seguem inéditos (mais detalhes
sobre Drummond e sua obra podem ser encontrados em seu site oficial: www.leiadrummond.com.br).
— O Drummond teve
uma fase politica dos anos 1930 a 1945, quando se desencantou — lembra Werneck,
que descobriu o “Ato Institucional do Verão Carioca” recentemente, apresentado
pelo bibliófilo Luis Pio Pedro. — Na ditadura militar, ele se mostrou
cauteloso. Chegou escrever um poema em defesa da cantora Nara Leão quando ela
foi presa (“Apelo”), mas a política não foi um grande assunto em suas crônicas.
'Trabalhador braçal'
A crônica estival
de Drummond não foi sua única colaboração para a Status. Além de ser a primeira
a publicar os seus poemas eróticos, a revista fez uma entrevista histórica com
o poeta em 1984, logo após a morte de seu amigo Pedro Nava. Segundo Werneck,
trata-se de uma das melhores já feitas com ele.
— A Status foi uma das primeiras revistas masculinas do país, mas acabou se notabilizando mais pela literatura do que pelas fotos de mulheres seminuas — diz o biógrafo. — Publicou autores latino-americanos inéditos por aqui e promoveu prêmios literários que tiveram Rubem Fonseca e Dalton Trevisan entre os vencedores e Jorge Amado entre os jurados.
Diretor de redação
da Status na época, o jornalista Gilberto Mansur lembra que a revista foi
criada em 1973, com a ditadura a todo vapor. Antes de serem publicadas, as
fotografias das modelos precisavam passar pelo crivo dos censores, que impunham
regras esdrúxulas, como a autorização para exibir apenas um seio por imagem. As
restrições à nudez acabaram abrindo espaço para a literatura e para grandes
entrevistas. Foi nesse contexto que Mansur se aproximou de Drummond.
— Ele era um
trabalhador braçal, gostava muito de escrever — recorda o jornalista. — A
crônica sobre o verão foi uma sugestão dele, não tive influência nenhuma. O
texto fez muito sucesso na época, mas por alguma razão acabou esquecido.
A crônica
Ato
institucional do verão carioca
Artigo
1º Todos os moradores da cidade do Rio de Janeiro, ricos ou pobres, de qualquer
raça, religião, profissão ou falta de profissão, convicção ou ausência de
convicção política, têm igual direito a curtir as excelências do verão, também
chamada estação calmosa, embora seja a mais trepidante das estações.
§
único — Entende-se por verão, no Rio de Janeiro, o período que vai de 1º de
janeiro a 31 de dezembro, com breves intervalos para reciclagem, e uma faixa
especial, mais badalada, entre 21 de dezembro e 20 de março.
Artigo
2º As maneiras lícitas de exercer o direito outorgado no artigo anterior são as
mais variadas e imagináveis, ficando contudo na dependência de dois fatores:
a) o
grau de recursos financeiros do morador ou da pessoa física ou jurídica
disposta a sustentar a curtição;
b) o
grau de imaginação criadora, ativa e defensiva, do morador ou de acompanhante
que lhe supra a deficiência desse atributo.
Artigo
3º Os indivíduos que não se mostrarem habilitados, na forma deste Ato
Institucional, a curtir o verão carioca, devem limitar-se a suportá-lo com uma
combinação de heroísmo e espírito filosófico, abstendo-se de promover agitação
que perturbe o exercício pacífico dos demais cidadãos, gerando aumento
imoderado da temperatura social, que já é elevada no período.
Artigo
4º É lícito à parcela da população em situação financeira aprazível, própria ou
de favor, curtir o verão carioca in loco, na forma que lhe convier, ou à
distância, em território nacional ou estrangeiro, pelo tempo que julgar
suficiente, inclusive acumulando verões.
Artigo
5º A indústria privada cuidará de produzir a maior quantidade possível de
refrigerantes para atender à demanda sazonal, devendo a comercialização dos
produtos obedecer a tabelamento rigoroso, sujeito a imponderáveis, que na
prática justifiquem e mesmo imponham o galope dos preços acima e além da tabela
afixada em lugares bem visíveis, como o alto da encosta do Pão de Açúcar, a
plataforma do monumento a Cristo Redentor no Corcovado e as torres cilíndricas
de São Conrado.
§
único — Em hipótese alguma o preço do chope excederá o valor de um salário
mínimo.
Artigo
6º A praia, como a praça, é do povo, isto é, de todos, mas alguns todos têm
direito a ocupar superfície maior e preferencial na areia, para se dedicarem a
jogos esportivos, tanto em partidas isoladas como em campeonatos, devendo os
banhistas-de-sol, que não são propriamente banhistas, e por isso ocupam áreas
de favor, perder o mau costume de treinar para alvo de bolas, raquetes e
petecas.
Artigo
7º O acesso de banhistas propriamente ditos ao elemento líquido não deve de
maneira alguma pôr em risco a liberdade de movimentação e a segurança
individual dos surfistas, que carecem de proteção contra a tendência
expansivista dos primeiros.
Artigo
8º O acesso de animais ditos irracionais à praia é estritamente proibido, mas
tolerado conforme a hora, a praia, a qualidade do animal e a qualidade do dono.
Artigo
9º O uso de maiô natural, de pele humana feminina, será desenvolvido
gradativamente em cada verão, podendo estender-se a prática à veste congênere
de pele humana masculina que não ocasione atentado gritante à estética das
formas.
Artigo
10º Os turistas estrangeiros gozarão de facilidades especiais para curtição do
verão carioca, destacando-se entre elas o direito de se recusarem a ser
assaltados por marginais de décima categoria, cuja permanência na proximidade
de hotéis, boates e clubes fica absolutamente vedada no decorrer da estação.
Artigo
11º Os preços de utilidades e souvenirs destinados a consumo de turistas
estrangeiros sofrerão desconto especial de 35% sobre a majoração também
especial de 500% em todas as compras que efetuarem.
§
único — No caso de táxis, o desconto será apenas de 5% sobre a majoração
inultrapassável de 3.000%, conciliando-se dest'arte o justo interesse da
categoria profissional com a necessidade de desestimular o consumo de derivados
de petróleo.
Artigo
12º Os turistas nacionais terão liberdade de efetuar os programas que bem
entenderem, uma vez que não prejudiquem a movimentação dos turistas
estrangeiros e consequente captação de dólares em proveito da economia
nacional.
§
único — As diárias de hotel e o aluguel de apartamentos e quartos por
temporada, para uso de turistas nacionais, serão fixados ao preço de mercado, à
base da inflação prevista para 1998.
Artigo
13º O sorvete de frutas naturais e o sorvete sintético terão idêntico sabor e
aparência, verificados em testes no Instituto de Proteção do Consumidor em
Tempo de Verão, de tal sorte que o segundo possa substituir vantajosamente o
primeiro, sem que o consumidor dê por isto, poupando-se as frutas para
exportação e consequente melhoria de nossa balança comercial.
Artigo
14º Tendo em vista que só à última hora, quando o calor se torna incontrolável,
é que os novos casais se lembram de adquirir aparelhos de refrigeração e de
circulação de ar, já então sem tempo para que as empresas produtoras elaborem
corretamente seus planos de produção, ficam ditas empresas autorizadas a
fornecer ao consumidor simulacros artisticamente acabados daqueles aparelhos,
que despertem suave impressão visual de refrigério no interior das habitações
mais escaldantes.
§
único — Também se faculta às mesmas empresas o fornecimento de pedaços isolados
de aparelhos, a serem gradativamente montados pelos consumidores, em verões
sucessivos, com a necessária assistência técnica do produtor ou do revendedor.
Artigo
15º O bom humor da população carioca de todas as camadas e subcamadas sociais,
como de costume, se manterá invariavelmente alto e chispante de anedotas,
piadas, trocadilhos, subentendidos, apelidos e a-propósitos, de modo a fazer do
verão uma festa integral, ainda que se verifiquem imensas precipitações
fluviais, com desabamentos, esmagamentos, afogamentos e outras calamidades.
Artigo
16º O uso de expressões como “puxa, que calor”, “calorão bravo este, hein?”,
“amanhã ainda vai ser mais quente”, “isto aqui é a verdadeira fornalha de Pedro
Botelho”, “vá fazer calor assim nos quintos dos infernos” será considerado
completamente fora de moda, e declarados caretas aqueles que as pronunciarem,
e, por outro lado, se revestirão de absoluta novidade e interesse expressões no
estilo de “nunca vi uma temperatura tão deliciosa”, “os deuses não querem outra
coisa no Olimpo”, “até que o calor está bastante relativo, como deve ser daqui
por diante” e "não há nada como um verão depois de outro para refrescar o
anterior”.
Artigo
17º Durante o subperíodo carnavalesco, os raios solares farão a fineza de
aumentar consideravelmente de intensidade, para incutir mais fogo e ardor nas
escolas de samba credenciadas pela Riotur, enfatizando assim a importância
social e oficial do calor como fonte geradora de emoção coletiva.
Artigo
18º A população das favelas, em face do privilégio que desfruta de viver em
altura muito superior à ocupada pelos demais habitantes do Rio de Janeiro, com
refrigeração natural gratuita, fica dispensada de recorrer aos meios habituais
de defesa contra o calor, a começar pelas piscinas que se reservam para o
grosso da população menos favorecida topograficamente.
Artigo
19º O número de incêndios propositais ou misteriosos não poderá atingir nível
exorbitante, tendo em vista a necessidade de reserva do volume de água
disponível para acudir aos sinistros que ocorrem normalmente nesta quadra do
ano e que, ao assumirem proporções avantajadas, constituem atração suplementar
no painel de eventos de verão.
Artigo
20º Os casos de desidratação seguidos de óbito, resultantes do excesso de calor
em contraste com a ausência de reservas orgânicas, notadamente em crianças
subnutridas, devem figurar nas estatísticas demográficas em coluna sob a
rubrica “Força do Destino”.

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